A linguagem da TV Globo sempre abusou das metalinguagens como exercício de demonstração do seu poder tecnológico e financeiro: passar a maior parte do tempo transmitindo a sua própria transmissão. Porém, nessa semana percebemos a recorrência de um fenômeno novo, desde a notícia da morte de turistas brasileiros na Turquia. Um fenômeno que o pesquisador francês Lucien Sfez chama de “tautismo”: um processo de comunicação sem personagens que só leva em conta a si mesmo, resultando em uma situação simultânea de autismo e tautologia. Isso seria o resultado final de todo sistema complexo que começa a fechar-se em si mesmo, tornando-se cego ao ambiente externo. Sem conseguir estabelecer a diferença entre “dentro” e “fora”, “ficção” e “realidade”, o sistema torna-se autofágico. O tautismo poderia ser o sinal decisivo do fim da hegemonia da TV Globo?
Um fantasma ronda os corredores da TV Globo. É o espectro do tautismo. Esse neologismo criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez através da combinação das palavras “tautologia” (do grego tauto, o mesmo) e “autismo” (autos, si mesmo) talvez nomeie uma estranha recorrência nesses últimos dias na programação da emissora.
Em um espaço de menos de uma semana em uma amostragem bem aleatória, encontrei uma repetição de eventos, sejam eles conteúdos de ficção ou não-ficção, onde sempre há um princípio de auto-referência.
O primeiro, a notícia de um acidente que resultou na queda de um balão com sete brasileiros feridos e três mortos na Capadócia, Turquia. Segundo depoimento de um casal, eles decidiram viajar depois que viram as imagens da Turquia na novela “Salve Jorge”. Embora a TV Globo tenha omitido essa informação dada por diversos portais de notícias, para os espectadores ficou nítida a coincidência entre o último capítulo da novela e o acidente 48 horas depois.
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Neymar perseguido por "maria chuteira" na nova novela da TV Globo: auto-referência e circularidade |
O segundo, após a final do campeonato paulista entre Santos e Corinthians transmitida pela TV Globo, meia hora depois no programa “Domingão do Faustão” aparecem cenas da próxima novela da emissora com uma sequência onde o principal jogador do Santos, Neymar Jr., é perseguido por uma “maria chuteira” em um apartamento.
Terceiro: no programa “Encontro com Fátima Bernardes” de 20/05/2013 o tema discutido era células tronco e clonagem. Em meio às discussões baseadas em experiências reais, Fátima Bernardes introduz cenas da novela “O Clone” (2002). Imagens ficcionais produzidas pela teledramaturgia da emissora para ilustrar uma discussão jornalística. Parece que somente o fato real não é o suficiente. É necessária a chancela da narrativa ficcional.
E quarto, na edição do telejornal “SP TV” do dia 22/05/2013 a pauta era a revitalização do Centro da cidade de São Paulo. Corta para uma repórter que está em uma ampla sacada de um prédio com uma linda vista para a Praça da República. Quem mora naquele apartamento cuja paixão pela região central o fez escolher aquele bairro para viver? O cozinheiro Olivier Anquier, com programas de culinária do canal fechado GNT da Globo e foi casado com a atriz global Débora Bloch.
O Tautismo
Da tautologia sabe-se que é uma repetição lógica, em que o resultado do raciocínio é igual à sua proposição. E o autismo caracteriza-se por um distúrbio ou estado mental de fechamento, de criação de um mundo próprio com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.
Sfez acredita que o tautismo seria a característica do que ele chama de “comunicação confusional”, traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a comunicação como seu próprio objeto (veja SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000).
Para ele o tautismo seria o resultado final da hipertrofia dos sistemas de comunicações que, como todo e qualquer sistema complexo, teriam as seguintes características: auto-organização e fechamento.
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Varela (esq.) e Luhumann (dir.): sistemas tendem a ficar "cegos" em relação ao mundo exterior |
Para teóricos de sistemas como o chileno Francisco Varela ou o alemão Niklas Luhumann, os sistemas tendem a se auto-organizarem para estabelecerem trocas e informações com o mundo externo, porém o ambiente já seria cartografado por projeções do próprio sistema, de modo que aquilo que viesse de novo do ambiente se transformaria em apenas mais um vetor de projeção anterior do sistema sobre o ambiente. Isso criaria um “fechamento operacional” onde qualquer informação externa é traduzida por uma descrição que o sistema faz de si mesmo.
Por exemplo, para Varela o sistema nervoso seria uma rede fechada de neurônios laterais paralelos, que atuariam uns sobre os ouros de maneira recursiva. Aqui não haveria exterior, nem interior, mas fechamento. Não existiria distinção alguma a ser feita entre percepção e alucinação.
O fechamento operacional
Os quatro casos descritos acima contém esse estranho fenômeno de circularidade e auto-refrência que caracteriza o fenômeno do tautismo nos sistemas.
Embora a auto-referência tenha sido involuntária para a TV Globo, o incidente na Capadócia somente ganhou espaço midiático pelas conexões com a novela “Salve Jorge”. Não fosse isso, a tragédia com turistas brasileiros se resumiria às sessões de “drops” de notícias. Mas a notícia encerra essa estranha circularidade do tautismo: não há mais fronteira entre “fora” e “dentro” para os sistemas de comunicação: a realidade remete à ficção e a ficção torna-se a própria realidade. Hipótese vertiginosa: a novela de Gloria Perez teria indiretamente produzido o acidente na Turquia?
Nos dois exemplos seguintes, a íntima conexão entre a telenovela e a realidade que a TV Globo faz questão de estreitar. Neymar Jr, uma das estrelas do produto jornalístico da emissora (o futebol) contracena com um personagem da teledramaturgia, outro produto da emissora; e as cenas da novela “O Clone” utilizadas como forma “didática” para o espectador entender a relevância do tema discutido - clonagem e células-tronco.
Segundo Lucien Sfez, a “comunicação confusional” do tautismo confunde arepresentação com a expressão. Em outras palavras, a representação do fato ou da notícia se mistura com a própria forma com que a comunicação o expressa. Isso já era evidente com o fenômeno da proliferação de metalinguagens no discurso do telejornalismo da TV Globo: a emissora não se limita a transmitir o fato, ela quer mostrar a si mesma transmitindo – por exemplo, o caso do programa “Globo Esporte” onde o apresentador Tiago Leifert transformou o “ônibus estúdio” de onde ancorava a transmissão em notícia mais importante do que a própria concentração da seleção brasileira (veja links abaixo).
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Tiago Leifert e o ônibus estúdio: metalinguagem é diferente de tautismo |
No tautismo essa confusão torna-se ainda mais radical: a própria percepção do “real” é moldada pela linguagem da ficção. A diferença entre “fora” e o “dentro” do sistema deixa de fazer sentido.
No quarto exemplo, temos o clássico fenômeno de circularidade do sistema: em dado momento da matéria sobre a revitalização do Centro de São Paulo, não temos mais um relato sobre uma exterioridade do sistema de comunicação, mas, ao contrário, começamos a assistir um diálogo entre repórter e o protagonista da informação (Olivier Anquier) que é um personagem da TV Globo, assim como a própria repórter.
O espectro ameaçador do tautismo
Por que o tautismo é um "espectro ameaçador"? Embora a TV Globo mantenha o seu poder econômico graças à estratégia do BV (Bônus por Volume) para garantir a hegemonia na captação das verbas do mercado publicitário, o seu poder simbólico tem decrescido diante das quedas de audiência e a competição crescente das mídias digitais como a Internet.
O crescimento da complexidade de um sistema de comunicação como a da Rede Globo parece expor essa característica de todo e qualquer sistema tal como descrito por pesquisadores como Varela a Sfez: um sistema complexo busca a todo custo equilíbrio (homeostase), prevenindo-se de quaisquer informações provenientes do ambiente externo que possam desestabilizá-lo. Diante desse decréscimo do poder simbólico, a Rede Globo radicalizaria esse processo de “fechamento operacional” para tentar expurgar qualquer possibilidade de crise.
Assim como no caso de um indivíduo que, sob condições extremas de fome ou de alteração do metabolismo basal, o corpo começa a entrar em processo catabólico (processo de degradação onde o corpo começa a consumir seu próprio tecido muscular), no tautismo poderíamos localizar um processo análogo: esse fechamento operacional leva o sistema a um processo autofágico, simultaneamente tautológico e autista. Sem mais poder perceber as transformações do ambiente ao redor, o que deveria ser a defesa torna-se a sua fraqueza: a cegueira.
Se a metalinguagem que predominava na linguagem global era um exercício de demonstração de poder tecnológico e financeiro para os espectadores, com a novidade do tautismo parece que temos uma situação contrária: o fechamento para a realidade exterior como defesa de um sistema que, de tão complexa, teme entrar em desestabilização, entropia e morte final.
Esses sinais recorrentes de tautismo no conteúdo da programação da TV Globo poderiam ser sinais, senão do seu fim, pelos menos o estágio final da sua hegemonia?