Estamos próximos, no Brasil de hoje, daquilo com que sonhavam os golpistas de 1964, ao planejarem uma intervenção cirúrgica para eliminar a influência da esquerda nos Poderes da nação, nos veículos de comunicação, nos sindicatos, nas instituições de ensino e no movimento estudantil, principalmente, para em seguida devolverem uma democracia expurgada e reformatada.
Mas, o arbítrio que era para durar poucos anos acabou estendendo-se por 21, durante os quais, na verdade, só se poderia enxergar uma ditabranda (conforme pretendeu a Folha de S. Paulo, num dos editoriais mais infelizes de sua história) no período final, sob João Baptista Figueiredo (1979-1985). O leão já estava desdentado, após os sucessivos fracassos no front econômico lhe retirarem a última justificativa para sua existência, deixando a ditadura em agonia lenta.
A situação atual, contudo, lembra mais o período de 1965 a 1967, quando o furor subsequente à usurpação do poder deu lugar a uma espécie de resignação e pasmaceira, com a contestação ao regime sendo banida das ruas, praças e locais de trabalho, mas consentida na música popular, no cinema e no teatro (a resistência a eles era tão ínfima que os militares se davam ao luxo de vestir a fantasia de déspotas esclarecidos...).
Aí tivemos a escalada de radicalização ao longo de 1968, culminando em dezembro com a assinatura do Ato Institucional nº 5, que iniciou o período mais extremado e bestial do regime militar.
Durante as trevas absolutas que vão da entrada em vigor do AI-5 até o final do mandato de Emílio Médici em março de 1974, foram 279 os oposicionistas assassinados (baseio-me no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, mas não levo em conta a divisão meramente formal entre aqueles cuja morte foi provada e aqueles cuja existência evaporou sem deixar rastros...) e acrescentaram-se mais 12 atos institucionais à legislação de exceção.
Já no período 1965/67 os atos institucionais foram apenas três e os assassinados, 12, em contraste chocante com o morticínio de 1964 (27 mortos!!!), quando a vitória da quartelada foi comemorada à moda dos selvagens.
A comparação com a democradura de hoje se impõe.
Então, o sistema mudava leis e extinguia direitos consolidados a bel-prazer, contando com a conivência de um Congresso que fora domesticado por meio das cassações de mandatos que modificaram a correlação de forças e intimidaram os oposicionistas salvos da degola.
Agora, os parlamentares estão exultantes com o semi-parlamentarismo decorrente da inapetência para o cargo do presidente-bufão, que lhes permitiu herdarem o papel de principais executantes das determinações do poder econômico, enquanto ele próprio se ocupa de ninharias e baixarias.
Pasmem: os patrões do PT rezam pela mesmíssima cartilha! |
As pressões sobre a cultura, a imprensa e as instituições de ensino são ainda maiores atualmente do que naquele intervalo histórico.
O movimento estudantil até agora não sofreu repressão comparável, p. ex., à desencadeada quando da setembrada de 1966, mas ainda é cedo para soltarmos suspiros de alívio: 2020 se prenuncia um ano sujeito a intempéries, à medida que ficar claro para os brasileiros que as reformas neoliberais do Paulo Guedes produzirão aqui o mesmíssimo resultado que estamos constatando ultimamente no Chile (após anos e anos de retórica triunfalista dos mercadores de ilusões!).
Mas, a principal diferença entre o despotismo esclarecido de 1965/1967 e a atual democradura é que a esquerda brasileira efetuou então o processo mais aprofundado de crítica e autocrítica de toda sua história, questionando erros cometidos e atuações desastrosas, para daquela derrota acachante extrair todas as lições aproveitáveis, no sentido de sua ampla reconfiguração.
Havia a consciência de que jamais poderia ser repetido fracasso tão humilhante quanto o da derrubada do governo João Goulart sem nenhuma resistência significativa por parte daqueles que até a véspera diziam que já estavam no poder (dou nome ao boi: o fanfarrão Luiz Carlos Prestes).
Hoje, pelo contrário, o PT conseguiu evitar que suas terríveis lambanças fossem colocadas em xeque em 2016, quando do impeachment de Dilma Rousseff, e ameaça repetir o feito agora, se o posicionamento stalinista do Lula a respeito da autocrítica prevalecer.
A autocrítica abortada de 2016 nos conduziu à entrega do poder à extrema-direita em 2018. A nova Operação Abafa nos levará aonde?
A uma ditadura sanguinária explícita, como sonham Olavo de Carvalho e seus miquinhos amestrados?
Ou a um despotismo esclarecido permanente, como poderia ter ocorrido caso a esquerda não houvesse redescoberto a combatividade perdida em 1968?
No fundo, nosso povo não sairá da dramática e degradante situação atual se a subjugação ao poder econômico for imposta com a vaselina do Legislativo e do Judiciário, muito menos se com o ferro em brasa dos inquisidores redivivos.
Ou forjamos uma nova esquerda, reciclamos nossa atuação e reassumimos o protagonismo político, ou assistiremos impotentes, de braços cruzados, à explosão social que inevitavelmente decorrerá dos rigores neoliberais que nos estão sendo enfiados goela abaixo. (por Celso Lungaretti)