sexta-feira, 8 de março de 2019

Deve-se ensinar ‘coisas de mulher’ aos meninos?

"A escola livre luta contra todos os preconceitos que arruínam a vida das pessoas. O preconceito de que a tarefa doméstica é digna apenas de seres com necessidades menores abala a relação entre homens e mulheres, introduzindo nela um princípio de desigualdade. Tal preconceito não martirizou apenas uma mulher, não gerou alienação e discórdia em apenas uma família."


Nadiéjda Krúpskaia (1869-1939)

Por Nadiéjda Krúpskaia.

Exatamente 150 anos atrás, dia 26 de fevereiro de 1869, nascia Nadiéjda Konstant Ínovna Krúpskaia. Pedagoga, militante revolucionária e uma das pioneiras da luta pela emancipação feminina na Rússia soviética. Em homenagem a essa figura excepcional, o Blog da Boitempo recupera uma breve intervenção dela escrita no início do século passado, mas que possui atualidade redobrada em uma era de “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”. Publicado originalmente em Svobódnoie Vozpitánie/Свободное воспитание[Educação Livre], n. 10, 1909‑1910, a tradução é de Priscila Marques e integra antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizada por Graziela Schneider.

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No relatório da Comissão para a Educação Popular de São Petersburgo no ano de 1908, um dos especialistas, ao emitir um parecer sobre o ensino de bordado, diz:

Acerca dos bordados, devo atestar com a mais profunda alegria que em quase todas as escolas mistas eles eram apreciados não apenas por meninas, mas por meninos, e os últimos desempenhavam essa tarefa com tanto gosto que em algumas escolas seus resultados superavam o das meninas, por exemplo, na costura e no trançado.

Esse trecho do relatório supracitado foi inserido na edição de dezembro do ano passado do boletim de educação, na seção de crônicas; o autor da crônica expressa certa dúvida quanto à utilidade de se ensinar meninos a costurar.

Gostaria de dizer algumas palavras sobre esse tema.

Antes de tudo, colocarei a questão de forma mais geral: deve-se ensinar aos meninos aqueles trabalhos que até então eram considerados exclusivamente femininos, como costurar, cozinhar, lavar, cuidar de crianças etc.?

Na sociedade contemporânea, a vida familiar está ligada – e isso provavelmente continuará assim por muito tempo – a uma série de pequenos cuidados que se relacionam com a concretização de afazeres domésticos isolados. A futura reformulação da produção e a alteração das condições da vida em sociedade introduzirão significativas mudanças nesse âmbito, mas enquanto a vida familiar estiver ligada a tarefas como cozinhar o almoço, limpar a casa, remendar o uniforme, educar os filhos etc., todo esse trabalho recairá integralmente sobre a mulher.

Nas famílias que possuem meios, esse trabalho cabe a uma empregada contratada: cozinheira, faxineira, babá. A mulher de posses liberta-se de tais tarefas, encarregando outra mulher que não tem, ela mesma, chance de se libertar. De uma forma ou de outra, todo o trabalho doméstico recai exclusivamente sobre a mulher. No meio operário, o marido às vezes contribui com a esposa nos afazeres. A necessidade o obriga. Ao retornar do trabalho, nos feriados, nos dias de folga, o trabalhador por vezes vai até a mercearia, varre o chão e cuida das crianças. É claro, nem sempre e nem todos fazem isso; além do mais, muitos nem sequer sabem fazê-lo (costurar, lavar), e a esposa, que às vezes também passa o dia trabalhando fora de casa, quando volta, põe-se a lavar roupa, a limpar o chão e fica até tarde da noite costurando, quando o marido há muito está dormindo. Mas se entre os trabalhadores às vezes ocorre de o marido ajudar a esposa com o trabalho doméstico, nas assim chamadas famílias da intelligentsia, por mais desprovidas que sejam, o homem nunca participa desse serviço, deixando que a esposa faça suas “coisas de mulher” da maneira como ela sabe. Um “intelligent” limpando o chão ou remendando a roupa branca seria alvo de gozação de todos à sua volta.

Na imprensa burguesa (em especial do Ocidente), fala-se muito que o trabalho doméstico é um campo no qual a mulher pode empregar suas forças de maneira mais produtiva. A pessoa só cria algo verdadeiramente grandioso atuando na esfera que melhor corresponde à sua individualidade, e os pequenos cuidados domésticos são os mais apropriados à individualidade da mulher. Ela deve se preocupar em ser uma dona de casa exemplar, e não se esforçar para deixar a vida familiar nem concorrer com o homem no campo do trabalho intelectual. Não se trata de desprezar a função de tirar o pó e remendar meias-calças; são tarefas que merecem todo respeito e de forma alguma desprezo.

A hipocrisia desse discurso é evidente, uma vez que os homens que saem por aí anunciando seu grande respeito pelo trabalho doméstico jamais se rebaixam a efetivamente realizá-lo. Por quê? Pois, no fundo de sua alma, desprezam essa tarefa, consideram-na coisa de seres menos evoluídos, possuidores de necessidades mais simplórias.

Todas essas conversas sobre a mulher ser “naturalmente predestinada” à execução dos afazeres domésticos são bobagens semelhantes ao discurso que, na época, os donos de escravos faziam sobre estes serem “naturalmente predestinados” à condição de escravos.

Em essência, não há nada no trabalho doméstico que faça com que ele seja uma ocupação mais adequada para a individualidade da mulher do que para a do homem. Certos trabalhos que exigem grande força física estão acima da capacidade das mulheres, mas por que o homem não pode realizar afazeres domésticos junto com a esposa? A questão não é que esse trabalho seja inerente à esfera das mulheres, mas sim que o marido precisa trabalhar durante a maior parte do tempo fora de casa para garantir o sustento. Enquanto isso acontecer, haverá algum fundamento para que as tarefas de casa sejam realizadas exclusivamente pelas forças femininas. Mas, à medida que a mulher é cada vez mais forçada a também se dedicar a assegurar seu ganha-pão, os afazeres domésticos tomam um tempo adicional, e não é justo que os homens não contribuam para a sua realização. Da mesma forma, se a profissão do marido permite que ele tenha muito tempo livre, não é justo que ele considere indigno se dedicar ao trabalho doméstico em pé de igualdade com a esposa.

A escola livre luta contra todos os preconceitos que arruínam a vida das pessoas. O preconceito de que a tarefa doméstica é digna apenas de seres com necessidades menores abala a relação entre homens e mulheres, introduzindo nela um princípio de desigualdade. Tal preconceito não martirizou apenas uma mulher, não gerou alienação e discórdia em apenas uma família. A escola livre é uma ardente defensora da educação conjunta, uma vez que considera que o trabalho coletivo e as condições iguais de desenvolvimento favorecem a compreensão mútua e a aproximação espiritual dos jovens de ambos os sexos e, assim, servem de garantia para relações saudáveis entre homens e mulheres. A partir desse ponto de vista, a escola livre, ao ensinar trabalhos manuais, não deve diferenciar crianças de sexos distintos. É preciso que meninos e meninas aprendam da mesma forma a fazer todo o necessário no trabalho doméstico e não se considerem indignos de realizá-lo.

Quem já observou crianças sabe que na primeira infância os meninos se dispõem com tanto gosto quanto as meninas a ajudar a mãe a cozinhar, a lavar a louça e a realizar quaisquer tarefas domésticas. Isso parece tão interessante! Mas, em geral, desde os primeiros anos começa a haver uma diferenciação no interior da família. As meninas recebem a incumbência de lavar as xícaras, de arrumar a mesa, enquanto para os meninos dizem: “O que você está fazendo aqui na cozinha? Por acaso isso é coisa de homem?”. As meninas são presenteadas com bonecas e louças; os meninos, com trens e soldadinhos. Na idade escolar, eles já aprenderam em suficiente medida a desprezar “as meninas” e suas tarefas. É verdade que esse desprezo ainda é muito superficial e, se a escola seguir outra abordagem, essa depreciação por “coisas de mulher” rapidamente desaparecerá. Com tais objetivos, é preciso ensinar aos meninos, juntamente com as meninas, a costurar, a fazer crochê, a remendar a roupa branca, ou seja, tudo aquilo sem o qual não se pode viver e cujo desconhecimento torna a pessoa impotente e dependente de outros. Se essa aprendizagem ocorrer como se deve, há razões para pensar que os meninos a realizem com prazer, como se pode observar no exemplo das escolas de Petersburgo (é característico que esse experimento tenha sido realizado em escolas mistas). Sendo assim, é preciso encarregar alternadamente as próprias crianças (sem separação do trabalho entre meninos e meninas) da tarefa de preparar o café da manhã coletivo, de lavar a louça, de arrumar as salas, de limpá-las etc. O desejo de ser útil, de realizar bem a função que lhe foi atribuída, o entusiasmo pelo trabalho farão com que o menino logo se esqueça do seu desdém pelas “coisas de mulher”.

É claro que seria ridículo esperar grandes consequências de se ensinar “coisas de mulher” aos meninos, mas trata-se de um daqueles detalhes que compõem o espírito geral da escola e aos quais é preciso atentar.


***

Nadiéjda Krúpskaia nasceu em São Petersburgo, em uma família aristocrática, foi pedagoga, crítica literária, memorialista e revolucionária. Iniciou sua atividade revolucionária nos anos 1890 frequentando círculos de estudantes marxistas e operários e logo entrou para a União da Luta pela Libertação da Classe Operária. Em 1896, foi presa e, em 1898, no exílio, casou‑se com Lênin. A partir de 1903, passou a atuar no Partido Operário Social‑Democrata Russo como secretária da redação do Ískra [Faísca], jornal do partido, e, em 1905, do Comitê Central. Retornou à Rússia por um breve período, mas, após a Revolução de 1905, mudou‑se para a França, onde passou vários anos. Depois da Revolução de Outubro, tornou‑se deputada do Comissariado para a Educação, mais especificamente da Divisão de Educação para Adultos. Em 1920, assumiu o Comitê de Educação; em 1924, ingressou no Comitê Central do Partido Comunista e, em 1927, na Comissão de Controle. Entre 1929 e 1939, trabalhou como Comissária da Educação e, em 1931, entrou para o Soviete Supremo e recebeu o título de cidadã honorária. Colaborou também para a fundação do Komsomol e do movimento dos escoteiros. Seus textos estão reunidos na antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética(Boitempo, 2017), organizada por Graziela Schneider.








FONTE:





domingo, 3 de março de 2019

A guerra de guerrilhas do clã Bolsonaro


Logo após demiti-lo, Bolsonaro divulgou um vídeo elogioso a Gustavo Bebianno. Mas o pronunciamento não apareceu nas redes virtuais dos bolsonaristas mais fiéis.

Ao contrário, reportagem de Daniela Lima, publicada na Folha em 20/02/2019, relata que filhos e pessoas próximas a Bolsonaro retrataram Bebianno como traidor, agente infiltrado, quinta coluna, conspirador aliado à “grande mídia”...

A conduta corresponde ao que diz Pedro Dória em artigo publicado no Globo, em 24/01/2019. Segundo ele, a estratégia digital do clã Bolsonaro busca alcançar objetivos muito claros. Um deles é:

...agir sobre as conversas, interromper o diálogo. Qualquer um que critique o presidente é imediatamente inundado de respostas, em geral ataques duros e com poucas palavras até para padrões do Twitter. E a enchente de respostas torna impossível filtrar no meio quais os comentários interessantes, quem de fato buscava o diálogo. Ataques sistematizados assim, nos quais a turba é orientada a apontar para uma pessoa e bombardear, correspondem a uma das formas modernas de censura. Cala-se não proibindo a fala, mas fazendo com que ela desapareça no ruído.

Mas o mais importante nisso tudo é “municiar de argumentos sua própria militância quando precisa lidar com críticas”. E, com isso, mantê-la “em constante estado de alerta”.

Ou seja, trata-se de manter um grupo de fanáticos em constante mobilização para travar uma espécie de guerra de guerrilhas. Tendo entre seus principais alvos não apenas a oposição, mas a grande mídia e outros setores da burguesia não totalmente alinhados ao governo.

Não temos nada a aprender com o fanatismo e as mentiras bolsonaristas. Mas alguma coisa sobre guerras de guerrilhas pelas redes, talvez.

Tecnologia: amor, medo, luta de classes


Atualmente, poucos temas apaixonam tanto como a tecnologia. Mas as paixões envolvidas são, principalmente, amor e medo.

Em “Rua de mão única”, Walter Benjamin afirma:

...que “[a] dominação da natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica”. Mas a essa visão ele contrapõe outra: “A técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre natureza e humanidade.” Na segunda versão de seu ensaio sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, ele desenvolve uma distinção entre a primeira técnica, cujo fim é o sacrifício da vida, e uma segunda técnica (...) calcada no jogar junto com a natureza: “A origem da segunda técnica deve ser buscada onde o ser humano, com uma astúcia inconsciente, chegou pela primeira vez a tomar uma distância em relação à natureza. Em outras palavras, ela encontra-se no jogo. […] A primeira [técnica] realmente pretende dominar a natureza; a segunda prefere muito antes um jogo conjunto entre natureza e humanidade.” Ele nota ainda: “Justamente porque essa segunda técnica pretende liberar progressivamente o ser humano do trabalho forçado, o indivíduo vê, de outro lado, seu campo de ação (...) aumentar de uma vez para além de todas as proporções...

(Acesse aqui o comentário acima)

O jogo a que se refere Benjamin, nas sociedades divididas em classes, torna-se luta. Luta de classes. Ou como sintetiza com perfeição meu amigo de Facebook, Caio Almendra: “Tecnologia é técnica mais ideologia”.

Só a partir dessa perspectiva, podemos começar a entender o maravilhoso ou catastrófico potencial da tecnologia. A partir do amor e do medo, mas para muito além deles.

https://pilulas-diarias.blogspot.com/2019/03/partidos-digitais-precisamos-falar.html

Partidos digitais, precisamos falar sobre eles


Os partidos digitais são o tema do livro “The Digital Party”, recém-lançado e ainda sem tradução para o português. O autor é Paolo Gerbaudo, diretor do Centro de Cultura Digital no King's College, em Londres. 

Segundo Gerbaudo, os pioneiros foram os Partidos Piratas, surgidos em países do Norte da Europa. Mais recentemente, surgiram formações de esquerda como o “Podemos” espanhol e “França Insubmissa”. Outro exemplo é o “Cinco Estrelas” italiano, cada vez mais inclinado à direita.

Eles prometem uma nova política apoiada pela tecnologia digital. Alegam que seria mais democrática, mais aberta às pessoas comuns, mais imediata e direta, mais autêntica e transparente.

Seriam a solução para o déficit democrático que transformou os partidos tradicionais em instituições dominadas por tecnocratas e políticos que servem apenas a si mesmos.

Pretendem resolver a crise da democracia, a partir da organização que, tradicionalmente, sempre agiu como o principal elo entre os cidadãos e o Estado: o partido político.

No entanto, tal reestruturação organizacional não leva, como alguns de seus defensores gostariam que acreditássemos, a uma difusão radical do poder na organização, nem leva a uma situação na qual "todos têm o mesmo peso",

Pelo contrário, há uma tendência mais ambígua. Uma crescente concentração de poder nas mãos do líder do partido carismático, a quem o autor descreve como "hiperlíder", acompanhado de uns poucos à sua volta.

Uma "democracia reativa" que se manifesta pelo domínio de formas de um "engajamento democrático passivo". Constantemente retroalimentadas por intervenções da liderança, feitas de cima para baixo.

Partidos digitais, vamos falar sobre eles.

https://pilulas-diarias.blogspot.com/2019/03/partidos-digitais-precisamos-falar.html