terça-feira, 6 de julho de 2010

Poema - "Os filhos da Paixão"

Mais uma contribuição para o Blog
João Rocha
Caraguatatuba - SP



OS FILHOS DA PAIXÃO

Nascemos num campo de futebol.
Haverá berço melhor para dar à luz uma estrela?
Aprendemos que os donos do país só nos ouviam
Quando cessava o rumor da última máquina...
Quando cantava o arame cortado da última cerca...
Carregamos no peito, cada um, batalhas incontáveis.
Somos a perigosa memória das lutas.
Projetamos a perigosa imagem do sonho.
Nada causa mais horror à ordem
Do que homens e mulheres que sonham.
Nós sonhamos. E organizamos o sonho.
Nascemos negros, nordestinos, nisseis, índios,
Mulheres, mulatas, meninas de todas as cores,
Filhos, netos de italianos, alemães, árabes, judeus,
Portugueses, espanhóis, poloneses, tantos...
Nascemos assim desiguais, como todos os sonhos
Humanos.
Fomos batizados na pia, na água dos rios,
Nos terreiros.
Fomos, ao nascer, condenados
A amar a diferença.
A amar os diferentes.
Viemos da margem.
Somos a anti-sinfonia
Que estorna da estreita pautada melodia.
Não cabemos dentro da moldura...
Somos dilacerados como todos os filhos da paixão.
Briguentos. Desaforados. Unidos. Livres:
Como meninos de rua.
Quando o inimigo não fustiga,
Inventamos nossas próprias guerras.
Desenvolvemos um talento prodigioso para elas...
Com nossas mãos, sonhos, desavenças
Compomos um rosto de peão,
Uma voz rouca de peão,
O desassombro dos peões
Para oferecer ao país,
Para disputar o país.
Por sua boca dissemos, na fábrica, nos estádios,
Nas praças,
Que este país não tem mais donos.
Em 84 viramos multidão, inundamos as ruas.
Somamos nosso grito ao grito de todos. Depois,
Gritamos sozinhos. E choramos a derrota
Sob nossas bandeiras.
88: como aprender a governar e desenhar
Em cada passo, em cada gesto, a cada dia,
A vida nova que nossa boca anunciou?
89: encarnamos a tempestade. Assombrados pela vertigem
Dos ventos que desatamos.
Venceu a solidez da mentira, do preconceito.
Três anos depois pintamos a cara, como tantos,
E fomos o arco-íris e a indignação.
Dessa vez a fortaleza ruiu diante dos nossos olhos.
E só havia ratos depois dos muros.
A fortaleza agora está vazia. Ou povoada de fantasmas.
O caminho que conduz a ela passa por muitos lugares:
Caravanas.
Pelas estradas empoeiradas,
Pela esperança empoeirada do povo,
Pelos mandacarus e juazeiros,
Pelos seringais, pelas águas da Amazônia,
Pelos parreirais, pelos pampas, pelos cerrados
E pelos babaçuais, mas, sobretudo
Pela invencível alegria
Que o rosto castigado da gente
Demonstra à sua passagem.
A revolução que acalentamos na juventude faltou.
A vida, não. A vida não falta.
E não há nada mais revolucionário que a vida.
Fixa suas próprias regras. Marca a hora
E se põe diante de nós, incontornável.
Os filhos da margem têm os olhos postos sobre nós.
Eles sabem, nós sabemos que a vida
Não concederá uma terceira oportunidade.
Hoje temos uma cara. Uma voz. Bandeiras.
Temos sonhos organizados.
Queremos um país onde não se matem crianças
Que escaparam do frio, da fome, da cola de sapateiro.
Onde os filhos da margem tenham direito à terra,
Ao trabalho, ao pão, ao canto, à dança,
Às histórias que povoam nossa imaginação,
Às raízes da nossa alegria.
Aprendemos que a construção do Brasil
Não será obra apenas de nossas mãos.
Nosso retrato futuro resultará
Da desencontrada multiplicação
Dos sonhos que desatamos.

de Pedro Tierra

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