sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Acabaram os "autos de resistência" no Brasil?

A resposta é NÃO. A resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil publicada no Diário Oficial da União muda a nomenclatura do dispositivo jurídico, mas não determina o seu fim. Explicando. 


O "auto de resistência" é um dispositivo jurídico que permite que agentes do Estado possam matar pessoas e essas mortes não sejam consideradas como homicídios, mas um procedimento de autodefesa ou uso proporcional da força em momentos de resistência ou confronto. A imensa maioria dos países capitalistas do mundo tem dispositivos jurídicos semelhantes. Qual é o grande problema no Brasil?

O "auto de resistência" é usado como um mecanismo jurídico que legaliza uma política de extermínio sistêmico praticando por agentes do Estado [burguês] contra segmentos da classe trabalhadora (em especial jovens e negros). Ou seja, os aparelhos repressivos do Estado (polícia civil, militar e científica, ministério público, corregedorias da polícia militar, secretarias de segurança, etc.) agem de uma forma a ENCAIXAR os assassinatos no dispositivo jurídico do "auto de resistência" e assim legalizar o homicídio que deixa - do ponto de vista legal - de ser homicídio (forja de confrontos, falsos laudos periciais, ministério público conservador que acredita mais na versão dos policiais que nos familiares da vítima, etc.).  

Dando um exemplo concreto. Orlando Zaccone no seu livro "Indignos de Vida" (uma obra excelente, diga-se de passagem) demonstra como, no Judiciário, no processo de "apuração" dos "autos de resistência" a "história de vida" da vítima é pesquisada como forma de encontrar um passado criminal, associação com o tráfico de drogas ou até mesmo companhia com "más amizades". O Judiciário usa, inclusive, depoimento dos familiares da vítima para criar esse "passado maldito" e se é "descoberta" qualquer possibilidade de relação com "o crime" a versão policial é dada como verdadeira. Ou seja, o Judiciário não investiga as circunstâncias do assassinato cometido pelo agente do Estado, mas o passado da vítima ou a dinâmica da localidade (a favela é vista como uma área perigosa e os "autos de resistência" cometidos nela são quase que justificados antes de qualquer investigação). Uma série de fatores explica essa postura do Judiciário e como se deve perceber é idealismo achar que isso será transformado sem uma profunda reforma nesse aparato do Estado [burguês]. 

Então o que mudou? A partir de agora a morte de pessoas por agentes do Estado será classificada como ""homicídio decorrente de oposição à ação policial"" e um inquérito policial deve ser aberto com tramitação prioritária. Ou seja, mudou o nome do dispositivo jurídico, mas não sua essência e nem o funcionamento concreto - para além do que diz apenas a legislação - dos aparelhos do Estado que produzem o extermínio sistêmico da classe trabalhadora (lembrando que os aparelhos repressivos do Estado funcionam em relação orgânica com aparelhos privados, como os monopólios de mídia, indispensáveis para legitimar a violência). 

Enfim, a luta contra o extermínio da classe trabalhadora brasileira continua e não tivemos nenhuma grande vitória com essa nova resolução.

Ministério Público, Polícia Federal, Justiça: uma esculhambação só


O grau de partidarização do Ministério Público e da Polícia Federal chegou a tal ponto que parece impossível restabelecer o controle desses órgãos para que atuem como deveriam, ou seja, pautados pelo republicanismo.

O vazamento diário, ininterrupto, de informações sigilosas da operação Lava Jato é prova inconteste de que o MP e a PF, em conluio com os jornalões, pretendem moldar a opinião pública aos seus interesses, no caso ferir de morte o partido político que ocupa o Palácio do Planalto.


Essa estratégia é fundamental para que a Lava Jato não se extingua, se mantenha viva no imaginário popular como a única fonte de energia capaz de prover a força necessária para combater a corrupção no Brasil.

Fora isso, é inacreditável que até hoje, passados muitos meses do início da investigação, nada se tenha apurado sobre o caso da escuta ilegal na cela do doleiro delator Alberto Youssef.

Ou que ainda o ministro da Justiça não tenha demitido o responsável pela Polícia Federal no Paraná, que aceitou, como se fosse a coisa mais normal do mundo, a "doação" de quase R$ 200 mil, por parte do juiz Moro - dinheiro "recuperado" pela Lava Jato, que estava sob a guarda da Justiça -, para a manutenção de sua frota de veículos. 

Esse caso é a joia da coroa da esculhambação geral e irrestrita que tomou conta da Justiça brasileira.

Como é que pode um juiz de 1ª instância "doar" verba para a Polícia Federal, sob a alegação de que sem tomar essa medida a "operação" da qual é a estrela maior será prejudicada?

Que poder tem um juiz de 1ª instância para usar, a fundo perdido, dinheiro que não é dele?

Como pode um juiz de 1ª instância atribuir para si os poderes de um ministro de Estado?

E mais: por que cargas d'água a PF do Paraná precisa desse dinheiro se devolveu cerca de R$ 3 milhões do orçamento a ela destinado em 2015?

Ora, não é preciso ser nenhum gênio para concluir que essa "doação" foi mais um episódio para desgastar o governo federal, imputando a ele o desejo de sabotar a tal operação Lava Jato.

Nunca antes no Brasil o Judiciário e o Ministério Público tiveram tanto poder quanto agora - poder que está sendo usado para minar o Executivo federal e que está se consolidando graças à inação de um ministro que permanece inexplicavelmente à frente de sua Pasta.

Sempre se soube que a Justiça brasileira era cara, lenta e simpática aos ricos e poderosos. 

Agora, se forma a convicção de que ela também se julga acima das outras instituições do Estado e dos demais poderes, algo terrível para uma democracia. 

E para terminar: em que local civilizado deste planeta um juiz atribui a si próprio as funções de investigador, promotor, carcereiro e carrasco?
http://cronicasdomotta.blogspot.com.br/2016/01/ministerio-publico-policia-federal.html

Alguém falou em luta de classes?


proletariadoLuta de classes é um termo central das relações políticas no Ocidente desde o século 19 e é impossível pensar nisso sem remetermos a Marx, ao Manifesto Comunista de 1848 e a outras obras suas e de Engels. Naquele contexto a luta de classes dizia respeito ao antagonismo entre o proletariado e a burguesia e, seguindo a trilha dos socialistas franceses, Marx pensou esse conflito como uma etapa que levaria ao socialismo. Ora, o socialismo não representaria ainda o fim das diferenças de classes, mas a tomada de poder pelo proletariado e o fim de sua subjugação pela burguesia.
Luta de classes é um conceito da modernidade sólida, da sociedade industrial, é um conceito que remete à sociedade do trabalho, que produziu movimentos como o ludismo e permitiu a formulação de ideologias sociais que tinham como foco as tensões dessa sociedade, como o socialismo, o anarquismo e o fascismo. Essas ideologias buscavam arregimentar os trabalhadores para uma revolução social e se opunham ao liberalismo burguês. O anarquismo e socialismo à esquerda e o fascismo à direita foram as ideologias da era das massas.
Essas ideologias perderam força à medida que o trabalho se deslocou das fábricas para os setores de serviços e informação e o proletariado praticamente desapareceu como classe. O fascismo foi derrotado na guerra e o socialismo fracassou em seu projeto de construção de uma sociedade utópica e, como não há mais socialismo como perspectiva nem existe mais uma classe que atenda pelo nome de proletariado, não podemos mais falar em luta de classes.
As utopias sociais estão mortas e já não expressam os anseios dos trabalhadores. Por outro lado, muitas de suas promessas se tornaram viáveis sem revolução social, como a jornada de oito horas, a flexibilização da mão de obra, a elevação da qualidade de vida dos trabalhadores e a universalização de direitos trabalhistas. Essas conquistas foram em grande parte resultado das próprias lutas trabalhistas no interior do capitalismo e se ampliaram como resultado da especialização dos trabalhadores e das mudanças paradigmáticas da sociedade pós-industrial.
Como afirma Kumar, a publicidade fundiu o cultural e o econômico, o fim da política de classes passou a focar o cidadão como consumidor e o pluralismo de valores e estilos de vida resultaram na afirmação de comportamentos individualistas. Isso não significa que as desigualdades sociais tenham desaparecido, óbvio que não, assim como o desemprego e a exploração da mão de obra. Nos países ricos, as mudanças nas relações de trabalho ocorreram mais rapidamente do que em países periféricos como o Brasil, mas desigualdades sociais e lutas de classes são coisas distintas. Um  funcionário de uma empresa como o McDonald’s, por exemplo, pode ter uma jornada de trabalho extenuante, mas ele pode procurar e receber uma oferta de trabalho melhor de outra empresa e migrar para ela; pode também buscar um curso superior e profissionalizante e com isso planejar uma carreira.
Com a diluição da noção de proletariado o que passou a existir foram segmentos distintos de trabalhadores que fazem reivindicações pontuais junto aos patrões ou a governos por melhores condições de trabalho e de salários. É assim que médicos, professores, funcionários públicos, garis, caminhoneiros e outros grupos agem. Contudo, não há elementos que possam uni-los em torno de um ideal porque não formam uma classe, mas categorias de profissionais. Além disso, a ascensão do trabalhador autônomo e do microempreendedor se tornou um ideal de muitas pessoas de baixa renda que almejam ampliar seus proventos sem submeter-se a um patronato.
Em geral, o que os trabalhadores almejam é a ascensão à classe média, não a derrocada do sistema capitalista. Como afirmei em outro texto e volto a repetir: “Os pobres não estão interessados em revolução ou coletivização, mas em qualidade de vida, sem supressão de liberdades democráticas. As revoluções e coletivizações do século 20 atuaram no sentido contrário a essas demandas”. Mesmo assim, as noções de direita e esquerda ainda permanecem mas não podem mais ser pensadas como se o mundo ainda estivesse vivendo a divisão capitalismo versus socialismo.
A melhoria da qualidade de vida dos mais pobres passa pelos investimentos em políticas públicas e sociais e pela busca de qualificação profissional. Afirmar isso não implica um convite ao conformismo e ao abandono de perspectivas de futuro. Pensar um futuro melhor que o presente faz parte de nossa condição como indivíduos modernos, mas o que está em questão é que as narrativas universalistas da modernidade sólida, isto é, as ideologias da sociedade do trabalho, não estão mais na ordem do dia. Elas propunham soluções universais a partir dos desajustes sociais provocados pelo sistema fabril. Na sociedade contemporânea, a pluralidade cultural substituiu a política de classes e os projetos de uma sociedade utópica cederam lugar à dispersão identitária. Krishan Kumar discute longamente essa questão no livro “Da Sociedade pós-industrial à pós-moderna”. O conceito de hipermodernidade de Gilles Lipovetsky também contém elementos importantes pra se pensar essa questão.
Outra consequência disso é o afastamento da política por parte dos indivíduos e um declínio geral da vida pública. Com a ampliação das horas de descanso e o avanço das comunicações, o entretenimento e a busca por satisfação pessoal, resultado de uma sociedade que enfatiza o sucesso pessoal e o individualismo, além das múltiplas possibilidades de convício social e espiritualidade, se tornam os focos de busca por amplos contingentes de pessoas. Nesse ponto, também é importante a ênfase de Bauman em algumas de suas obras no papel dos “especialistas em identidade” e na necessidade de compartilhamentos de experiências de vida em um contexto em que os indivíduos passam a ser interpelados como consumidores, não mais como produtores.
O fosso que ainda existe entre ricos e pobres pode ser atenuado através de políticas de caráter social-democrata e de programas de redistribuição direta de renda, como vimos com o Bolsa Família criado no governo Lula. Pensar a redução do desemprego e da pobreza deve passar prioritariamente pelas políticas de inclusão e redistribuição de renda. Por outro lado, apesar de a concentração de renda e a miséria persistirem em muitas partes do mundo, os grandes conflitos de nossa época não têm caráter classista, mas são conflitos de natureza étnica, religiosa ou de busca por direitos sociais por parte de minorias, como negros, mulheres e homossexuais ou minorias étnicas. A busca por afirmação de direitos individuais inviabiliza a retomada de qualquer projeto coletivista da modernidade sólida.
O que aqui se coloca não é a mera afirmação de uma pós-modernidade, mas de uma segunda modernidade que já estamos vivendo, como aborda Lipovetsky. É uma modernidade marcada por múltiplas temporalidades, como a positivação da terceira idade, o culto ao imediatismo e ao tempo presente, uma modernidade que busca a integração, não mais a destruição de um passado para a construção da utopia. E, ao contrário do que muitos afirmam, nossa época não é carente de valores e muitos valores não deixaram de ser estimados e cultivados, como as noções de direitos humanos, honestidade, valorização da infância, proteção a idosos e mulheres, rejeição da violência e crueldade, o voluntariado, a proteção a minorias, o senso de responsabilidade por gerações futuras, movimentos beneficentes de massa, etc. Há um esforço crescente sobre a responsabilidade de todos com a preservação da natureza, a redução das emissões de poluentes pelos países mais industrializados e a necessidade de pensar soluções globais para nossos problemas. Vivemos uma segunda modernidade com múltiplas demandas, consciente de suas múltiplas temporalidades e multi-culturalista.
Por todas essas questões, luta de classes não é mais um conceito que explica nossa época, não é mais um conceito para a nossa modernidade ou que ainda possa abrir perspectivas de futuro. Só é utilizado por militantes de partidos de esquerda radicais, que não conseguem refletir para além das cartilhas de suas legendas e por intelectuais marxistas intransigentes que só leem autores com quem concordam. Sair desses lugares-comuns de um marxismo enferrujado é essencial para se problematizar as complexidades do mundo contemporâneo.
https://bertonesousa.wordpress.com/2016/01/08/alguem-falou-em-luta-de-classes/

Canetada de Aécio Neves provoca demissão de quase 60 mil em MG

"A última segunda-feira foi o primeiro dia do oficial desligamento dos 60 mil funcionários. Por que será que nenhum jornal deu destaque a tal absurdo? 

Faustino Rodrigues,

O Brasil tem 5.037 municípios com uma população de até 50 mil habitantes. Isso equivale a mais de 90% de um total de 5.561 municipalidades. Os números contrastam e revelam que uma parte significativa da população brasileira vive em cidades que, para os nossos padrões, são consideradas pequenas. Sua existência é quase inacreditável para um paulistano típico, nascido e criado em uma das maiores cidades do mundo, em meio a outros 10 milhões de pessoas.

Os números acima revelam. Porém, os jornais, não. Essa semana vivemos mais um capítulo do imbróglio mineiro da lei 100. O Supremo Tribunal Federal determinou que quase 59.412 servidores públicos, efetivados em uma canetada, em 2007, pelo então governador Aécio Neves, hoje senador e atual presidente de seu partido, o PSDB, fossem desligados[1]. O STF alega inconstitucionalidade no processo de admissão do funcionalismo público que, como se sabe, se faz exclusivamente por concurso público, de concorrência ampla em praticamente todos os seus setores e instâncias – federal, estadual e municipal[2]. O senhor Aécio parece que não entendeu.

Devido à carência da cobertura jornalística, os números de servidores efetivados em 2007 são incertos. Mas, já se fala em cerca de 76 mil. Descontando os aposentados e desligados por motivos diversos, o saldo da dispensa determinada pelo STF é de 60 mil. Como visto no primeiro parágrafo deste texto, se reuníssemos todos esses servidores em um mesmo lugar, teríamos mais uma cidade brasileira. Para deixar os nossos números mais interessantes, uma comparação bem popular: à exceção do Flamengo e Coritiba, no dia 17 de setembro, em Brasília, nenhum outro jogo do Brasileirão 2015 chegou à cifra dos 60 mil.

José Murilo de Carvalho, em seu Construção da ordem, demonstra como os bacharéis coimbrenses do século XIX, filhos da elite agrária brasileira, ao voltarem para o Brasil, encontram-se praticamente distantes de qualquer possibilidade de uma atuação profissional que garanta o mesmo “prestígio” político e econômico de seus pais, de sua tradicional família. E assim ingressam no serviço público – contribuindo, quiçá, para a compreensão do motivo de alguns de seus salários serem tão exorbitantes (mas isso é conversa para outro texto). Faz-se, então, a fama de um funcionalismo público, alvo de muitos comentários jocosos, que, a despeito da qualificação profissional, garante uma estabilidade econômica invejável por muitos. Debalde a constante instabilidade da política e economia tupiniquim, ter o salário garantido no final do mês é uma grande vantagem.

Nada mais do que normal que estes funcionários efetivados na canetada do senador mineiro adquiram dívidas – como a da casa própria – e planejem o seu futuro, as vezes o futuro de uma família em função do cargo concedido por uma autoridade política e administrativa como o próprio governador[3]. Com tal chancela, pensa-se, minimamente, que ele sabe o que está fazendo. Aliás, admite-o como uma figura extremamente preocupada com a máquina pública e com a qualidade dos serviços à medida em que procede de tal maneira. Para alguns, designados por eternos contratos, sempre renovados, isso soa como uma calma e fina canção mineira como a de Milton Nascimento.

Mas, não. Não foi muito difícil para o STF determinar a inconstitucionalidade da tal lei 100. E, agindo constitucionalmente, determina a sua revogação, bem como a devolução dos cargos indevidamente ocupados ao governo do estado de Minas Gerais, que, por sua vez, deve tomar providências para a sua ocupação através de concurso ou novas designações contratuais. É difícil discordar do STF. Mas, é difícil não se comover com as vidas que aí estão em jogo – vítimas da irresponsabilidade administrativa de uma pessoa. A mídia nacional, entretanto, parece não se preocupar muito.

A última segunda-feira, dia 04 de janeiro de 2016, foi o primeiro dia do oficial desligamento dos funcionários da lei 100 – a maioria alocados na educação pública estadual. Sendo eu juiz-forano, digo que saiu uma nota aquém do destaque merecido no principal diário da cidade, o Tribuna de Minas. Na Folha de São Paulo, nada. No periódico da família Frias um assunto como este perde fácil a disputa para notícias sobre o parlamento venezuelano e novos valores da passagem de ônibus em algumas capitais. Pelo lado da família Marinho as atenções estão para o crack chinês e o seu fortíssimo indício de que a crise econômica não é só no Brasil, exigindo de seu jornalismo novas estratégias políticas de abordagem do tema. Até mesmo no mencionado jornal da Zona da Mata mineira as informações quanto a um acidente na avenida JK, em Juiz de Fora, adquirem mais destaque por mais tempo – aliás, manifesto a minha solidariedade às vítimas.

Resumindo, se um estádio de futebol lotado em mais de 90% de sua capacidade com funcionalismo público mineiro desaparece, a grande mídia brasileira não tem nada com isso. Pode-se exterminar toda uma cidade que isso não é importante. É óbvia a responsabilidade do político tucano, com imagem recentemente abalada pelas declarações de Carlos Alexandre de Souza Rocha, o Ceará, funcionário de Alberto Youssef, na já familiar Lava-Jato. É igualmente óbvia a sua responsabilidade, enquanto gestor de uma unidade federativa, pelo destino de quase 60 mil pessoas efetivadas por uma canetada, bem como dos recursos públicos movimentados neste caso. A quem interessa a desinformação?

Em clima de denúncia política, ingerência na administração pública é algo praticamente irrelevante – a não ser que se possa associar a atividades relativas a bicicletas, como pedaladas e ciclovias. Além de responder às denúncias de corrupção feitas pelo mesmo delator que o PSDB outrora atribuía tanta autoridade, há que responder também por incompetência. Dizia Wanderley Guilherme dos Santos que se as instituições políticas falham, resta o caráter.

No caso mineiro, com a administração nas mãos de Aécio, as instituições falharam. Sobrou apenas seu caráter – o mesmo acusado por Ceará. Agora, questiono-me fundamentado nos preceitos mais éticos do jornalismo se o princípio de Wanderley não poderia ser transposto para os veículos de informação. Eles, com suas instituições, não falhariam ao não veicularem com a devida importância algo de tamanha relevância para o Brasil? E, se falharam, resta-nos o caráter destes jornalistas? Se, sim: que dó.

Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista, professor e cientista social

[1] http://www.iof.mg.gov.br/index.php?/institucional-2/missao/anexoextra31.html

[2] http://www.tribunademinas.com.br/mais-de-73-mil-servidores-de-mg-sao-desligados-pela-lei-100/

[3] https://www.youtube.com/channel/UC4IapcuhDt8EXjcRcbacZCA 

Os muros da vergonha

Muro da Cisjordânia (760 km)



O que está a acontecer na América Latina? Após a primavera progressiva, somos testemunhas do regresso do inverno neoliberal reaccionário?

Michel Collon é um activista comunista, jornalista, ensaísta belga, fundador do colectivo independente Investig'Action. Neste podemos encontrar um artigo cujo título já diz muito: "Os muros da vergonha", publicado também no nº 9 de Le Journal Notre Amérique. Os novos muros podem também ser o símbolo duma "marcha atrás" no plano social? A palavra aos Leitores. Por enquanto, aqui vai a tradução.

Os muros da vergonha da América Latina

Mais de um quarto de século depois da queda do Muro de Berlim e enquanto os apologistas do neoliberalismo não se cansam de glorificar os méritos da globalização, o mundo nunca viu um tal número de muros. Cada dia mais presente na Europa, construídos para proteger-se dos imigrantes e dos refugiados que fogem da guerra e da miséria, as paredes tornaram-se novos marcadores geográficos para repelir os indesejáveis.

O que se sabe e é que estes enormes fortalezas também servem para separar os ricos dos pobres e criar segregação social, territorial e racial. Na América Latina, onde a desigualdade tem sido particularmente evidente, a construção de muros tem acelerado nos últimos anos, aprofundando o fosso que separa aqueles que possuem todos daqueles que nada têm.

...para não misturar aqueles de cima com aqueles de baixo

Há quatro anos que os habitantes do subúrbio deVista Hermosa, nas alturas de Lima, são incapazes de ver o panorama da capital.
Por qual razão? Por causa dum muro de mais de dez quilómetros de comprimento e três metros de altura que os separa de um dos bairros mais luxuosos da capital: Las Casuarinas.

"A vista daqui era muito bonita; era possível ver toda a cidade, até que chegaram os de Las Casuarinas e construíram o muro; fecharam-nos a vista para que não seja possível olhar para o lado dele, porque não estamos ao mesmo nível" afirma Amadeo Alarcon, um residente de Vista Hermosa.

Dum lado, então, casas feitas com tudo o que vem à mão. Sem gás, sem eletricidade, sem água corrente. Deste lado da parede, uma casa vale menos de três centenas de Dólares.

Do outro lado da parede, no entanto, é um outro mundo. Lá, as casas podem valer até cinco milhões de Dólares. Lá vive a parte burguesa do País. Enquanto os primeiros pagam uma fortuna a água para as necessidades básicas, os segundos desfrutam de água abundante e barata para preencher as suas vastas piscinas.

A construção deste "muro da vergonha", como é chamado pelos habitantes das favelas, iniciou em 1980, "na altura do terrorismo e das invasões do Peru", explica Elke McDonald que vive em Las Casuarinas.

Os anos '80 foram marcados pela terrível guerra civil em que os guerrilheiros marxistas do Sendero Luminoso enfrentaram o governo peruano. Forçados a fugir dos combates, muitos agricultores migraram para a capital e encontraram refúgio nestas colinas íngremes, onde as condições de vida eram terríveis.

Mais de vinte anos após o conflito que causou mais de setenta mil mortos, muitos agricultores ainda vêm para a capital em busca dum futuro melhor para as sua família. Mas porque ainda chegam? A resposta é dada pelas políticas económicas prosseguidas por décadas no Peru, cujas primeiras vítimas são as populações indígenas.

Muito dependente das exportações, a economia peruana é quase exclusivamente baseada na extracção de metais (ouro, cobre, zinco...). Para melhor gerir esta actividade, os sucessivos governos não pouparam meios para atrair os investidores e os estrangeiros se apressaram: o País é um Éden para as multinacionais que acumularam lucros fabulosos.

Na região de Cajamarca, por exemplo, as actividades criminosas da poderosa multinacional dos EUA, a Newmont, têm provocado o êxodo de milhares de famílias rurais, expulsos das suas terras pelas autoridades para abrir o caminho à pilhagem dos recursos minerais.

Muitas vezes vítimas da repressão policial, quando não atiradas para a prisão ou simplesmente assassinadas, as comunidades indígenas encontram refúgio nas grandes cidades e particularmente na capital, onde vêm para engrossar as fileiras dos sem-abrigo e dos excluídos da sociedade.

Para proteger-se destes náufragos do sistema, que as elites peruanas consideram perigosos e muitas vezes rotulados como criminosos, os moradores ricos de Las Casuarinas construíram este muro com a aprovação das autoridades.

Estes ricos simplesmente consideram o muro como uma medida de segurança: "Qualquer pessoa tem o direito de fechar a sua propriedade privada para protege-la" defende o senhor McDonald que acrescenta: "Este é o melhor lugar no Peru pois pode-se caminhar e dormir em paz. Todos nós pagamos uma contribuição mensal de 100 Dólares para a segurança".

No entanto, na opinião de Alicia Yupamqui que vive numa barraca, aquela é uma parede que discrimina. "Acho que o muro foi construído para não misturar aqueles de cima com aqueles de baixo" continua Sara Torres, outra moradora do bairro.

Outra cidade no continente com um fenómeno similar: São Paulo. Megalópole de mais de onze milhões de habitantes, é o coração económico do Brasil.

Há também enormes desigualdades e discriminações, simbolizadas pelo muro que separa a favela de Paraisópolis, onde moram setenta mil habitantes, do bairro rico de Morumbi. Dum lado: quatorze mil casas de madeira e plástico; do outro, apartamentos que podem valer até 700.000 Euros.

Enquanto alguns não têm serviços públicos, outros têm consultas no Hospital Albert Einstein, um dos mais famosos e caros do País. As pessoas de ambos os bairros não se falam, não se frequentam, não se conhecem. "Nós não misturar-nos com eles. Eles ficam lá e nós aqui" diz um morador da favela.

A cidade, e mais geralmente o Estado de São Paulo, atrai todos os anos milhares de pessoas que vêm principalmente das pobres regiões setentrionais em busca de trabalho e melhores condições de vida.

A violência simbólica

Na sua obra-prima, As Veias Abertas da América Latina, publicado em 1971, o escritor Eduardo Galeano dava o alarme e denunciava o espetáculo insuportável de miséria e desigualdade que assola o continente. Mais de quarenta anos se passaram e, embora houvesse não poucos progressos em termos de redução da pobreza, da analfabetismo, erradicação ou luta contra a fome, a América Latina ainda tem muitas dificuldades para curar todas as feridas.

Após ter sido um laboratório das políticas neoliberais, políticas que fizeram crescer o número de pobres desde 136 milhões em 1980 para 225 milhões no início de 2000, o subcontinente americano conheceu durante a década passada sucessos sociais sem precedentes. Novos Países (Bolívia, Venezuela) foram declarados pela UNESCO "livres de analfabetismo".

Essas políticas sociais foram aplicadas em particular graças ao aumento dos preços das matérias primas, das quais dependem essencialmente as economias latino-americanos. Mas a crise económica e financeira de 2008, com a queda dos preços das matérias primas nos últimos anos, têm influído duramente nas Nações sul-americanas.

O Brasil, onde a política da Presidente Dilma Rousseff dia após dia tem virado para Direita, tem abandonado os movimentos sociais e as desigualdades são particularmente escandalosas. Depois do Honduras, o Brasil é o País menos igualitário nas Américas.

No Peru, embora a pobreza tenha diminuído da metade nos últimos anos, em particular graças a um crescimento económico de cerca de 6,5%, ainda há grandes disparidades. Há desigualdades sociais, mas também regional e mesmo racial. De facto, em 2004 a possibilidade dum habitante da campanha de cair na pobreza era duas vezes mais elevada do que no caso dum morador da cidade. Em 2014, essa mesma probabilidade era três vezes maior. Os Peruanos de língua materna indígena (aimara, quíchua...) são duas vezes mais propensos a cair na pobreza do que aqueles cuja língua materna é o castelhano.

As paredes erigidas em Lima ou São Paulo são o símbolo desta terra de contrastes chamada América Latina. Um continente e uns povos que lutam há mais de quinhentos anos para alcançar libertação e independência.

Estas imensas fortalezas também trazem à tona o caráter racista das elites latino-americanas, que muitas vezes sentem desprezo e repugnante perante pessoas pobres e indígenas.. Este "muros da vergonha" ficam muito perto da violência simbólica, uma violência que não fere os corpos, mas as mentes. Uma violência subtil que não mata, mas contribui para criar frustrações e desespero naqueles que não têm a sorte de ficar do lado "bom" da parede.

O enfraquecimento dos governos de Esquerda e ofensiva da Direita latino-americana ameaçam muitos os avanços sociais destes últimos quinze anos, como na Argentina, por exemplo. A liderar o protesto contra as políticas neoliberais, os movimentos sociais poderia muito bem voltar a actuar para derrubar aquelas paredes indignas e pôr um ponto final com estas sociedades altamente desiguais.

Nota: há outros muros da vergonha. Para ficar no Peru, e precisamente na zona de Lima, lembramos os recentes La Molina-SJM, Sta. María/VMT -Manchay/Pachacamac, Villa María del Triunfo...

Em 2004 o governo do Estado de Rio de Janeiro anunciou a intenção de construir um muro de 3 metros de altura para cercar 4 favelas (Rocinha, Vidigal, Parque da Cidade y Chácara del Cielo), todavia o projecto não teve seguimento.


Ipse dixit.

Fontes: Investig'ActionLe Journal Notre Amérique (nº 9), Limamalalima