Classifica-se de “grau zero” o instante, o ponto, o momento a partir do qual o objeto pensado perde o seu significado, sendo aniquilado em seu sentido axiológico, esvaziando-se completamente de sentido e finalidade. Instaurado esse niilismo essencial, o objeto pode continuar formalmente a existir, porém encontrando fundamento de validade em outra dimensão da realidade estrutural e com alteração das regras até então estabelecidas. No fundo, deixa de existir e o que subsiste é coisa distinta, de outra essência e com outra finalidade.
Nesse sentido, grau zero da política seria o momento a partir do qual a política se despe de sua finalidade histórica de instrumento de mediação entre os diversos interesses conflitantes na sociedade em torno dos modos de direcionamento das demandas públicas. Através da política se evita a necessidade de utilização da força física, bruta, como meio de vencer as discussões públicas, o que sempre privilegiará os mais fortes em detrimento dos desfavorecidos, desequilibrando a balança social.
Dito de outro modo, o grau zero da política se materializa pela impossibilidade prática de a classe política exercer influência efetiva na política real do estado-nação. Nada mais representa do que um retorno virtual ao estado de natureza, que opera sob a lógica da lei do mais forte.
Instaurado o grau zero, a classe política , impotente, deixa de perseguir o desenvolvimento de ações públicas verdadeiramente necessárias ao bem-estar da população, passando a legislar exclusivamente em prol de interesses das elites dominantes e de suas corporações ou, ainda, em favor dos interesses pessoais deles próprios, deixando ao abandono sua missão representativa dos eleitores.
Claro que aqui não se entende por política a mera expressão da prevalência da força sobre os interesses ou vontade da maioria, que representa, na verdade, a negação da política. A guerra não é, como se costuma dizer, o prosseguimento da política por outros meios, mas a consequência material do fracasso da política. Toda vez que a força se impõe se está diante do esvaziamento da política.
O filósofo francês Baudrillard, que pontificava a existência de uma realidade "real" subjacente à realidade virtual que vivenciamos (com isso inspirando os diretores do filme Matrix), era bastante incisivo quanto às limitações do poder dos políticos eleitos: segundo ele, esse poder simplesmente não existia.
Bauman sustenta que, com a globalização, finalmente chegamos ao "grau zero da política". O sociólogo polonês, se referia, claro, ao mundo inteiro; o Brasil não é exceção.
A negação da política, ou sua reversão em outra coisa, decorre pura e simplesmente da extrema influência de uma força notável - o poder financeiro - sobre um sistema político que possui pouca ou nenhuma proteção em relação à malignidade dessa influência.
Por conta dessa interferência, há uma degeneração da atuação política, do que resulta que, na prática, os governos das nações deixaram de possui poder efetivo, subjugados que foram pelas forças econômicas. Assim, pode-se legitimamente questionar o benefício público de toda ação governamental, interna ou externa.
Apenas como exemplo, qual teria sido a real motivação para a invasão do Iraque? Uma suposta defesa do povo iraquiano assassinado por Saddam? E como isso se coaduna com o número muito maior de mortos entre civis que veio a partir da "proteção" dos iraquianos pelo exército dos EUA? Ou o motivo seria a proteção do mundo contra a fabricação de armas em destruição em massa? Como conciliar isso com a sistemática negação de sua existência por diversas fiscalizações da ONU, prévias à invasão americana, inexistência que foi confirmada no pós-guerra?
É racional e inteligente entender que um país altamente endividado, como os EUA, cuja população em geral não demonstra simpatia pelos islamitas, iria se meter numa guerra com um país soberano para cândida e graciosamente interferir em benefício de um povo muçulmano? Em nome da liberdade, democracia e justiça? Parece um pouco ingênuo, inclusive se observado que diversos povos africanos penam há décadas com regimes facínoras e genocidas, useiros e vezeiros em dizimar ou mutilar tribos inteiras, sem que os americanos demonstrem qualquer compaixão ou tão elevado espírito altruísta.
Não parece mais coerente compreender a invasão do Iraque sob a lógica de um exercício puramente econômico dos conglomerados, interessados em interromper a ociosidade da indústria bélica, em pôr as mãos no petróleo iraquiano e na reconstrução da infraestrutura destruída pela própria guerra? Afinal, a maior lição ensinada a quem quer solucionar um crime é "siga o dinheiro".
Seria o caso, até, num exercício de reflexão extremado, refletir sobre os verdadeiros interesses subjacentes à derrubada das torres gêmeas. Será que Osama realmente considerou que seria uma ótima jogada, muito lucrativa para a sua luta, sequestrar aviões e jogá-los contra prédios americanos? Ou haveria coisa bem mais sórdida, e quase inacreditável, por detrás dessas ações suicidas?
São ações assim que sinalizam para a instalação do grau zero na política. As ações governamentais passam a materializar apenas os interesses dos que controlam a economia. A palavra economia, aqui, é utilizada em sua acepção mais ampla, não incluindo somente a porção produtiva, e saudável, desse jardim, mas também sua erva daninha, o rentismo. A distinção é importante, pois o setor produtivo acaba sendo, de certa forma, prejudicado pela ação dos rentistas, os sanguessugas da humanidade. Esses últimos é que, em geral, exercem mais pressão e força sobre a política econômica e, consequentemente, sobre a política.
O grau zero de política degenera a atuação de todos os atores políticos e todos os poderes da república.
No Brasil, estamos assistindo ao massacre da democracia pela atuação conjunta das instituições por conta da atuação de um governo que foi visto, desde o início, como obstáculo aos interesses corporativos. Judiciário, legislativo, ministério público e polícia federal uniram-se para destituir um governo legitimamente eleito sob as mais estapafúrdias alegações e contra a ordem legal. Essa atuação conjunta foi importante para tentar conferir um ar de legitimidade ao que o mundo inteiro já reconheceu como golpe na democracia. Hoje somos comparados ao Paraguai e à Honduras, sem demérito para esses países, cujas forças políticas encenaram essa mesma farsa.
Qual o verdadeiro pecado do PT? Corrupção? Violação da lei de responsabilidade fiscal?
A primeira resposta é não, a Dilma não está sendo acusada de corrupção.
Em relação à primeira, não há nenhuma dúvida. Nem mesmo os veículos mais sujos da mídia, que figuram entre as maiores empresas de informação do país, acusam a Dilma de corrupta.
Num regime democrático e num estado de direito, não se pode compensar uma suposta impunidade por conta de acusação grave que não se consegue provar através de pesada punição por outra infração leve, esta comprovada. Alguém poderia lembrar Capone. Ocorre que, lá, a condenação de Capone foi proporcional ao crime cometido e provado: sonegação fiscal. Não se tratou, como pode parecer, de condenação além do limite legal para compensar os assassinatos por ele cometidos.
Aqui, o impeachment de Dilma em decorrência das "pedaladas", como chamou a atenção a senadora Gleisi Hoffmann, constituiria uma condenação absolutamente desproporcional ao suposto ilícito, algo como condenar alguém à morte em função de uma infração de trânsito. É importante relembrar: o impeachment de Dilma por esse motivo exigiria o impeachment de diversos governadores de estado que sempre fizeram o mesmo, inclusive Geraldo Alckmin. O próprio relator do impeachment no senado, quando governador, cometeu as malsinadas pedaladas. Claramente se percebe o exagero.
Além disso, a segunda resposta é, não, a Dilma não violou a lei de responsabilidade fiscal.
Como não conseguiram ligar Dilma à alegada corrupção do PT, apegaram-se a uma suposta violação à lei fiscal e orçamentária. Ocorre que foi comprovado, tanto na câmara dos deputados, como no senado, que as supostas violações, apelidadas de "pedaladas" ocorreram antes da mudança da lei e, mais, foram posteriormente autorizadas pelo congresso. Ou seja, ela não poderia mais sofrer sanção por conta delas.
Além disso, as alegadas "pedaladas" de 2015, que poderiam ensejar a punição, se referem a ano orçamentário que não havia ainda se encerrado quando a denúncia foi formulada, de modo que se trata de acusação contra contas que não foram analisadas, nem pelo TCU, nem pelo congresso. E, como cereja do bolo, o técnico do TCU, em depoimento no congresso, reconheceu que em 2015 elas não ocorreram.
Se Dilma não é corrupta e sua conduta orçamentária e fiscal em nada difere do que sempre foi praticado no governo federal e nos governos estaduais, por que, então, se deseja o seu impeachment?
A resposta implica retornamos à questão do grau zero de política.
O fato é que os governos do PT fugiram ao rigor extremo da cartilha do niilismo político que os poderes globalizantes desejam seja praticada pelos diversos governos nacionais, principalmente pelas nações da periferia, como o Brasil.
Como governo, o PT em nada alterou o panorama de extrema lucratividade das corporações. Bancos, seguradoras e montadoras de veículos nunca lucraram tanto. Rentistas auferiram lucros gigantescos, com os juros na estratosfera. Tampouco promoveu alterações no sistema político nacional. O que era dantes, permaneceu após. No caso dos lucros, até foram ampliados.
Essa inapetência por avançar nas grandes fortunas e por engendrar uma reforma política, gerou inclusive imensa frustração em parte considerável de seus eleitores e representantes políticos. Não por outro motivo, criou-se o PSol, imagem e semelhança do PT histórico.
Contudo, houve uma pequena diferença em relação aos governos pretéritos: um considerável avanço social e uma inegável inclinação para o republicanismo nas instituições (é importante relembrar que os membros da Lava-Jato assim reconheceram e confessaram temer, sem trocadilho, que isso se modifique no novo governo).
Aqui convém abrir um parênteses para destacar que democracia não se caracteriza pela independência de suas diversas instituições. Se cada divisão do poder obtiver independência financeira e auto-determinação, tal regime estará mais próximo da anarquia do que da democracia. Quem controlará tantas instituições se cada uma delas resolver trilhar uma política distinta daquela determinada pelo governante que foi eleito pelo povo? Delegados de polícia federal, procuradores do ministério público, conselheiros de tribunal de contas e presidentes de banco central não são eleitos pelo povo. Estritamente falando, nenhum deles fala diretamente em nome do povo, pois não gozam da legitimidade somente conferida pelas urnas, pelo voto popular.
Polícia, ministério público e banco central, para ficar nesses exemplos, são órgãos de apoio ao mandatário popular. Nesse sentido, devem obediência à política que foi escolhida pelos eleitores. Pouco importa o pensamento do dirigente do banco central quanto aos rumos da economia. O que interessa é qual o discurso econômico sagrado vitorioso na soberana escolha da população. Isso porque, em última análise, será ela que irá suportar as consequências da própria decisão.
Idêntico raciocínio vale para a polícia federal e para o ministério público. Aliás, falar em independência para qualquer polícia é praticamente um despautério. Nenhuma força pública armada deve ser independente, o risco é demasiado. Quanto ao ministério público, somente caberia falar em independência, ainda assim com severas reservas, se o procurador geral fosse eleito pelo povo, quiçá, como ocorre no Supremo, dentre qualquer cidadão de notório saber jurídico, e não por e apenas entre seus próprios pares, o que lhes retira, das decisões e encaminhamentos, tanto legitimidade, como independência.
Parece óbvio afirmar, mas ainda se afirmará, que os componentes dessas instituições que almejam a independência não estão vacinados contra as mesmas doenças institucionais que acometem as pessoas públicas eleitas, como corrupção, violência e arbitrariedade no uso do poder. A diferença, crucial, é que não se sujeitam ao controle popular de tempos em tempos.
Dar independência a diversas ramificações do poder é um modo bastante eficaz de suprimir poderes políticos aos eleitos pelo povo. Atende aos interessados em aniquilar a política.
O PT estendeu demais a corda da independência das instituições, contando que isso seria assim compreendido pelos representantes dessas instituições. Perdeu a aposta e está sendo engolido pelos "independentes", cujo déficit de inteligência não permite visualizar que está matando o seu libertador. Em futuro próximo, consolidado o afastamento do PT, todas estas instituições serão recolocadas em suas devidas "caixinhas", de onde na verdade jamais deveriam ter saído.
Voltando ao impeachment de Dilma, o empoderamento dos pobres desagradou aos poderosos desde o primeiro mandato de Lula, que era para ser único, um experimento social, por assim dizer. Com a sucessão de eleições perdidas, o stablishment não viu outra opção, senão convocar os ingênuos para realizar o seu trabalho sujo: anular os votos dados pela população a um projeto político, tudo disfarçado sob a capa da legalidade. Como fazer isso?
Simples: disseminando a falsa ideia de exclusiva imputação ao PT de todos os defeitos inerentes ao sistema (ou seja, que atingem a todos indistintamente), bem como de autoria de crimes políticos típicos daqueles que governaram até então. Pior: sem prova da prática desses crimes, apenas explorando, através de manchetes escandalosas, o lado mórbido da população, afeita a aderir a linchamentos sem maiores reflexões, resultado da frustração decorrente da sensação geral de impunidade.
A história não começou agora, com o processo do impeachment, nem mesmo com o escândalo da Petrobras. É coisa cujo nascimento é quase coincidente com a ascensão do PT. Tudo começa com o Procurador Antonio Fernando de Souza e com o ministro Joaquim Barbosa, no processo alcunhado de "mensalão". Boa-fé e vontade de fazer o certo? Pode ser que sim, caso em que seria necessário acrescentar toneladas de ingenuidade em ambos.
Como pontifica o jornalista Paulo Moreira Leite em seu livro "A outra história do mensalão", todo o processo e, como conclusão, a condenação, foi fundado, não em provas, mas em fatos que "ouvi dizer", do quais "não se pode supor outra coisa" e que "todo mundo sabe que é assim".
Além de diversos equívocos na análise do acervo probatório, como identifica PML no livro, vários deles capazes de inverter o convencimento para a absolvição, fica para a história o voto de uma ministra do Supremo Tribunal Federal, de cujos componentes deseja-se um profundo conhecimento de ciências humanas, além de Direito, proferido em processo penal, ciência cujo rigor exigido na análise dos aspectos fáticos de um processo se funda na possibilidade de cassação do maior direito do ser humano após a vida, que é a liberdade, segundo a qual é possível uma condenação sem provas, com base apenas na literatura jurídica (talvez seja importante lembrar que um de seus principais assessores, em tão sábio entendimento, era o juiz Sérgio Moro, que agora dispensa apresentações).
Fica para a história, no mesmo processo penal, a convocação de uma tese jurídica alienígena, a do domínio do fato, para a condenação de alguém sem provas, somente pelo fato de se presumir, por ser líder, que tinha conhecimento e liderança sobre o delito. Entendimento que, posteriormente, foi rechaçado, com horror, pelo maior teórico da tese, segundo o qual em nenhum momento se pretendeu ou advogou a condenação de alguém sem prova material do crime.
Isso ao mesmo tempo em que, para os políticos que representam os interesses dos poderosos, tudo continua como dantes no quartel de abrantes. Nenhuma dessas inovações jurídicas é utilizada em relação a outros políticos, não alinhados com o governo petista. Por exemplo, o processo do mensalão tucano, em tudo similar ao do PT, segue rumos processuais absolutamente distintos.
Abertas as comportas da tolerância com entendimentos jurídicos de exceção, abre-se a oportunidade para o surgimento de juízos de persecução que mitigam conceitos sagrados pertinentes à ampla defesa e ao princípio de presunção da inocência. Como no mensalão, somente em relação ao governo do PT. Nada é apurado em relação, por exemplo, ao PSDB.
Essa é a demonstração máxima de que o grau zero da política está instituído. Mandam os poderosos, os políticos obedecem. Quem desafina nesse coro é institucionalmente defenestrado. Sempre fundamentado nos mais elegantes discursos jurídicos de aprovação.
Como combater o grau zero da política? Institucionalmente, parece impossível. Em princípio, força somente se combate com força. Justamente por isso é que a humanidade inventou a política, como meio de evitar o derramamento de sangue.
Quando a política falha em sua finalidade precípua e histórica, à população acuada somente restam duas soluções: resignar-se e submeter-se a quem se impôs contra a livre vontade do povo ou estar disposto a sangrar em nome de seus ideais.
Curiosamente, os que hoje são injustamente criminalizados na política - José Dirceu, José Genoíno, Gushiken, Dilma e até mesmo Lula, além de outros - foram aqueles que, um dia, aceitaram sangrar por idealismo.
Como se vê, a roda gira e sempre volta ao mesmo ponto.
http://marciovalley.blogspot.com.br/2016/05/impeachment-de-dilma-o-fruto-maduro-da.html