Luta de classes é um termo central das relações políticas no Ocidente desde o século 19 e é impossível pensar nisso sem remetermos a Marx, ao Manifesto Comunista de 1848 e a outras obras suas e de Engels. Naquele contexto a luta de classes dizia respeito ao antagonismo entre o proletariado e a burguesia e, seguindo a trilha dos socialistas franceses, Marx pensou esse conflito como uma etapa que levaria ao socialismo. Ora, o socialismo não representaria ainda o fim das diferenças de classes, mas a tomada de poder pelo proletariado e o fim de sua subjugação pela burguesia.
Luta de classes é um conceito da modernidade sólida, da sociedade industrial, é um conceito que remete à sociedade do trabalho, que produziu movimentos como o ludismo e permitiu a formulação de ideologias sociais que tinham como foco as tensões dessa sociedade, como o socialismo, o anarquismo e o fascismo. Essas ideologias buscavam arregimentar os trabalhadores para uma revolução social e se opunham ao liberalismo burguês. O anarquismo e socialismo à esquerda e o fascismo à direita foram as ideologias da era das massas.
Essas ideologias perderam força à medida que o trabalho se deslocou das fábricas para os setores de serviços e informação e o proletariado praticamente desapareceu como classe. O fascismo foi derrotado na guerra e o socialismo fracassou em seu projeto de construção de uma sociedade utópica e, como não há mais socialismo como perspectiva nem existe mais uma classe que atenda pelo nome de proletariado, não podemos mais falar em luta de classes.
As utopias sociais estão mortas e já não expressam os anseios dos trabalhadores. Por outro lado, muitas de suas promessas se tornaram viáveis sem revolução social, como a jornada de oito horas, a flexibilização da mão de obra, a elevação da qualidade de vida dos trabalhadores e a universalização de direitos trabalhistas. Essas conquistas foram em grande parte resultado das próprias lutas trabalhistas no interior do capitalismo e se ampliaram como resultado da especialização dos trabalhadores e das mudanças paradigmáticas da sociedade pós-industrial.
Como afirma Kumar, a publicidade fundiu o cultural e o econômico, o fim da política de classes passou a focar o cidadão como consumidor e o pluralismo de valores e estilos de vida resultaram na afirmação de comportamentos individualistas. Isso não significa que as desigualdades sociais tenham desaparecido, óbvio que não, assim como o desemprego e a exploração da mão de obra. Nos países ricos, as mudanças nas relações de trabalho ocorreram mais rapidamente do que em países periféricos como o Brasil, mas desigualdades sociais e lutas de classes são coisas distintas. Um funcionário de uma empresa como o McDonald’s, por exemplo, pode ter uma jornada de trabalho extenuante, mas ele pode procurar e receber uma oferta de trabalho melhor de outra empresa e migrar para ela; pode também buscar um curso superior e profissionalizante e com isso planejar uma carreira.
Com a diluição da noção de proletariado o que passou a existir foram segmentos distintos de trabalhadores que fazem reivindicações pontuais junto aos patrões ou a governos por melhores condições de trabalho e de salários. É assim que médicos, professores, funcionários públicos, garis, caminhoneiros e outros grupos agem. Contudo, não há elementos que possam uni-los em torno de um ideal porque não formam uma classe, mas categorias de profissionais. Além disso, a ascensão do trabalhador autônomo e do microempreendedor se tornou um ideal de muitas pessoas de baixa renda que almejam ampliar seus proventos sem submeter-se a um patronato.
Em geral, o que os trabalhadores almejam é a ascensão à classe média, não a derrocada do sistema capitalista. Como afirmei em outro texto e volto a repetir: “Os pobres não estão interessados em revolução ou coletivização, mas em qualidade de vida, sem supressão de liberdades democráticas. As revoluções e coletivizações do século 20 atuaram no sentido contrário a essas demandas”. Mesmo assim, as noções de direita e esquerda ainda permanecem mas não podem mais ser pensadas como se o mundo ainda estivesse vivendo a divisão capitalismo versus socialismo.
A melhoria da qualidade de vida dos mais pobres passa pelos investimentos em políticas públicas e sociais e pela busca de qualificação profissional. Afirmar isso não implica um convite ao conformismo e ao abandono de perspectivas de futuro. Pensar um futuro melhor que o presente faz parte de nossa condição como indivíduos modernos, mas o que está em questão é que as narrativas universalistas da modernidade sólida, isto é, as ideologias da sociedade do trabalho, não estão mais na ordem do dia. Elas propunham soluções universais a partir dos desajustes sociais provocados pelo sistema fabril. Na sociedade contemporânea, a pluralidade cultural substituiu a política de classes e os projetos de uma sociedade utópica cederam lugar à dispersão identitária. Krishan Kumar discute longamente essa questão no livro “Da Sociedade pós-industrial à pós-moderna”. O conceito de hipermodernidade de Gilles Lipovetsky também contém elementos importantes pra se pensar essa questão.
Outra consequência disso é o afastamento da política por parte dos indivíduos e um declínio geral da vida pública. Com a ampliação das horas de descanso e o avanço das comunicações, o entretenimento e a busca por satisfação pessoal, resultado de uma sociedade que enfatiza o sucesso pessoal e o individualismo, além das múltiplas possibilidades de convício social e espiritualidade, se tornam os focos de busca por amplos contingentes de pessoas. Nesse ponto, também é importante a ênfase de Bauman em algumas de suas obras no papel dos “especialistas em identidade” e na necessidade de compartilhamentos de experiências de vida em um contexto em que os indivíduos passam a ser interpelados como consumidores, não mais como produtores.
O fosso que ainda existe entre ricos e pobres pode ser atenuado através de políticas de caráter social-democrata e de programas de redistribuição direta de renda, como vimos com o Bolsa Família criado no governo Lula. Pensar a redução do desemprego e da pobreza deve passar prioritariamente pelas políticas de inclusão e redistribuição de renda. Por outro lado, apesar de a concentração de renda e a miséria persistirem em muitas partes do mundo, os grandes conflitos de nossa época não têm caráter classista, mas são conflitos de natureza étnica, religiosa ou de busca por direitos sociais por parte de minorias, como negros, mulheres e homossexuais ou minorias étnicas. A busca por afirmação de direitos individuais inviabiliza a retomada de qualquer projeto coletivista da modernidade sólida.
O que aqui se coloca não é a mera afirmação de uma pós-modernidade, mas de uma segunda modernidade que já estamos vivendo, como aborda Lipovetsky. É uma modernidade marcada por múltiplas temporalidades, como a positivação da terceira idade, o culto ao imediatismo e ao tempo presente, uma modernidade que busca a integração, não mais a destruição de um passado para a construção da utopia. E, ao contrário do que muitos afirmam, nossa época não é carente de valores e muitos valores não deixaram de ser estimados e cultivados, como as noções de direitos humanos, honestidade, valorização da infância, proteção a idosos e mulheres, rejeição da violência e crueldade, o voluntariado, a proteção a minorias, o senso de responsabilidade por gerações futuras, movimentos beneficentes de massa, etc. Há um esforço crescente sobre a responsabilidade de todos com a preservação da natureza, a redução das emissões de poluentes pelos países mais industrializados e a necessidade de pensar soluções globais para nossos problemas. Vivemos uma segunda modernidade com múltiplas demandas, consciente de suas múltiplas temporalidades e multi-culturalista.
Por todas essas questões, luta de classes não é mais um conceito que explica nossa época, não é mais um conceito para a nossa modernidade ou que ainda possa abrir perspectivas de futuro. Só é utilizado por militantes de partidos de esquerda radicais, que não conseguem refletir para além das cartilhas de suas legendas e por intelectuais marxistas intransigentes que só leem autores com quem concordam. Sair desses lugares-comuns de um marxismo enferrujado é essencial para se problematizar as complexidades do mundo contemporâneo.
https://bertonesousa.wordpress.com/2016/01/08/alguem-falou-em-luta-de-classes/
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