quinta-feira, 14 de junho de 2018

Homero narrando futebol seria uma tragédia


Em 17/06/1954, Carlos Drummond de Andrade iniciava sua crônica no Correio da Manhã assim:

Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Torres, Lamadrid e Arellano quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal…

Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero...

Felizmente, ninguém atendeu-lhe o pedido.

https://pilulas-diarias.blogspot.com/2018/05/homero-narrando-futebol-seria-uma.html

O futebol entre o tribalismo e o nacionalismo


Em artigo na Folha de 10/06/2018, o historiador Hilário Franco Júnior lembra que o futebol surgiu antes da consolidação dos estados nacionais. Teria, assim, uma vocação “tribalista”. Daí, diz ele, não faz sentido querer “transformar o tribalismo em nacionalismo.”

No último mundial de clubes, por exemplo, dizer que "o Grêmio é Brasil" despreza importantes “rivalidades tribais”. Tanto os torcedores do Internacional como os de todos os outros times vencedores daquela competição ficaram contra o tricolor gaúcho. Os sentimentos tribais teriam ficado acima de um “hipotético sentimento nacional no qual não se viam representados”.

O fenômeno não é exclusividade de nosso futebol. O historiador lembra a recente final da Liga Europa entre Atlético de Madrid e Olympique de Marseille. Nos respectivos países, as torcidas rivais de cada time queriam a derrota de seus conterrâneos. “Tratava-se de assunto tribal, não nacional”.

Para Franco Jr.:

...paixões violentas podem surgir tanto de sentimentos tribais como de sentimentos nacionais, mas estes últimos são mais difíceis de serem controlados devido ao seu alto grau de institucionalização e seus amplos recursos materiais e humanos.

A livre circulação dos atletas fez surgirem “verdadeiras seleções internacionais agregadas sob bandeiras tribais”. Desse modo, já “não é necessário esperar quatro anos para ver os nomes mais talentosos atuando lado a lado; basta acompanhar os principais campeonatos nacionais europeus e suas competições continentais”.

Por isso, não se pode esperar que a Copa do Mundo seja “instrumento de pacificação entre países de boa vontade”, como queria seu criador, Jules Rimet. “Basta que seja uma disputa esportiva limpa dentro e fora do campo”.

E mesmo isso já é pedir muito!

https://pilulas-diarias.blogspot.com/2018/06/o-futebol-entre-o-tribalismo-e-o.html

O futebol na confusa terra dos irmãos do vento


O livro “O goleiro e outros textos sobre futebol” reúne nomes como Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, José Miguel Wisnik e Tostão.

O trecho que segue abaixo é de Paulo Mendes Campos. “História do Brasil” é uma crônica publicada na Revista “Manchete”, em 06/08/1966.

No texto, o cronista cita a derrota da seleção brasileira pelo Uruguai, em 1950, sua eliminação pela Hungria, em 1954 e o bicampeonato conquistado em 1962. Portugal eliminaria o Brasil na Copa de 1966.

E o Senhor disse:

Agora criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá no concerto das nações pelo nome de Brasil.

E o tórrido Brasil amará o futebol acima de pai e de mãe. Então criarei a Copa do Mundo. E um dia o Brasil perderá esse galardão na última batalha, dentro de seus próprios muros, quando lhe bastaria o empate. Quatro anos depois caberá aos comunistas eliminar os brasileiros, para que se aumente a confusão. E para que se aumente a confusão, criarei uma comissão técnica que não entenda nada de futebol. E esta será bicampeã do mundo. E o tórrido Brasil, chorando de alegria, beberá muita cachaça, e comerá muito pastel, e tocará muita cuíca. Aí, eis que farei o Brasil perder o Tri, e a Taça, e a Alegria para Portugal. Pois assim está escrito. Para que o brasileiro continue na sua confusão, irmão do vento, que ninguém entende.

O Tri, o Tetra e o Penta finalmente vieram. Mas nada disso parece ter nos tirado, irmãs e irmãos de vento, de nossa invicta confusão.