sábado, 3 de dezembro de 2016

O BRASIL É UM BARCO À DERIVA



O Brasil hoje é um barco à deriva com mais de 200 milhões de pessoas a bordo.

Temos um sistema econômico com prazo de validade vencido, mas do qual não conseguiremos escapar sozinhos: o capitalismo.  [Depois do malogro grego, a possibilidade maior é a de um colapso global, o qual, aliás, pode estar bem mais próximo do que a maioria imagina...] 

Grandes empresários que se associaram aos mãos-sujas da política na montagem da maior e mais acintosa rede de corrupção já vista no País.

Uma Câmara Federal totalmente desmoralizada, que manda seu decoro às favas, agindo na calada da noite para salvar o mandato dos seus membros e mantê-los fora das grades.

Um Senado que nem sequer é capaz de expelir um presidente campeão de processos na Justiça.

Um Judiciário que cada vez mais se politiza, ocupando espaços  deixados vagos pelo Legislativo e Executivo.

Um presidente meia-boca, que talvez desse conta do recado numa situação rotineira, mas nunca no olho do furacão, quando mais se faz necessário um estadista.

Um povo tradicionalmente conformado, quase abúlico, mas que a penúria acabará levando ao desespero e a reações extremadas.

E, como em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão (provérbio português), os pesos-pesados da economia e da política se mostram incapazes de unir-se num projeto de salvação nacional, colocando seus interesses egoístas acima de tudo e de todos.

O maior risco que corremos neste momento é o de que o confronto cada vez mais acirrado entre o Legislativo e o Judiciário, sem que o Executivo ouse ou saiba como restabelecer o equilíbrio entre os Poderes, dê pretexto a uma intervenção militar (hipótese que ganha força com os EUA prestes a ser presididos por Donald Trump).

Enfim, a situação é tão explosiva que me parece até ocioso detalhar tudo de ruim que pode acontecer. 

As forças majoritárias do que restou da esquerda se dedicam insensatamente a desgastar um presidente fraco por natureza, sem se darem conta de que estão apenas levantando a bola para algum inimigo marcar o ponto (seja a extrema-direita que sonha com o retrocesso histórico, sejam os tucanos que tudo fazem para que a Presidência da República lhes caia no ninho).

Visões minoritárias, também de esquerda, avaliam corretamente que se trata de uma crise sistêmica, mas não levam em conta o óbvio ululante de absolutamente não nos convir neste momento que o derretimento dos podres Poderes vá às últimas consequências: a maré crescente é de direita fascistoide e em tal direção acabaremos também marchando se, de alguma forma, não corrigirmos o rumo enquanto é tempo.

Last but not least, é importante atentarmos para que, embora sejam absolutamente desprezíveis os ratos que tentam escapar das garras da Operação Lava-Jato por meio dos artifícios próprios de sua espécie, existe mesmo a possibilidade de o fervor justiceiro ir longe demais, gerando uma espécie de jacobinismo tropical. Robespierre era um esteio da Revolução Francesa, mas acabou fazendo com que ela devorasse os próprios filhos. Temos de ficar atentos.

Se eu tivesse um bom caminho a indicar, o faria. Mas, a correlação de forças nos é de tal forma desfavorável que nenhum deles me parece exequível. Então, só me resta antecipar o desenrolar provável dos acontecimentos.

Afora as tendências autoritárias que não podemos de forma nenhuma deixar prevalecerem, há uma forte possibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral, presidido pela figurinha carimbada Gilmar Mendes, aguardar a virada do ano para, então, impugnar o mandato de Michel Temer, provocando uma eleição indireta, na qual caberá aos parlamentares escolherem um(a) novo(a) presidente-tampão. Nesta circunstância, o favorito seria o candidato do PSDB, provavelmente FHC.

Quanta à Operação Lava-Jato, em algum momento terá de ser encerrada, pois é fonte de instabilidade permanente, com a qual o Brasil, percebe-se muito bem,  não está conseguindo mais conviver. 

Mas, a cidadania tem de mobilizar-se para garantir que os encalacrados não escapem impunes, caso contrário seria melhor trocar o nome do nosso país para Bananal.

O mínimo que se espera é termos todos os culpados impedidos por um bom tempo de reincidirem nas mesmas práticas: os políticos afastados compulsoriamente da política e de governos; e os empresários, da diretoria de grandes empresas.
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/12/o-brasil-e-um-barco-deriva.html

CRÔNICA DA INCOMPETÊNCIA DESASTROSA, DA GANÂNCIA ESPANTOSA E DA CORRUPÇÃO VERGONHOSA.


Quando trabalhava na redação d'O Estado de S. Paulo, uma embarcação de turismo naufragou na Baía de Guanabara, matando 55 passageiros. Como eu era da editoria de Geral e pouca coisa de interessante acontecia no comecinho do ano, passei os primeiros dias de 1989 ocupando-me durante o expediente inteiro de um único assunto: preparar para publicação uma tonelada de notícias sobre a tragédia do Bateau Mouche. Foi dose cavalar, não aguentava mais. Peguei ojeriza eterna a tais acidentes.

Mas, por ter-me compadecido dos jogadores da Chapecoense e de um jornalista morto na queda do avião da Cucaracha Airlines, desta vez, excepcionalmente, andei passando os olhos pelo noticiário. Pelo que captei:
1) quem pilotava era um dos donos da companhia, o que dá uma boa ideia do gabarito da empresa; 
2) tinha o combustível estritamente necessário, sem uma reserva para imprevistos; 
3) um dos dirigentes do órgão que fiscaliza e autoriza voos na Bolívia é filho do falecido piloto; 
4) uma funcionária boliviana estranhou o plano de voo não especificar um aeroporto para pouso de emergência, que é menção obrigatória, mas algum superior autorizou a viagem, jogando o regulamento no lixo; 
LaMia é de Merida?! Tem letra sobrando..
5) o avião partiu de uma cidade diferente da especificada no plano de voo, isto foi percebido por autoridade colombiana, mas mesmo assim se permitiu sua entrada no país (e se fossem terroristas islâmicos com a missão de bombardearem o palácio presidencial?); e  
6) o piloto, que já deixara de fazer uma parada para reabastecimento no aeroporto de Bogotá a fim de evitar uma despesa adicional de aproximadamente R$ 10 mil, refugou uma eternidade antes de comunicar à torre de controle que o combustível era insuficiente, por temer a multa pesada que lhe aplicariam e a suspensão de voos da empresa para a Colômbia até o caso ser analisado por uma comissão. Foi este o provável motivo de outro avião com problemas (existirá algum que não os tenha por lá?) haver ficado com a prioridade para pouso, retardando sua aterrissagem até que sofreu a pane seca.
Não sei por que, mas tenho a ligeira suspeita de que voos pague para entrar, reze para sair (como os da MamaMia!) ocorram amiúde nestes tristes trópicos; e de que controladores de voo iguais aos da Bolívia e Colômbia existam aos montes.

Enfim, aqueles tarados por adrenalina que praticam até roleta-russa, têm agora uma nova opção para satisfazer seu vício: embarcarem num avião-esquife desses.

Se eu tivesse de escolher entre um e outra, preferiria a roleta-russa. A chance de sobrevivência é maior.
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/12/cronica-da-incompetencia-desastrosa-e.html

A "classe média" e o golpe em movimento


protesto anti-Dilma dominada pela "classe média"
Os anos do petismo no Governo produziram mitificações grosseiras sobre o comportamento político e ideológico das camadas médias. O principal dele foi tomar a “classe média” como um todo reacionário, esquecendo, por exemplo, que durante os anos 80 a maioria do que podemos classificar como classe média votava no PT e PDT – dois partidos de esquerda e com níveis variados de elementos socialistas. De um ponto de vista estatístico, ainda que com uma explicação sociológica errada, André Singer, no seu livro “Os sentidos do lulismo”, demonstrou de forma satisfatória que houve um realinhamento eleitoral e a partir de 2006, e a maioria dos segmentos médios – não todos – passou a votar na direita ou centro-direita e ter o PSDB como seu principal partido político.

Essa direitização é uma resposta ideológica às situações objetivas. Tentando resumir a ideia, por uma série de transformações nos padrões globais e nacionais de acumulação do capital e do papel das camadas médias na divisão social e técnica do trabalho, existe uma insegurança social que não garante mais como tempos atrás – mais ou menos 30 anos – a reprodução da condição de classe. As camadas médias reduzem de tamanho em todo mundo, sofrem com uma competição cada vez mais intensa para se reproduzir e seu padrão de consumo está em constante processo de encarecimento. Pegando um exemplo simples: trinta anos atrás se um filho da “classe média” se formava em direito, contabilidade ou psicologia, seu emprego, salário razoável e reprodução das condições de classe era quase garantido; hoje, essa garantia não existe mais.

Outro elemento é o fator simbólico. A abissal desigualdade social no Brasil criou um padrão de consumo e sociabilidade que forjou um verdadeiro apartheid entre a classe média e as classes trabalhadoras. Poucos eram os espaços de consumo e convivência policlassista – como praias e estádios de futebol. O aumento relativo do poder de compra dos salários, a criação de nichos de "consumo popular" nos shopping da classe média, a expansão precarizada do ensino superior, a maior “democratização” do uso de certo bens de consumo (como TV a cabo e aeroportos), políticas sociais como cotas etc. feriram o exclusivismo de classe vigente por décadas e os signos de distinção social da classe média. Junte o mal-estar objetivo com o simbólico, o resultado foi segmentos importantes da classe média encontrar o culpado da degradação de sua condição material nas cotas, no bolsa família, no negro, na feminista, nas políticas sociais etc. O reacionarismo anti-PT, condicionado e potencializado pelos monopólios de mídia, foi uma resposta ideológica ao mal-estar material e simbólico e um grito patético, mas perigoso, de sobrevivência das camadas médias ameaçadas de “proletarização”.

A ideologia, embora tenha sua objetividade própria, não consegue negar a objetividade das relações materiais de produção e reprodução da vida. A “classe média” apoiou o impedimento e é ainda base de sustentação – base cada vez mais tímida e retraída – de um governo que tem como projeto político congelar os investimentos públicos por 20 anos, privatizar as estatais (já foi anunciado um plano de demissão para o Banco do Brasil de 18 mil funcionários), sucatear brutalmente as universidades, concluir a desindustrialização do país, acabar com a precária rede de proteção social etc. As medidas de Temer vão acelerar como nunca o rebaixamento econômico da “classe média”. O fim dos concursos públicos, o ataque às universidades e a própria recessão ou crescimento medíocre nos próximos anos terão efeitos que não existe manipulação midiática que consiga esconder. Nesse momento as cotas, o bolsa-família, o negro, a feminista etc. não poderão mais ser os culpados.

Enfim, quero dizer que teremos condições objetivas que vão abrir um processo de ruptura total entre a maioria dos segmentos médios e o Governo Temer – os sinais disso já são visíveis. Esse processo de ruptura pode não ser à esquerda. A possibilidade de ser capturado por um projeto tecnocrático – do tipo antipolítica – ou reacionário estilo Bolsonaro, me parece, na atual conjuntura, maior que ser absorvido pela esquerda. De toda forma, é, sem dúvida, um movimento em processo que estará em 2018 no centro da disputa eleitoral e nos próximos anos da disputa política.

http://makaveliteorizando.blogspot.com.br/2016/10/a-classe-media-e-o-golpe-em-movimento.html

A estética e a linguagem no processo de amoldamento de um Partido Socialista à ordem burguesa


manifestação de apoiadores do Syriza antes da eleição
Alguns meses atrás, debrucei-me no estudo do livro “As metamorfose da consciência de classe – o PT entre a negação e o consentimento”, de Mauro Luis Iasi. O livro é produto da tese de doutoramento do professor e expressa, também, uma espécie de “acerto de contas” sobre o rumo do seu partido antigo no processo de rompimento com o PT e sua volta ao PCB. 

De uma erudição incrível e com desenvolvimentos de difícil compreensão, o que mais me chamou atenção no livro foi o estudo sistemático sobre o processo de amoldamento à ordem burguesa – que na linguagem mais clássica do marxismo,chamaríamos de degeneração – de um partido operário e socialista: o PT. De um ponto de vista político, me parece evidente a importância desse debate na situação atual do Brasil; de um ponto de vista teórico, conheço poucos escritos de qualidade em português que procurem estudar o processo de amoldamento à ordem burguesa que acometeu partidos operários pelo mundo. – nesse exato momento, estou lendo um livro fantástico sobre o tema: Capitalismo e social democracia, de Adam Przeworski. É muito mais fácil encontrar bibliografia “crítica” sobre a URSS do que sobre o eurocomunismo ou a falência da socialdemocracia, por exemplo. 

Clarificando de agora, o livro de Iasi não é uma história social do PT e muito menos um mergulho nos seus meandros institucionais. Iasi procura analisar o movimento contraditório entre a negação e o amoldamento à ordem burguesa no PT através dos documentos do Partido (resoluções de encontro, congressos, etc.) e ideias expressadas pelos principais lideres partidários. Embora esse seja o foco, o candidato à presidência pelo PCB em 2014, em sua brilhante análise, elenca muitas questões determinantes desse processo, sem, contudo, aprofundar-se tanto na maioria das vezes. Uma destas questões, a que mais nos importa nesse momento, é sobre a linguagem e a estética do Partido nesse movimento. 

Estética não como a área da filosofia, e sim como o conjunto de elementos que constituem a imagem do partido: suas cores, símbolos, marcos históricos, palavras de ordem, etc. e as formas de linguagem de que se reveste o programa teórico, o discurso dos líderes e a formulação dos principais intelectuais orgânicos do partido. Em poucas palavras: que palavras e o que elas expressam um partido escolhe para apresentar seu programa (definições de minha responsabilidade e não do Mauro Iasi). 

Infelizmente, em vários estudos sobre o amoldamento à ordem burguesa de partidos socialistas/comunistas, destaca-se muito a crítica individualista – tal ou qual líder que abandonou os ideais da revolução etc. – e quando não maniqueísta, como a tradição de buscar “traições” ao longo da história pelos trotskistas. O processo de amoldamento de um partido operário à ordem burguesa é multifacetado e contém uma riqueza imensa de processos variados de acordo com a época histórica mais geral, os determinantes da formação social em que se fincam as raízes concretas do partido e a luta de classe em determinada conjuntura. Essa variabilidade de processos, porém, não nos impede de apontar alguns traços gerais presentes em vários exemplos nos dados pelas experiências do século XX. 

Um desses traços gerais expostos pelos elementos universais do amoldamento à ordem, a despeito de toda diversidade de formação social, conjuntura e dinâmica das lutas de classes, é o abandono da teoria revolucionária e dos seus corolários em estética e formas de linguagem. O famoso Bernstein-debate, isto é, a polêmica dentro do Partido Socialdemocrata alemão (SPD) sobre as ideias de Bernistein e seus seguidores – a direita do partido – e seus críticos, como o defensor da “ortodoxia”, Karl Kautsky, e a crítica demolidora da jovem polemista Rosa Luxemburgo é uma das demonstrações fáticas de nossa tese. 

A primeira grande expressão do revisionismo, a teorização aberta do amoldamento à ordem burguesa, dispensou, com a justificativa de renovação e revisar os erros em Marx e Engels, a teoria revolucionária. Lênin, em seu clássico “Que Fazer?”, colocou com brilhantismo inigualável o papel da teoria revolucionária na luta revolucionária. A frase “sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária” é mais que conhecida e rica em consequências teórico-políticas. Pegando o gancho de Lênin, mas ampliando seu sentido, podemos dizer, avançando um pouco em nossa argumentação, que toda prática política requer uma teoria de legitimação e guia, ainda que, em vários momentos históricos, haja uma dissociação aberta ou velada entre prática e teoria. 

A história mostrou que, dentro do SPD, o grupo de Bernstein ganhou a grande luta de classes. Contudo, demorou décadas até que o SPD deixasse de anunciar o socialismo como seu objetivo político. O próprio Bernstein defendia, segundo suas palavras, o socialismo, afirmando que sua “revisão” do marxismo é que poderia garantir alcançar o socialismo. Vejamos o que Lênin, em “Que Fazer?”, diz sobre o a tendência revisionista no seio da socialdemocracia internacional:

A socialdemocracia deve se transformar, de partido da revolução social, em partido democrático de reformas sociais. Bernestein respaldou essa reivindicação política com toda uma bateria de "novos" argumentos e considerações harmoniosamente orquestrados. Negaram a possibilidade de fundamentar cientificamente o socialismo e demonstrar, segundo a concepção materialista da história, sua necessidade e inevitabilidade; negaram a crescente miséria, a proletarização e o acirramento das contradições capitalistas; declararam inconsistente o próprio conceito de "objeto final" e rejeitaram completamente a ideia de ditadura do proletariado; negaram a oposição de princípios entre liberalismo e o socialismo; negaram a teoria da luta de classes, dando-a como não aplicável a uma sociedade de fato democrática, governada conforme vontade da maioria etc. [1]

Agora vejamos o que Mauro Iasi, mais de cem anos depois de “Que Fazer?”, ao tratar o processo de aburguesamento do PT, diz sobre a linguagem do partido:

As mudanças que se verificam não se operam aleatoriamente, mas no sentido de recolocar a consciência que se emancipava de volta nos trilhos da ideologia. Não é, em absoluto, certas palavras-chaves vão substituindo, pouco a pouco, alguns dos termos centrais das formulações: ruptura revolucionária por rupturas, depois por democratização radical, depois por democratização e finalmente chegamos aos “alargamento das esferas de consenso”; socialismo por socialismo democrático, depois por democracia sem socialismo; socialização dos meios de produção por um controle social do mercado; classe trabalhadora, por trabalhadores, por povo, por cidadãos; e eis que palavras como revolução, socialismo, capitalismo, classes, vão dando lugar cada vez mais marcante para democracia, liberdade, igualdade, justiça, cidadania, desenvolvimento com distribuição de renda. A consciência só expressa em sua reacomodação no universo ideológico burguês, nas relações sociais dominantes convertidas em ideias, a acomodação de fato que se operava no ser mesmo da classe no interior destas relações por meio da reestruturação produtiva e o momento geral de defensiva na dinâmica da luta de classe [2]

Em ambos os casos, SPD e PT, percebe-se a procura por realizar uma adaptação léxica aos imperativos da ordem burguesa – essa adaptação de linguagem é também, como fica evidente, política e ideológica. O PT, até o início dos anos 2000, mantinha uma presença significativa do suposto objetivo socialista em seus documentos e discursos de líderes. Esse “objetivo final”, contudo, era negado diariamente pela prática política, e negado, também, teoricamente pela estética do partido e suas palavras e conceitos. Aqui podemos avançar na segunda tese: historicamente, os processos de degeneração dos partidos socialistas avançam não negando em todo o programa socialista, mas dissociando teoria e prática e dotando a teoria de nexos de adaptabilidade à ordem burguesa.  

Agora vamos trabalhar com um exemplo ilustrativo inventado. Imagine um partido socialista e operário do tipo “clássico” do século XX. Esse partido sofre divisões e surgem no seu seio novos frações. Uma delas continua se proclamando socialista, mas retira o vermelho de suas cores, nega os símbolos do movimento operário do século XX, oculta em sua simbologia qualquer referência aos processos revolucionários do século passado, busca com desespero patético referências nos “sucessos” do movimento (Syriza, Podemos, etc.), as palavras classe trabalhadora e trabalhadores tornam-se cada vez mais raras no discurso e, no lugar de palavras-conceitos fundamentais do arcabouço marxista, como revolução, surge “transformação social”, no lugar de combater a propriedade privada, “reduzir as desigualdades” etc. 

Em nosso exemplo hipotético, ainda que os militantes dessa organização sejam socialistas sinceros e a organização em si continue se proclamando como socialista, existe, a nível molecular, uma adaptação à ordem. Esse tipo de transformação estética e discursiva muita vezes, senão na maioria, é mostrada como necessária para “atribuir o público”. 

Embora o debate sobre as formas de consciência, a ação política e sua relação não seja o foco do nosso texto, é importante tecermos algumas palavras sobre esse debate. A grande polêmica sobre as formas de consciência das massas, especialmente o senso comum, e como o partido revolucionário deve atuar contém inúmeras posições, de nossa parte, sem aprofundar nos porquês, consideramos a posição de Lênin a mais acertada. Lênin considera que a classe trabalhadora na sua experiência diária de trabalho e luta sindical, enquanto classe, não consegue transcender o nível da luta economicista – ou nos termos de Gramsci: econômico-corporativa –, o que não quer dizer, por suposto, que operários individuais e seguimentos da classe não o consigam. 

A consciência revolucionária vem de fora da classe em sua experiência cotidiana e sindical. Um partido revolucionário formado por operários destacados e intelectuais atua como uma mediação entre as lutas imediatas e o horizonte revolucionário, sendo um instrumento da classe trabalhadora para construir a capacidade revolucionária da classe trabalhadora. O que isso significa frente ao senso comum? Que o partido revolucionário irá partir do senso comum, considerar suas formas e peculiaridades, adotar formas de flexibilidade tática na agitação e propaganda e ação política, mas nunca, sob hipótese alguma, adaptar-se a esse senso comum. O partido revolucionário parte do senso comum considerando-o em sua ação, para, na mesma ação, negá-lo, galgando um nível mais elevado de consciência da realidade:

Vosso dever consiste em não descer ao nível das massas, ao nível dos setores atrasados da classe. ISSO NÃO SE DISCUTE. Tendes a obrigação de dizer-lhes a amarga verdade; de dizer-lhes que seus preconceitos democrático-burgueses e parlamentares não passam disso: preconceitos. Ao mesmo tempo, porém, deveis observar com serenidade o ESTADO REAL de consciência e de preparo de toda a classe (e não apenas de sua vanguarda comunista), de toda a massa trabalhadora (e não apenas de seus elementos avançados) [3]

Isso posto, para Lênin, tomar o senso comum como fato dado e formatar o partido de tal forma que fique atrativo ao senso comum é, além de uma forma de oportunismo, a negação da prática política revolucionária, e diria mais: outra maneira de adaptação molecular à ordem, dado que o senso comum é uma expressão da ideologia dominante [burguesa]. Ou seja, a fala corrente de que os partidos e organizações de esquerda “precisam saber dialogar melhor” e que a “direita tem uma linguagem mais fácil que a esquerda” pode também guardar muitas armadilhas embutidas. 

Enfim, à guisa de conclusão, quis, brevemente, demonstrar nesse texto que o processo de amoldamento à ordem burguesa de um partido socialista dá-se de diversas maneiras. Estar apenas atentado para grandes movimentos, como passar a receber dinheiro de empresas ou fazer alianças eleitorais com a direita, e perder outros elementos que parecem “pequenos”, mas na verdade são profundamente importantes, pode nos desarmar para impedir que organizações socialistas tornem-se aparelhos ideológicos e políticos da burguesia. 



[1] -  V. I. Lênin. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. Expressão Popular.
[2] – Mauro Luis Iasi. As metamorfose da consciência de classe – o PT entre a negação e o consentimento. Expressão Popular. 
[3] - V. I. Lênin. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Expressão Popular. 

http://makaveliteorizando.blogspot.com.br/2016/09/a-estetica-e-linguagem-no-processo-de.html

Os perigos da ideologia da unidade


Lula e Ciro Gomes.
Quem milita nos espaços de resistência já ouviu milhares de vezes a ideologia da unidade de toda esquerda, sem "sectarismo", proclamada pelos setores ex-governistas agora alijados do Governo Federal. Se fosse resumir a ideia, diria que ela se centra em três pontos fundamentais: a) a negação da necessidade de um balanço crítico (teórico e político) do programa democrático-popular e dos anos do petismo; b) a ideia que toda esquerda está unida, quase homogênea, na luta contra o governo Temer; c) a noção movimentista que esse não é o momento de debater as diferenças táticas, estratégicas e de concepções de ação política na resistência - apenas "agir".
Por que isso é uma ideologia? Porque é um conjunto de ideais que falsifica a realidade procurando ocultar que existem fortes divergências no seio da esquerda sobre como chegamos onde estamos e o que devemos fazer para sair dessa situação. Ainda esconde o debate sobre os rumos da esquerda nos últimos anos ao mesmo tempo em que impõe uma narrativa falsa do significado do impedimento: afirmando sempre que foi um governo popular derrubado por um movimento de direita, porque esse governo se negava a atacar os trabalhadores e seus direitos. Por fim, mas não menos importante, esconde um dado fundamental: continua existindo uma DISPUTA no seio do vago conceito de esquerda sobre "que caminho seguir", ou seja, sobre quem e como irá liderar os processos de resistência. Enquanto proclama uma unidade fictícia se desenrola nos bastidores articulações de cúpula visando a eleição de 2018 e impondo Lula ou Ciro Gomes numa nova velha frente de "centro-esquerda" com o "capital industrial" contra o "rentismo" num filme repetido com final previsível e de péssimo gosto.
Ninguém discorda da necessidade de unidade nesse momento contra a guerra de classe operada pelo Governo Temer. Mas que ninguém seja ingenuo de ver nessa unidade tática, na ação, a negação das disputas no seio da esquerda. Essas disputas fazem parte da luta de classe! Se, por exemplo, a maioria da esquerda continuar achando que a grande solução para seus problemas é lançar uma "frente eleitoral" para 2018 com Lula ou Ciro Gomes, na eterna espera de um messias, a classe dominante terá ganho outra batalha fundamental. Combater a conciliação de classe, o aparelhamento, o peleguismo, o institucionalismo, a burocratização e as teorias da pseudo-esquerda (keynesianismo, humanização do capitalismo, capital financeiro vs capital industrial etc.) é parte fundamental da organização das resistências e de forjar as possibilidades de avanço popular.
O fato gritante de ser a juventude, e não o sindicalismo, hoje a principal força política de combate ao ajuste fiscal antipopular só mostra que sem combater e destruir a cultura política forjada pelo programa democrático-popular nunca vamos ter condições de operar uma resposta política radical. Essa ideologia da unidade também esconde que em vários espaços de resistência, como na UFPE, PT e PCdoB continuam operando como freios da luta de classe contra as mobilizações e a radicalidade política. O PCdoB fez todo o possível e o inimaginável para impedir a greve dos professores na UFPE, por exemplo.
Enfim, peço a todos e todas que tenha o extremo cuidado com essa ideologia tal como colocada pelas forças ex-governistas da "unidade". Essa "unidade" é mais uma forma de querer subjugar o conjunto da esquerda socialista e comunista a seu eterno projeto de conciliação de classe e de unidade eleitoral com a burguesia dita progressista.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Contra o reformismo, trabalho de base

Encerrando os comentários sobre “O mito da Aristocracia Operária”, de Charles Post, é importante destacar o que o autor considera ser o ponto de partida para a criação das condições materiais e ideológicas no enfrentamento do reformismo entre os explorados.

Trata-se da necessidade de promover a auto-organização dos trabalhadores e sua auto-atividade. Principalmente, nas lutas iniciadas nos locais de trabalho, mas não limitadas a eles. Uma atividade que deve incluir também o combate a valores conservadores como racismo, machismo, homofobia, xenofobia...

Além disso, é preciso superar os obstáculos criados pela burocracia sindicais, partidárias e de outras organizações populares. Ainda que utilizem um discurso combativo, a estes setores interessa a manutenção da ordem para a perpetuação de seus privilégios.

As maiores ameaças continuam a vir do institucionalismo paralisante. De um lado, pesadas estruturas que engessam a luta. De outro, a priorização da atuação eleitoral. 

Estamos falando, claro, do bom e velho trabalho de base, de baixo para cima. Sempre acompanhado da disposição de estar presente em todas as frentes de luta contra a opressão e a exploração capitalistas. Não apenas nas lutas econômicas, mas em defesa dos direitos e da ampliação das liberdades para amplas maiorias. 

Na verdade, foi essa combinação que permitiu que as grandes revoluções acontecessem, desde a Comuna de Paris até as jornadas revolucionárias mais recentes. 

Tudo isso, porém, implica respeitar a capacidade crítica de que são capazes os setores explorados e oprimidos. Estes, quando se mobilizam, avançam para muito além do que podem nossas vãs teorias. Somente assim seremos capazes de tornar a luta por reformas um caminho sem volta pela revolução. 
http://pilulas-diarias.blogspot.com.br/2016/12/contra-o-reformismo-trabalho-de-base.html

AS CONTRADIÇÕES SE EXPLICITAM; A CRISE POLITICO-ECONÔMICA SE APROFUNDA.


"O nome disso é loucura. Haja arte e criatividade para curá-la."
(jornalista Arnaldo Bloch,  traçando um paralelo entre a cura da 
loucura política e as terapias alternativas da dra. Nise da Silveira)
.
Não é só aqui. Atualmente, no mundo todo, ocorrem mudanças políticas de gestores e choques de opiniões sobre conceitos político-econômico-institucionais, sem que se ataque o cerne do problema. 

Fatos inusitados começam a ocorrer. No Brasil podemos citar os da última 4ª feira (30/11):
  • um quebra-quebra praticado por cerca de 10 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios em Brasília, sem que a polícia em número bem inferior pudesse conter a avalanche de insatisfação;
  • políticos aprovam leis na calada da noite em causa própria e se cria uma explícita contradição entre o exercício dos poderes do Estado. 
Enquanto isto, o povo sofre com o desemprego, o empresariado sofre com a estagnação dos seus negócios e o Estado definha com a queda da arrecadação de impostos.

Serão tais acontecimentos apenas localizados, fruto da iniciativa pessoal de um magistrado federal de 1ª instância que tomou para si, juntamente com outros órgãos (Ministério Público e Polícia Federal), a iniciativa de puxar o fio do novelo da corrupção crônica? Ou se trata do resultado de uma decomposição sistêmica?
Até onde irá Sérgio Moro?

O fato é que as contradições inerentes à ilogia de um sistema fundado em bases incoerentes por sua própria essência constitutiva, mais cedo ou mais tarde tende a tornar explícitas tais contradições, como agora ocorre. As pessoas tendem a acreditar, ingenuamente, que é possível se combater a corrupção num sistema corrupto na sua essência constitutiva. Não é. A corrupção é da natureza funcional do sistema. 

A prova disto é que a explicitação feita pelas investigações da Operação Lava-Jato (no dizer de um membro do Ministério Público, "para cada pena que se extrai, aparece uma galinha inteira") já começa a entrar em choque com o Legislativo, um dos poderes do mesmo Estado a que pertencem a Polícia Federal, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário. Não é uma questão de algumas pessoas, mas da quase totalidade de uma instituição e do seu espírito e modus operandi funcional.    

No mundo todo o jogo político eleitoral encobre verdades inconfessáveis de manipulação econômica e da informação que molda a opinião pública. Nada é o que parece ser. Nem os democratas estadunidenses são tão humanistas quanto querem aparentar, nem os dirigentes e políticos republicanos acreditam nas benesses públicas que o propalado desenvolvimento econômico deveria proporcionar. A retórica que todos eles utilizam em discursos, pronunciamentos e entrevistas não passa de blablablá da boca pra fora. 

Só os muito ingênuos acreditam nas mensagens de campanhas eleitorais, que os marqueteiros preparam e os candidatos repetem como papagaios. Quando no governo, esquerda e direita tendem a ter comportamentos praticamente idênticos, vez que, tais quais surfistas, apenas se equilibram na onda da lógica econômica que lhes serve de conceito e de bússola. 
Legislativo se avacalha, Judiciário  ocupa espaços vazios

O que se observa agora, com a tentativa de eliminação pelo Legislativo das franquias constitucionais do Judiciário (inamovibilidade, vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos, imunidade de formação de juízo de valor) é a explicitação da inconciliável oposição entre o melhor senso de aplicação da justiça e um sistema que faz da injustiça a sua razão de ser, via funcionamento da lógica das relações sociais mercantis, subtrativa da riqueza coletiva produzida. Vejamos três pontos:
1) o processo eleitoral, determinado pelo poder econômico e midiático (empresas jornalísticas que pertencem ao mundo econômico), é viciado por tal condição e, portanto, os seus membros, majoritariamente, pertencem a este universo de relações e são por ele sustentados. É contrário ao interesse popular. Assim, como querer que defendam a elaboração de leis justas e de realização da justiça?
2) o poder Judiciário trabalha com leis formatadas por esse poder Legislativo e dentro da lógica do capital: trata-se de um direito legiferado, que é a negação do direito natural. Depois de muitas filigranas de interpretação jurídica e aculturação secular positivando tais cânones jurídicos é que a legislação de cada país capitalista se constitui em diplomas jurídicos que proclamam e buscam a realização do ideal de justiça. Como tudo nas relações mercantis, a verdade é o momento do falso(Guy Debord); 
3) a guerra da concorrência mercantil, na qual as grandes empresas nacionais e internacionais disputam fatias de mercado cada vez mais exíguas, exige comportamentos inconfessados, que a legislação vigente não pode ratificar explicitamente. Mas, os ditos cujos são praticados à farta nas tenebrosas transações que têm lugar no submundo dos gabinetes dos importantes dirigentes empresariais e governamentais. 
O poder Judiciário, quando resolve coibir tais transações, entra em choque com a natureza funcional do sistema, provocando um efeito contrário ao pretendido; ou seja, ao invés de estimular os negócios, provoca maior estagnação econômica localizada, num cenário de estagnação global, daí as tentativas de de coibir sua atuação, como ocorre agora.       
É NA BASE DA CRISE POLITICO-INSTITUCIONAL QUE
 ESTÁ A CRISE ECONÔMICA, E NÃO O CONTRÁRIO. 

Nos tempos de ascensão capitalista, ainda que o quadro geral seja sempre de pobreza, acredita-se, equivocadamente, que as coisas estejam melhorando e seguindo um curso de prosperidade futura geral. Aceitam-se os sofrimentos como dores do parto das benesses vindouras (como agora se crê na cantilena da austeridade para a retomada do desenvolvimento). 

Nestes momentos, o poder Executivo, fortalecido e convivendo com a sensação de satisfação geral, inibe qualquer iniciativa de contestação às instituições, sendo tudo abafado como pecadilho pontual em nome do interesse sistêmico maior.

Quando chega a debacle econômica, procuram-se culpados pontuais sobre os quais se possa jogar a culpa da crise. 
O capitalismo, hoje: um cobertor curto.
A alternância de cenários econômicos está por trás da eterna alternância de governantes no poder, cada um com seu discurso de salvação e competência, sem que nenhum chegue à raiz de problema, que é a necessidade imperiosa de superação do próprio sistema, pois se tornou impossível o seu aperfeiçoamento. 

A vez agora é do discurso do nacionalismo xenófobo que contraria as últimas bolhas de oxigênio do capitalismo. As contradições se tornam cada vez mais explícitas. 

A crise, ademais, fortalece na opinião pública a crença de que é suficiente a meritória (mas ingênua) cruzada de alguns integrantes do poder Judiciário que tentam consertar o inconsertável. A corrupção com o dinheiro público, contudo, está longe de ser a causa de todos os males; é apenas um deles.
  
Passamos pela mais grave e demorada crise econômica desde a depressão iniciada em 1929 e que se prolongou pela década de 1930 adentro, pois agora, diferentemente dos mecanismos de controle estatal econômico ainda existentes naquele momento, as contradições atuais são insuperáveis, porque generalizadamente decorrentes da crise profunda dos fundamentos econômicos no estágio do limite de expansão interna do capital; e têm proporções gigantescas, com as labaredas do incêndio se propagando sem que haja bombeiros em número suficiente para as debelarem. 

Por que não se pensa em formas alternativas de superação de crise, insistindo-se na busca de soluções que são imanentes à causa dos problemas? 

Porque os mecanismos de controle sistêmico, guiados por uma lógica funcional preexistente (não é uma questão de pessoas pensando, mas de pessoas que agem sem pensar, obedientes a tal lógica da qual se tornaram dependentes), não consegue se desapear de sua programação, tal qual os bonecos de teatros de marionetes, cujos movimentos são manipulados de fora.

Nunca nos foi tão urgente adquirirmos consciência do que deve e pode ser feito.
 (por Dalton Rosado)
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2016/12/as-contradicoes-se-explicitam-crise.html