Numa entrevista conduzida pelo jornalista italiano Tommaso Segantini, Noam Chomsky fala sobre Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, e o potencial de cidadãos comuns para protagonizarem mudanças radicais.
Ao longo da sua ilustre carreira, uma das principais preocupações de Noam Chomsky tem sido questionar - e exortar-nos a questionar - os pressupostos e as normas que regem a nossa sociedade.
Na sequência de uma palestra sobre poder, ideologia e política externa dos EUA, que teve lugar no fim-de-semana passado na New School, em Nova Iorque, o jornalista italiano freelancerTommaso Segantini sentou-se com o octogenário para discutir alguns desses mesmos temas, incluindo a forma como eles se relacionam com processos de transformação social.
Para os radicais, o progresso exige perfurar a bolha da inevitabilidade: a austeridade, por exemplo, "é uma decisão política assumida pelos seus autores para os seus próprios fins". Não é implementada, diz Chomsky, "devido a quaisquer leis económicas". O capitalismo americano também beneficia do obscurecimento ideológico: apesar da sua associação aos livres mercados livres, o capitalismo está repleto de subsídios para alguns dos mais poderosos atores privados. Também é preciso estourar esta bolha.
E permanece moderadamente optimista: "Ao longo do tempo há uma espécie de trajetória geral no sentido de uma sociedade mais justa, com retrocessos e revezes, como é óbvio".
Numa entrevista há alguns anos atrás, disse que o movimento Occupy Wall Street tinha criado um sentimento raro de solidariedade nos EUA. A 17 de setembro celebrou-se o quarto aniversário do movimento OWS. Qual é a sua avaliação dos movimentos sociais, como o OWS, ao longo dos últimos vinte anos? Têm sido eficazes a promover a mudança? Como poderiam melhorar?
Eles tiveram um impacto; não se fundiram em movimentos persistentes e contínuos. É uma sociedade muito atomizada. Há muito poucas organizações com atividade contínua que têm memória institucional, que sabem como passar para a próxima etapa e assim por diante.
Esta realidade deve-se em parte à destruição do movimento operário, que costumava oferecer uma espécie de base fixa para muitas atividades; atualmente, praticamente as únicas instituições persistentes são as igrejas. Muitas coisas estão ligadas à igreja.
É difícil para um movimento vingar. Existem vários movimentos de jovens, que tendem a ser transitórios; por outro lado, há um efeito cumulativo, e nunca sabemos quando algo vai despoletar um movimento de grandes dimensões. Isto já aconteceu inúmeras vezes: movimento dos direitos civis, movimento de mulheres. Por isso, continuem a tentar até que algo ganhe uma dimensão considerável.
A crise de 2008 mostrou claramente as falhas da doutrina económica neoliberal. No entanto, o neoliberalismo ainda parece persistir e os seus princípios ainda são aplicados em muitos países. Por que, mesmo com os trágicos efeitos da crise de 2008, a doutrina neoliberal parece ser tão resistente? Por que ainda não surgiu uma resposta forte como após a Grande Depressão?
Em primeiro lugar, as respostas europeias têm sido muito piores do que as respostas dos EUA, o que é bastante surpreendente. Nos EUA, existiam esforços moderados no que respeita ao estímulo, flexibilização quantitativa e assim por diante, o que lentamente permitiu a recuperação da economia.
Na verdade, a recuperação da Grande Depressão foi realmente mais rápida em muitos países do que é hoje, por uma série de razões. No caso da Europa, uma das principais razões é que a criação de uma moeda única foi um desastre, como muitas pessoas apontaram. A UE não dispõe de mecanismos para responder à crise: a Grécia, por exemplo, não pode desvalorizar a sua moeda.
A integração da Europa teve uma evolução muito positiva em alguns aspectos e foi prejudicial noutros, especialmente quando se está sob o controlo de potências económicas extremamente reacionárias, que impõem políticas economicamente destrutivas e que são basicamente uma forma de guerra de classes.
Por que não há reação? Bem, os países mais fracos não estão a receber apoio de outros. Se a Grécia tivesse tido o apoio de Espanha, Portugal, Itália e outros países talvez tivessem sido capazes de resistir às forças eurocratas. Estes são uma espécie de casos especiais que têm a ver com desenvolvimentos contemporâneos. Na década de 1930, lembre-se que as respostas não eram particularmente atraentes: um delas era o nazismo.
Há vários meses, Alexis Tsipras, líder do Syriza, foi eleito como primeiro-ministro da Grécia. No final, no entanto, teve de fazer muitos compromissos devido à pressão que lhe foi imposta por potências financeiras, e foi forçado a implementar duras medidas de austeridade.
Considera que, em geral, é possível uma verdadeira mudança quando um líder esquerdista radical como Tsipras chega ao poder, ou os Estados-nação perderam a sua soberania e são muito dependentes de instituições financeiras que podem discipliná-los se não quiserem seguir as regras do mercado livre?
Como já afirmei,
no caso da Grécia, se o país tivesse usufruído do apoio popular de outras partes da Europa, poderia ter sido capaz de resistir ao ataque da aliança da banca eurocrata. Mas a Grécia estava sozinha - não tinha muitas opções.
Há muito bons economistas como Joseph Stiglitz que pensam que a Grécia deveria apenas ter saído da zona euro. É um passo muito arriscado. A Grécia é uma economia muito pequena, não é propriamente uma economia de exportação, e seria muito fraca para resistir a pressões externas.
Há pessoas que criticam as táticas do Syriza e a posição que tomou, mas eu acho que é difícil ver quais as opções que tinha mediante a falta de apoio externo.
Vamos imaginar, por exemplo, que Bernie Sanders ganhou as eleições presidenciais de 2016. O que acha que aconteceria? Ele poderia causar uma mudança radical nas estruturas de poder do sistema capitalista?
Suponhamos que Sanders ganha, o que é bastante improvável num sistema de eleições compradas. Ele estaria sozinho: não tem representantes no Congresso, não tem governadores, não tem apoio na burocracia, não tem deputados; e, estando sozinho neste sistema, não podia fazer muito. Uma alternativa política real é transversal, e não apenas uma personalidade na Casa Branca.
Teria de ser um movimento político amplo. Na verdade, penso que é importante que na campanha de Sanders estejam a ser levantadas questões, se pressione os principais democratas um pouco num sentido progressista, e que estejam a ser mobilizadas várias forças populares, e o resultado mais positivo seria elas permanecerem após a eleição.
É um erro grave focarmo-nos apenas na extravagância eleitoral quadrienal e, em seguida, ir para casa. Não é assim que as mudanças acontecem. A mobilização pode levar a uma organização popular contínua, o que poderia ter efeitos a longo prazo.
Qual é a sua opinião sobre a emergência de figuras como Jeremy Corbyn, no Reino Unido, Pablo Iglesias em Espanha, ou Bernie Sanders nos EUA? É um novo movimento de esquerda em ascensão, ou são apenas respostas esporádicas à crise económica?
Depende da reação popular. Vejamos
Corbyn na Inglaterra: ele está sob ataque feroz, e não apenas a partir do
establishment conservador, mas inclusive a partir do
establishment dos trabalhistas. Oxalá Corbyn seja capaz de resistir a este tipo de ataque; o que depende do apoio popular. Se o público está disposto a apoiá-lo face à difamação e táticas destrutivas, então ele pode ter um impacto. O mesmo acontece com o
Podemos em Espanha.
Como é possível mobilizar um grande número de pessoas num contexto tão complexo?
Não é assim tão complexo. A tarefa dos organizadores e ativistas é ajudar as pessoas a entenderem e a fazê-las reconhecer que têm poder, que não são impotentes. As pessoas sentem-se impotentes, mas isso tem de ser superado. É disso que se trata a organização e o ativismo.
Às vezes funciona, às vezes não, mas não há nenhum segredo. É um processo de longo prazo – sempre foi assim. E teve sucessos. Ao longo do tempo há uma espécie de trajetória geral no sentido de uma sociedade mais justa, com retrocessos e revezes, como é óbvio.
Então diria que, durante a sua vida, a humanidade progrediu na construção de uma sociedade um pouco mais justa?
Houve enormes mudanças. Basta olhar aqui para o MIT. Dê um passeio pelo corredor e olhe para a comunidade estudantil: metade são mulheres, um terceiro minorias, informalmente vestidos, estabeleceram-se relações casuais entre as pessoas e assim por diante. Quando cheguei aqui em 1955, se tivesse atravessado o mesmo corredor, veria machos brancos, de casaco e gravata, muito educados, obedientes, sem levantarem muitas perguntas. É uma mudança enorme.
E não é só aqui - é em todos os lugares. Nós não teríamos este aspeto, e, de facto, você provavelmente não estaria aqui. Essas são algumas das mudanças culturais e sociais que tiveram lugar graças ao ativismo comprometido e dedicado.
Noutros setores não se produziram essas mesmas mudanças, como no movimento sindical, que tem estado sob forte ataque ao longo de toda a história americana e particularmente desde o início dos anos 1950. Ele foi seriamente enfraquecido: no setor privado é marginal, e
está agora a ser atacado no setor público. Isso é um retrocesso.
As políticas neoliberais são, certamente, um retrocesso. Para a maioria da população nos EUA, tem existido essencialmente estagnação e declínio na última geração. E não por causa de quaisquer leis económicas. Estas são políticas. Assim como a austeridade na Europa não é uma necessidade económica - na verdade, é um disparate económico. Mas é uma decisão política assumida pelos seus autores
para os seus próprios fins. Creio que, basicamente, é uma espécie de guerra de classes, e é possível resistir, mas não é fácil. A história não segue uma linha reta.
Como irá o sistema capitalista sobreviver, tendo em conta a sua dependência dos combustíveis fósseis e o seu impacto sobre o meio ambiente?
O que é chamado de sistema capitalista está muito longe de qualquer modelo de capitalismo ou mercado. Veja as indústrias de combustíveis fósseis: um
estudo recente do FMI tentou estimar o subsídio que as empresas de energia recebem dos governos. O total foi colossal. Creio que foi de cerca de 5 biliões de dólares anuais. Isso não tem nada a ver com mercados e capitalismo.
E o mesmo se aplica a outros componentes do chamado sistema capitalista. Até agora, nos EUA e noutros países ocidentais, tem-se registado, durante o período neoliberal, um aumento acentuado da financeirização da economia. As instituições financeiras nos EUA tinham cerca de 40 por cento dos lucros corporativos na véspera do colapso de 2008, do qual tinham uma grande parcela de responsabilidade.
Há um outro estudo do FMI que investigou os lucros dos bancos norte-americanos, e descobriu que estes estavam quase inteiramente dependentes de subvenções públicas implícitas. Há uma espécie de garantia - não é no papel, mas é uma garantia implícita - de que se estiverem em apuros vão ser socorridos. A isso chama-se grandes demais para falirem.
E as agências de rating sabem-no, têm isso em conta, e com um rating elevado, as instituições financeiras têm acesso privilegiado a crédito mais barato, recebem subsídios caso as coisas corram mal e muitos outros incentivos, o que efetivamente talvez equivalha ao seu lucro total. A imprensa de negócios tentou fazer uma estimativa desse número e chegou a cerca de US 80 mil milhões de dólares ao ano. Isso não tem nada a ver com o capitalismo.
Acontece o mesmo em muitos outros sectores da economia. Portanto, a verdadeira questão é: irá este sistema de capitalismo de Estado, que é o que é, sobreviver à utilização contínua de combustíveis fósseis? E a resposta para isso é claro que não.
Até agora, há um consenso muito forte entre os cientistas que dizem que uma grande maioria dos combustíveis fósseis restantes, talvez 80 por cento, tem de ser deixada no solo, se queremos evitar um aumento da temperatura que seria muito letal. E isso não está a acontecer. Os seres humanos podem estar a destruir as suas hipóteses de sobrevivência decente. Não mataria todas as pessoas, mas
mudaria o mundo de forma dramática.
Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net.