segunda-feira, 13 de junho de 2016

Qual é o preço de um presidente?



Milhões, responderão alguns. Muitos milhões, responderão outros. E a resposta não poderia ser outra, dado o valor das campanhas eleitorais. Mas não é esse o caso. Não se trata do valor de uma campanha, mas do valor real de um presidente. Do significado de sua importância para o país.

Que tragédia.

Quem poderia imaginar que presidentes outrora tão poderosos, pudessem valer tão pouco? Mas a História não perdoa. Ela pode ser implacável, até com os vencedores.

Patético.

Perfilados, lado a lado em prateleiras de livrarias do centro velho e em algumas do centro novo de São Paulo, lá estão Floriano Peixoto, Dutra, Castelo Branco, Geisel e todos aqueles que governaram o Brasil desde a República. São livros muito bem acabados, papel de primeira e capa dura, oferecidos pelo preço de... 30 centavos, cada. Isso mesmo, 30 centavos.

Humilhante.

Mas isto não é tudo. O cartaz que anuncia a liquidação vai mais além. Informa que se o interessado adquirir um Floriano, um Geisel e um Castelo, paga 90 centavos pelos três. Mas se levar um quarto, um Médici, por exemplo, paga apenas um real pelos quatro. Acreditem, quatro presidentes por apenas um real.

Não é maldade isso?

E por que um Médici por apenas 10 centavos?

Não foi ele o presidente do Tri, do Brasil ame-o ou deixe-o, e da Transamazônica? Mereceria sofrer um vexame desses?

Para mim, isso deve ser vingança de algum basco. Não há outra explicação. Só um basco não esqueceria a omissão de Garrastazu quando a ditadura franquista resolveu executar três militantes da ETA (Pátria Basca e Liberdade). O mundo protestou. Menos ele, o descendente de bascos Garrastazu Médici. Houve chefes de Estado que ameaçaram romper relações se o ditador espanhol levasse avante a execução. Inútil, já que o generalíssimo, não só mandou executá-los, como determinou que o fossem com requintes de crueldade. Ordenou, e o carrasco utilizou o medieval garrote vil.

Mas a exemplo de nossos ex-ditadores Franco acreditou que também era esperto. Antevendo que a História o atiraria ao limbo, antecipou-se e mandou cunhar moedas com sua efígie, onde se lia Francisco Franco caudillo de España por la gracia de Dios..

Em vão.

Durante as manifestações contra a ditadura, estudantes madrilenos juntavam várias dessas moedas em sacos plásticos para atirá-las contra a polícia. Vale esclarecer, e disso dou testemunho, que as moedas não partiam sozinhas. Os sacos onde elas eram depositadas estavam repletos com os resíduos que o intestino expele depois de uma refeição. Quando arremessados contra os repressores, deixavam um rastro de mau cheiro no ar. E se atingiam o alvo então... Nem la gracia de Dios resolvia.

E agora fica a dúvida que o caro leitor pode ajudar a resolver. Como a História irá se manifestar nos próximos anos sobre os nossos governantes?

Qual será o seu valor real?


*Artigo publicado na Revista Caros Amigos na década de 90 do século passado

A música que Bach e Mozart adorariam e os golpistas da casa grande odeiam


http://blogdobourdoukan.blogspot.com.br/2016/06/qual-e-o-preco-de-um-presidente.html

A bomba atômica e os jogos olímpicos





No exato momento em que no dia 6 de agosto de 2016 às 20.00 horas se inaugurarão os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, há 71 anos, no mesmo  dia 6 de agosto de 1945 e na mesma hora correspondendo às 8.15 da manhã, será recordada em Hiroshima no Japão, a nefasta data do lançamento da bomba atômica sobre a cidade. Vitimou 242.437 pessoas entre as que morreram na hora e as que posteriormente vieram a falecer em consequência da radiação nuclear.
O imperador Hirohito reconheceu, no texto de rendição no dia 14 de agosto, que se “tratava de uma arma que levaria à total extinção da civilização humana”. Dias após, ao aduzir, numa declaração ao povo, as razões da rendição, a principal delas era de que a bomba atômica “provocaria a morte de todo o povo japonês”. Em sua sabedoria ancestral tinha razão.
A humanidade estremeceu. De repente deu-se conta de que, segundo o cosmólogo Carl Sagan, havíamos criado o princípio de autodestruição. Não disse outra coisa Jean-Paul Sartre: ”os seres humanos se apropriaram dos instrumentos de sua própria exterminação”. O grande historiador inglês, Arnold Toynbee, o último a escrever 12 tomos sobre a história das civilizações, aterrado, deixou escrito em suas memórias (Experiências 1969):”Vivi para ver o fim da história humana tornar-se uma possibilidade intra-histórica, capaz de ser traduzida em fato, não por um ato de Deus mas do homem”. O grande naturalista francês Thédore Monod disse enfaticamente: ”somos capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça humana”(E se a aventura humana vier a falhar,2000).
Com efeito, de pouco valeu o estarrecimento, pois continuou-se a desenvolver armas nucleares mais potentes ainda, capazes de erradicar toda a vida do planeta e pôr um fim à  espécie humana.
Atualmente há 9 países detentores de armas nucleares que, conjuntamente, somam mais ou menos 17.000. E sabemos que nenhuma segurança é completa. Os desastres de Tree Islands nos USA, de  Chernobyl na Ucrânia e de Fukushima no Japão nos dão uma amostra convincente.
Pela primeira vez um Presidente norte-americano Barack Obama, visitou, há dias, Hiroshima. Apenas lamentou o fato e disse:”a morte caiu do céu e o mundo mudou…começou o nosso despertar moral”. Mas não teve a coragem de pedir perdão ao povo japonês pelas cenas apocalípticas que lá ocorreram.O povo japonês perdoou,sim, os norte-americanos.
Vigora uma vasta discussão cultural sobre como avaliar tal gesto bélico. Muitos pragmaticamente afirmam que foi a forma encontrada de levar o Japão à rendição e poupar milhares de vidas de ambos os lados. Outros consideram o uso desta arma letal, na versão oficial japonesa, como “um ato ilegal de hostilidade consoante as regras do direito internacional”. Outros vão mais longe e afirmam tratar-se de um “crime de guerra” e até de “um terrorismo de Estado”.
Hoje estamos inclinados a dizer que foi um ato criminoso e anti-vida, de nenhuma forma justificável. Pensando em termos ecológicos, a bomba  matou muito mais do que pessoas, mas todas as formas de vida vegetal, animal e orgânica, além da destruição total dos bens culturais. Geralmente as guerras são feitas de exércitos contra exércitos, de aviões contra aviões, de navios contra navios. Aqui não. Tratou-se de uma “totaler Krieg” (guerra total) no estilo nazista de matar tudo o que se move, envenenar águas, poluir os ares e dizimar as bases físico-químicas que sustentam a vida. Porque Albert Einstein tinha consciência desta barbaridade se negou a participar no projeto da bomba atômica e a condenou, veementemente, junto com Bertrand Russel.
Ao lado de outras ameaças letais que pesam sobre o sistema-vida e o sistema-Terra, esta nuclear continua sendo uma dos mais amedrontadoras, verdadeira espada de Dâmocles colocada sobre a cabeça da humanidade. Quem poderá conter a arrogância e a irracionalidade da Coréia do Norte de deslanchar um ataque nuclear avassalador?
Há uma proposta profundamente humanitária que nos vem de São Paulo, da Associação dos Sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki (chamados de hibakusha, presume-se que haja uns 118 no Brasil), animada pelo militante contra a energia nuclear Chico Whitaker. No dia 6 de agosto, no momento da abertura dos Jogos Olímpicos, dever-se-ia fazer um minuto de silêncio pensando nas vítimas de Hiroshima. Mas não só. Também voltando nossas mentes para a violência contra as mulheres, os refugiados, os negros e pobres que são sistematicamente dizimados (só no Brasil em 2015 60 mil jovens negros), os indígenas, os quilombola e os sem-terra e sem-teto, em fim, todas  as vítimas da desumanidade de nosso sistema social mundial.
O prefeito de Hiroshima, nesse sentido, já encaminhou carta ao Comité Organizador dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Esperamos que este se sensibilize e promova esse grito silencioso contra as guerras de todo tipo e pela paz entre os povos.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor https://leonardoboff.wordpress.com/2016/06/11/a-bomba-atomica-e-os-jogos-olimpicos/

Sociedade civil precisa conhecer o debate para combater a Ditadura do Judiciário


Por Brenno Tardelli, via Justificando


Poucos clichês são tão presentes no cotidiano jurídico quanto o advogado que diz não ser fácil a vida na advocacia. E, justiça seja feita, não é mesmo. Principalmente quando o pedido em favor do cliente tem que ser feito a um Judiciário autoritário e ignorante. Na última semana, eu, tu, ele, nós, vós e elas se chocaram com um desembargador que teve as manhas de mandar prender em um Habeas Corpus. O cúmulo.

Fosse uma justiça séria e preocupada com a prestação jurisdicional, José Damião Pinheiro Machado Cogan, esse senhor que proferiu a decisão esdrúxula, ficaria impedido de, no mínimo, continuar atuando na área criminal por profunda ignorância - ou má fé - na matéria. Se não fosse mandado embora por justa causa, que fosse mandado para a terapia, um curso de atualização, ou que arejasse em outra área do Judiciário. Mandar prender em Habeas Corpus independe de "liberdade de consciência": é sadismo mesmo, tesão por infligir a repressão em cima do acusado, sem que qualquer lei o ampare para tanto. 

Nosso sistema de justiça permite que o juiz seja sádico ou use de sua vida profissional para prender preto, negar direito a pobre e ir para casa dormir o sono dos justos. Por força da Constituição - essa mesma que juízes e juízas violam todos os dias - garante todo e qualquer direito que é possível se garantir a alguém. Juízes - e membros do Ministério Público - têm estabilidade no cargo; ditam o próprio salário, o qual é irredutível; são inamovíveis, isto é, a não ser que queiram, não há possibilidade de se manejar um sádico do cargo; caso a besteira que façam seja algo monumental (como foi o caso de Cogan), o máximo de punição seria a aposentadoria compulsória, com salário integral; além de outros inúmeros privilégios. É a Corte de Versailles [1]. Nada mais, nada menos. 

A construção do conceito (epistemologia) dessas garantias da magistratura decorre de um processo civilizatório de conquista da carreira que sempre ocupou um espaço privilegiado de poder, além de, em tese, permitir que medidas que desagradem “poderosos” possam ser tomadas. Trocando em miúdos: a fim de não sofrer represália do poderoso político X, a Constituição garante uma série de privilégios para o magistrado se sentir confortável na atuação. No campo prático, temos a Operação Lava Jato, comandada pelo juiz Sérgio Moro, em face de uma específica classe da elite financeira e política.

Talvez se ocorresse aos constituintes - aqueles que escreveram a constituição - que seria justamente o contrário, isto é, a classe jurídica seria endeusada pela população e mídia, as quais veem no Judiciário a alternativa de poder aos criminalizados Legislativo e Executivo, talvez a redação das garantias judiciais seria diferente. Vale dizer, "ricos e poderosos" sequer representam 1% da Justiça. Os corredores são apinhados de gente pobre de pele preta. São garantias de arbítrio em cima do que há de mais reprimido na nossa população - como se fosse Golias em cima de uma montanha atirando pedras em Davi.

No outro lado da moeda, parte específica da elite política e financeira vem comendo o pão que o diabo amassou nos tribunais há alguns anos. Não deixa de ser interessante, pois se trata justamente do governo que passou anos no poder e nada fez para democratizar a justiça - inclusive nomeou para o Supremo pessoas sem reputação ou saber jurídico para o cargo, falta de qualidade mais claras nas indicações de Tóffoli e Fux. Voltando ao calvário enfrentado por esse recorte da elite brasileira, o próprio STF tem sido palco da carnificina dos direitos. Talvez o que mais incorpora o estereótipo do Magistrado-Deus seja o indicado por FHC, ministro Gilmar Mendes, o grande retrato da magistratura brasileira. Uma das últimas de Gilmar foi quando, sem o menor pudor, ironizou na mídia um recurso do partido da presidenta afastada antes de julgá-lo - "Ah, eles podem ir para o céu, o papa ou o diabo". Tal conduta é proibida pela Lei Orgânica da Magistratura, mas que se dane. No Brasil, juízes podem tudo. São deuses - lembram do magistrado do RJ? Pois então...
O sistema de justiça nacional não só permite o sadismo, como estimula. Cogan é uma amostra de grande parte da magistratura na ativa por todo país. Quem pensa diferente sofre perseguição ideológica na carreira, como são os casos de diversos quadros da Associação Juízes para a Democracia, uma organização da carreira minoritária que propõe um pensamento alinhado aos direitos humanos, a resistência minoritária na carreira. O mais famoso caso de perseguição ao pensamento constitucional está aí para todos acompanharmos como novela - o processo sofrido por Kenarik Boujikian, “acusada” de soltar pessoas que estavam cumprindo pena além do tempo previsto na sentença. Ela sofre no Tribunal; Cogan é aplaudido - sem exageros, é aplaudido mesmo.

A ideologia do arbítrio, do endeusamento, reflete na estrutura da Corte. De certo, seria complicado imaginar um ministro intimidar quem fosse necessário para que sua filha de 33 anos, sem experiência jurídica, fosse nomeada desembargadora - caso de Marianna Fux, filha de Luiz Fux. Igualmente difícil conceber que cada desembargador desse país tenha um sedan de luxo com motorista para ir trabalhar todos os dias. Só em São Paulo há mais de 350 juízes estaduais de segunda instância. Aplique essa lógica a tribunais cuja própria existência seja algo de complexa lógica - Tribunais Militares ou Federais, por exemplo.

São tantos privilégios que a conta não fecha. Fica difícil justificar um reajuste acima de qualquer outro aos membros do Judiciário e Ministério Público, enquanto o país só fala em crise financeira e no impeachment. Talvez como recompensa pela fatura tão alta para legitimação do que está acontecendo, a Corte se acovarde e permita um golpe parlamentar tanto quanto conviveu pacificamente com a Ditadura, feitas as devidas exceções. Talvez a defesa mais cínica em torno do golpe seja o bordão "as instituições estão funcionando". Funcionando para quem, cara pálida?

Enquanto essa Corte de Versailles passa o trator em busca de seus próprios privilégios, a população recebe dela apenas manifestações arbitrárias de poder. Um dia o Poder acorda e resolve que a presunção de inocência não vale mais bulhufas; no outro, a epifania do magistrado de Curitiba conclui que é normal infringir a letra da lei para expor chefes de poderes na mídia; paralelo aos casos famosos, todos os dias, em nome do "combate à impunidade", varas espalhadas pelo país sangram direitos de gente pobre. Parece briga de rua, vale tudo, vale até prender em Habeas Corpus.

O menos democrático, fiscalizado e mais arbitrário Poder da República continuará dançando o baile do arbítrio até que a sociedade civil não se organize em torno desse debate. Protegido pelas palavras vetustas, pela arrogância do falso domínio da ciência jurídica e por sua ilusória imparcialidade, o Poder Judiciário constrói sua própria ditadura.

[1] Corte de Versailles: Centro do poder do Antigo Regime na França. Representa a opulência de uma minoria em face do resto do povo e marcou o ápice do poder absolutista do rei, representado em Luís XIV ("O Estado sou eu"). 

As origens elitistas e racistas do futebol, por Mário Rodrigues (o irmão de Nelson)

(Carlos Alberto, o "pó-de-arroz")

(Carlos Alberto, o “pó-de-arroz”)
Uma das razões pelas quais não concordo com o epíteto de “reacionário” que a direitosa adotou como verdade absoluta para se referir a Nelson Rodrigues (1912-1980), sem nunca tê-lo lido, é seu pioneirismo na denúncia ao racismo velado brasileiro. Amigo de Abdias do Nascimento (1914-2011), autor de Anjo Negro, uma tragédia sobre o racismo, Nelson questionava o mito da “democracia racial” e se indignava com o preconceito contra os negros em nosso País. “Nos Estados Unidos o negro é caçado a pauladas e incendiado com gasolina. Mas no Brasil é pior: ele é humilhado até as últimas consequências”, dizia. Vamos combinar que não tem absolutamente nada a ver com gente que defende que “não existe racismo no Brasil”.
O irmão de Nelson, Mário Rodrigues Filho (1908-1966), considerado um dos maiores jornalistas esportivos de todos os tempos (o Maracanã leva seu nome), também denunciou o racismo em um grande clássico, O Negro no Futebol Brasileiro. No livro, reeditado pela Mauad há dois anos, Mário Filho conta como, de esporte de ricos descendente de ingleses, o futebol se transformou na diversão de meninos pretos e pobres que se tornariam os grandes craques da bola até hoje. Malvistos pela torcida grã-fina, muitos atletas negros tentavam inclusive disfarçar a origem, alisando os cabelos e apelando à maquiagem para clarear a pele. Em 1921, o presidente Epitácio Pessoa “recomendou” que a seleção não convocasse negros, e até 1952 havia times no Brasil que não aceitavam “pessoas de cor”.
Mesmo na Inglaterra, onde surgiu, o futebol era jogado nas escolas frequentadas pela aristocracia. Suas regras foram feitas nestes colégios e só daí passaram a ser aplicadas no esporte que já se praticava nas ruas, pela classe operária. Rapidamente a burguesia agiria para transformá-lo em “ópio do povo”. Segundo Roberto Ramos em Futebol: Ideologia do Poder, “os burgueses descobriram o futebol como meio de despolitização dos trabalhadores na década de 1860. As massas do proletariado industrial começaram a interessar-se por este esporte. Os empresários ingleses aproveitaram a oportunidade. Fomentaram o seu desenvolvimento. O objetivo era claro. Eles precisavam manter os operários à margem da atividade política dentro de suas organizações de classe”.
Ou seja, a elite branca que ocupa os estádios brasileiros nesta Copa do Mundo era de fato a “dona da bola” no começo, tanto aqui como na terra natal do futebol. Charles Miller (nome da praça onde fica o Pacaembu), o filho de ingleses que teria trazido a primeira bola de futebol para o Brasil em 1894, apresentou o esporte à elite paulista. Os clubes de ingleses do Rio de Janeiro disputam com Miller a primazia: em 1874, 20 anos antes de Miller ter chegado com a tal bola, já haveria jogos de futebol na orla carioca. No princípio, existia uma separação oficial entre os times dos ricos e os dos pobres, mas do nome do jogo às posições dos atletas em campo, todos os termos eram em inglês. Mário Filho conta tudo.
Este DNA racista e elitista do futebol, a meu ver, pode explicar o porquê de tantos jogadores negros ainda serem alvo de preconceito. No esporte “bretão”, “branco”, os negros eram bem-vindos para jogar bola, mas não para frequentar as dependências e festas dos clubes que os contratavam, como ocorria com qualquer empregado. Não me parece muito diferente do que acontece atualmente: enquanto o jogador negro, regiamente pago, faz gols, é bem tratado e festejado. Basta cometer algum erro, porém, que a cor de sua pele vem à tona, como nos episódios recentes em que atletas foram insultados, chamados de “macacos”, e bananas foram atiradas no campo.
Vale a pena ler o livro de Mário Filho. Outra editora de São Paulo, a Ex Machina, lançou neste ano da Copa As Coisas Incríveis do Futebol: as Melhores Crônicas de Mário Filho. Imperdível para quem gosta de futebol ou não. Leia abaixo os trechos de O Negro no Futebol Brasileiro que compilei sobre os primórdios do esporte.
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(O mulato Arthur Friedenreich)
(O mulato Arthur Friedenreich)
O Negro no Futebol Brasileiro
Por Mário Rodrigues Filho
O futebol importado, made in England, tinha de ser traduzido. E enquanto não se traduzisse e se abrasileirasse, quem gostasse dele precisava familiarizar-se com os nomes ingleses. De jogadores, de tudo. Em campo um jogador que se prezasse tinha de falar em inglês. Ou melhor: gritar em inglês.
O repertório do capitão do time, justamente quem gritava mais em campo, precisava ser vasto. Quando um jogador do seu time estava com a bola e outro corria para tomá-la, tinha de avisar: ‘man on you’. Quando o outro time atacava e ele precisava chamar seus jogadores lá na frente, a senha era: ‘come back forwards’. E havia ‘take you man’ e havia mais. Onze posições de jogadores num time: goalkeeperfullback-rightfullback-lefthalfbeck-rightcenter-half,halfback-leftwinger-rightinside-rightcenter-forwardinside-left e winger-left.
O juiz era o referee, transformado em referi ou refe, o bandeirinha era o linesman, e por aí afora.
***
Para alguém entrar no Fluminense tinha de ser, sem sombra de dúvida, de boa família. Se não, ficava de fora, feito os moleques do Retiro da Guanabara, célebre reduto de malandros e desordeiros.
Os moleques debruçavam-se na cerca de arame para ver os treinos, se a bola ia fora podiam correr atrás dela, dar um chute. Mas nada de demora. Se demorassem não levariam as malas dos jogadores, acabado o treino, até o bonde que passava na Rua das Laranjeiras.
(…)Não se tratava de só querer branco legítimo. Ninguém no Fluminense pensava em termos de cor, de raça. Se Joaquim Prado, winger-left do Paulistano, quer dizer, extrema-esquerda, preto, do ramo preto da família Prado, se transferisse para o Rio, seria recebido de braços abertos no Fluminense. Joaquim Prado era preto, mas era de família ilustre, rico, vivia nas melhores rodas.
(…)Por isso, quem ia a São Paulo jogar um match de futebol, voltava encantado com Joaquim Prado, sem reparar até, que ele era preto.
***
O que distinguia o Bangu do Botafogo, do Fluminense, era o operário. O Bangu, clube de fábrica, botava operários no time em pé de igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense, não, nem brincando, só gente fina. Foi a primeira distinção que se fez, entre clube grande e pequeno, um, o clube dos grandes, o outro, o clube dos pequenos.
***
(…)Os pretinhos, filhos da cozinheira, sabiam fazer bolas de meia, redondinhas, que saltavam.
Boas bolas, aquelas de meia, feitas pelos moleques. Podia se fazer com elas o que se quisesse. Até quebrar vridraças. Melhor do que as bolas de pelica dos meninos de boas famílias, muito leves, como balões de papel de seda, subindo com qualquer chutinho. As bolas de meia ficavam mais no chão. Quase presas ao pé, aperfeiçoando, nos moleques, o que se chamaria mais tarde, o domínio da bola. Da ‘esfera de couro’ de certos cronistas que não queriam escrever, em letras de forma, essa palavra tão corriqueira: bola.
Isso fazia quem era do remo, olhar mais por cima quem era do futebol. O futebol se vulgarizava, se alastrava como uma praga. Qualquer moleque, qualquer preto podia jogar futebol. No meio das ruas, nos terrenos baldios, onde se atirava lixo, nos capinzais. Basgtava arranjar uma bola de meia, de borracha, de couro. E fabricar um gol, com duas maletas de colégio, dois paletós bem dobrados, dois paralelepípedos, dois pedaços de pau.
Em todo canto um time, um clube. Time de garotos, de moleques, clubes de operários, de gente fina. Mas muito clube, clube demais.
No remo não havia esse perigo.
***
Valia a pena ser Fluminense, Botafogo, Flamengo, clube de brancos. Se aparecia um mulato, num deles, mesmo disfarçado, o branco pobre, o mulato, o preto da geral, eram os primeiros a reparar.
O caso de Carlos Alberto, do Fluminense. Tinha vindo do América, com os Mendonças, Marcos e Luís. Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era mulato. Também Carlos Alberto, no América, não quis passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em exposição. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de moças da arquibancada, parar um instante, levantar o braço, abrir a boca num hip, hip, hurrah.
Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento. não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz.
Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto:
– Pó de arroz! Pó de arroz!
A torcida do Fluminense procurava esquecer de que Carlos Alberto era mulato. Um bom rapaz, muito fino.
***
Friedenreich, de olhos verdes, um leve tom de azeitona no rosto moreno, podia passar se não fosse o cabelo. O cabelo farto mas duro, rebelde. Friedenreich levava, pelo menos, meia hora, amansando o cabelo.
Primeiro untava o cabelo de brilhantina. Depois, com o pente, puxava o cabelo para trás. O cabelo não cedendo ao pente, não se deitando na cabeça, querendo se levantar. Friedenreich tinha de puxar o pente com força, para trás, com a mão livre segurar o cabelo. Senão ele não ficava colado na cabeça, como uma carapuça.
O pente, a mão não bastavam. Era preciso amarrar a cabeça com uma toalha, fazer da toalha um turbante e enterrá-lo na cabeça. E ficar esperando que o cabelo assentasse.
Levava tempo. Embora principiasse quando estava jogando o segundo time, só terminava quase na hora da saída do jogo do primeiro time. O juiz impaciente, ameaçando começar a partida sem Friedenreich, e Friedenreich lá dentro, no vestiário, a toalha amarrada na cabeça, esperando, ainda desconfiado de que não chegara a hora de tirar o turbante.
***
O Fluminense, cansado de perder campeonatos, tornou-se um pioneiro de profissionalismo. Com o profissionalismo, ele lutaria em igualdade de condições com os outros clubes. (…)E poderia formar um grande time, capaz de levantar campeonatos, indo buscar jogadores nos clubes pequenos, nos subúrbios, nos Estados, fosse onde fosse, brancos, mulatos e pretos.
Porque com o profissionalismo não fazia mal o Fluminense botar um mulato, um preto no time, contanto que fosse um grande jogador. Melhor branco. Mulato ou preto, só grande jogador.
(…)O preto jogava, ajudava o Fluminense a vencer, acabado o jogo, mudava de roupa, ia embora. Não havia perigo do preto frequentar a sede, aparecer numasoirée, num baile de gala do Fluminense. O jogador profissional, branco, mulato ou preto, era um empregado do clube. O clube pagava, toma lá, dá cá. O jogador ficava no seu lugar, mais no seu lugar do que nunca.
Naturalmente, entre o preto e o branco, o Fluminense tinha de preferir o branco. Se fosse possível um time só de brancos, melhor. E talvez fosse possível. Não faltava bom jogador branco. Se não fosse possível um time só de branco, botava-se um preto, dois, nada de abusar.
***
As vaias, o torcedor do Fluminense aguentava. Para isso tinha seu clássico ‘uh! uh!’. Não aguentava era o ‘pó-de-arroz’. Um grito de ‘pó-de-arroz’ partia de lá, um grito de ‘pó-de-carvão’ partia de cá. O torcedor do Fluminense dizendo que preferia ser ‘pó-de-arroz’ a ser ‘pó-de-carvão’. Podia preferir, mas se ofendia com aquele ‘pó-de-arroz’.
O torcedor do Flamengo, não, nem se importava com o ‘pó-de-carvão’. Orgulhava-se dos pretos que vestiam a camisa rubro-negra. Até mesmo dos que tinham sido escorraçados dos outros clubes, como Leônidas.
Ninguém queria Leônidas, o Flamengo queria.
http://www.socialistamorena.com.br/as-origens-elitistas-e-racistas-do-futebol-por-mario-rodrigues-o-irmao-de-nelson/#at_pco=smlwn-1.0&at_si=575eef8cee543090&at_ab=per-2&at_pos=0&at_tot=1

Coisas que tenho aprendido sobre o tempo


(As mãos de Rachel de Queiroz por Eder Chiodetto)
Por Cynara Menezes, Socialista Morena -

A primeira coisa que eu descobri é que o tempo é igual ao joelho. Com sorte, você não vai se lembrar dele até os 40 anos, mais ou menos. Durante a infância e a juventude, o tempo e o joelho são indolores. Como o joelho, a gente só sente o tempo quando começa a doer.

Tenho 49 anos e nunca tinha me preocupado com a passagem do tempo antes. Quando a gente é criança ou adolescente não fica olhando para trás, né? A gente vive, simplesmente, às vezes ligado no futuro, mas totalmente desligado do passado – a não ser por traumas, raramente por nostalgia. Depois dos 40 é que o tempo passa a ser uma questão.

Dentro da gente, o tempo do tempo é outro e cada um tem o seu. Tanto é que é mais fácil enxergar que o tempo passou no outro do que na gente mesmo. Por dentro, é possível ter 20 anos para sempre ou ser sexagenário aos 17. O tempo de fora só encontra com o de dentro quando morre alguém que a gente ama.

A saudade é diretamente proporcional ao tempo: quanto mais tempo a gente vive, mais saudade a gente sente. Viver mais é superar o desafio de conviver diariamente com a ausência dos seres queridos.

Mesmo que, por dentro, o tempo só passe se a gente quiser, inevitavelmente a infância fica cada vez mais longínqua. Não temo as rugas, os cabelos brancos algum dia assumirei, mas pensar que poderei, no final dos dias, não recordar minha infância me apavora.

O tempo, ao contrário da crença geral, não faz todo mundo ficar mais sábio e sim mais verdadeiro consigo mesmo. Acho que a “sabedoria” surge justamente daí, de se dar o direito de ser o mais verdadeiro consigo mesmo possível.

A juventude passa lentamente e a idade madura passa rápido. Mas quando a gente chega à idade madura tem a sensação de que tudo passou rápido, e rápido demais. Aquela sensação de “parece que foi ontem” é constante.

O tempo é muito relativo e pessoal. Tem gente que pensa em envelhecer para se aposentar. E tem gente que só enxerga a velhice trabalhando. Eu sou assim.
Num mundo ideal, a aposentadoria não deveria ser por idade, mas de acordo com o pique de cada um. Eu, por exemplo, gostaria de ter estado “aposentada” até os 30 e ter começado a trabalhar a partir daí. Agora estou a mil e não penso em parar tão cedo. Sinto que, em movimento, o tempo faz o cérebro da gente ficar mais e mais afiado. E que, parado, ele perde o fio.

O bom do tempo é quando ele é sinônimo de aprendizado, e isso não tem tempo para acabar.

Por Cynara Menezes, Socialista Morena -

Beijar vale mais do que uma boa dose de antidepressivos