Os governos de centro-esquerda e os partidos tradicionais da classe trabalhadora estão em crise em todo o mundo. O reformismo esbarrou na realidade e não é capaz de oferecer nada aos trabalhadores e à juventude nestes tempos de austeridade. Daniel Morley examina a crise da socialdemocracia e aponta o caminho para líderes como Corbyn, que lutam para defender as conquistas do passado.
Se observarmos da maneira mais ampla possível a história do capitalismo, é possível detectar épocas políticas e econômicas distintas, tais quais a ascensão no fim do século 19, a profunda crise e desintegração do imperialismo durante as duas guerras mundiais e a Grande Depressão e a nova ascensão após a II Guerra Mundial. Uma tendência que se destaca é a de que os períodos de ascensão costumam ser acompanhados por um fortalecimento do reformismo ou da socialdemocracia e os períodos de retração, pelo enfraquecimento dessas forças políticas e pela polarização. Este não é um processo linear ou mecânico e qualquer generalização deve ser extremamente condicionada e aberta a exceções. De qualquer maneira, este padrão parece ser verdadeiro.
A época atual tem diversas características particulares, mas é bastante claro que nós vivemos em tempos de profundo declínio capitalista – declínio que tem se acelerado fortemente desde 2008, mas que na verdade está presente desde meados dos anos 1970. É neste contexto que devemos entender a atual degeneração, declínio e até mesmo destruição da tradicional socialdemocracia como jamais havia sido vista em diversos países, especialmente os europeus.
A revista The Economist publicou em 2 de abril uma reportagem mostrando que na Europa os socialdemocratas estão com o nível mais baixo de apoio eleitoral dos últimos 70 anos, caindo em média para ⅓ dos percentuais de alguns anos atrás. “Nos cinco estados da União Europeia (UE) que realizaram eleições nacional ano passado, a socialdemocracia perdeu o poder na Dinamarca e teve seus piores resultados da história na Finlândia, na Polônia e na Espanha, passando por um triz de atingir a mesma marca na Grã-Bretanha”. Até mesmo a “naturalmente” socialdemocrata Suécia se metamorfoseou em um país capitalismo comum, com austeridade e privatizações.
Nos países capitalistas desenvolvidos, a trajetória de desenvolvimento do capitalismo parece estar fazendo o caminho contrário há algumas décadas. A única coisa a crescer nestas economias tem sido a desigualdade e todos sabem disso. Não é segredo que os salários da classe trabalhadora americana têm diminuído ou estagnado nos últimos anos ou até mesmo décadas. O patrimônio líquido da classe trabalhadora americana recuou 53% entre 1998 e 2013 (fonte: The Guardian, 19 de maio de 2016). Segundo o Financial Times, “milhões de americanos estão presos a bairros decadentes por causa de seus patrimônios líquidos negativos e outros problemas decorrentes. A expectativa de vida desta população diminui e sua participação no mercado de trabalho tem despencado. A quantidade de pedidos por auxílios em decorrência de invalidez está aumentando. A prescrição de medicamentos analgésicos e antidepressivos é amplamente difundida” (FT, 21 de março de 2016).
Não é de surpreender, portanto, que a revista The Economist em sua edição de 19 de março descobriu que os trabalhadores americanos sentem que “Obama é para as pessoas que não trabalham” (i.e., os super-ricos). “Surpreendentemente, os elogios ao presidente foram em sua maior parte ofuscados pela insatisfação com a situação do país... Questionado sobre sua opinião acerca de Obama, o homem repetiu várias vezes que ele era um bom homem, uma decepção, um ‘ótimo orador’... e alguém que falhou em fazer frente aos super-ricos e sua influência na política”. O artigo diz ainda que “Jeff McCurdy, um funcionário de armazém, falou de colegas lutando para sustentar suas famílias com salários de US$14 (R$46) por hora. ‘Eles não conseguem nem dar a seus filhos a alimentação saudável de que precisam... e eles ainda se admiram de as pessoas estarem com raiva’”.
A conclusão inescapável a qual estes fatos da vida contemporânea levam foi surpreendentemente apontada por este jornal arquicapitalista:
“Os homens no salão do sindicato querem uma nova abordagem ao capitalismo, uma em que os parceiros comerciais estrangeiros sejam obrigados a pagar salários dignos e respeitar normas ambientais globais... eles sentem – intensamente – que a economia está toda empilhada em suas costas e querem mais mudanças no capitalismo que os políticos tradicionais podem realizar. E agora?”
Os leitores fariam bem em ler o artigo de Kevin Williamson para a revista National Review a fim de terem um relato honesto sobre como estes “políticos tradicionais” enxergam tais homens e mulheres insatisfeitos nos salões dos sindicatos (ou “trabalhadores brancos”, como ele os chama). No artigo, Williamson afirma sem rodeios que
“A verdade é que esses grupos problemáticos de baixo nível merecem morrer. Economicamente, eles só representam dívidas. Moralmente, são indefensáveis. Esqueça toda a sua baboseira teatral à la Bruce Springsteen. Esqueça sua hipocrisia sobre cidades industriais do Cinturão da Ferrugem lutando para sobreviver e suas teorias da conspiração sobre orientais trapaceiros roubando nossos empregos. Esqueça seus malditos floreios e, se ele tiver problema com isso, esqueça Ed Burke também. A classe baixa americana é escrava de uma cultura doente e egoísta cujos principais produtos são miséria e seringas de heroína usadas. Os discursos de Donald Trump fazem eles se sentirem bem, assim como remédios tarja preta. O que eles precisam não são analgésicos, literal ou politicamente falando. Eles precisam de oportunidades de verdade, ou seja, mudança de verdade, ou seja, eles precisam de grandes empresas como a U-Haul. Se você quer viver, saia das pequenas cidades industriais como Garbutt”.
A verdade é que estes homens e mulheres sempre viram a classe trabalhadora dessa maneira; o que muda é que agora é que a massa da classe trabalhadora em todo o mundo tem consciência disso. Mais especificamente, eles têm consciência de que “seus” líderes socialdemocratas agora compartilham com entusiasmo este ódio da classe dominante pelos trabalhadores. No mínimo, os tipos como Angela Eagle, François Hollande e Sigmar Gabriel parecem mais desdenhosos dos eleitores da classe trabalhadora do que os conservadores.
A situação é a mesma na Grã-Bretanha e na Europa. Em todo o Reino Unido é possível encontrar avenidas em ruínas e as únicas lojas novas são de 99 centavos. Desde 2008, apenas 1 a cada 40 empregos criados foram de tempo integral. O emprego foi esvaziado e substituído por trabalhos de “zero-hora”. A Grã-Bretanha teve mais desindustrialização que qualquer outra nação rica, apesar de os cinturões da ferrugem e os escombros do capitalismo em decadência serem comuns em todas as sociedades capitalistas desenvolvidas. O inquérito corrente sobre a Sports Direct revelou que essa empresa de grande porte não paga sequer o salário mínimo exigido por lei, recusa aos funcionários pausas para ir ao banheiro e já viu acontecerem diversos partos em seus armazéns porque não permite folgas por doença ou maternidade. A Sports Direct representa o ataque generalizado à classe trabalhadora em todo o país e é necessário um julgamento de todos os capitalistas da Grã-Bretanha, que não são diferentes em nada do dono da Sports Direct, Mike Ashley. Da mesma forma, a falência da rede de lojas de departamento BHS ao mesmo tempo em que seus patrões enchiam os bolsos de dinheiro é um epitáfio perfeito para a classe capitalista britânica como um todo.
Crise da democracia burguesa
Na verdade, o que nós testemunhamos é o início de uma profunda crise da democracia burguesa como um todo. O tão falado sentimento antissistema está corroendo a direita tradicional da mesma maneira que corrói os socialdemocratas. Este fenômeno é tão difundido que se estende até mesmo a países de independência recente, como Índia e Filipinas, que acabou de eleger seu próprio Donald Trump. Onde é possível encontrar no mundo um partido burguês tradicional ou socialdemocrata que tenha confiança e popularidade? Até recentemente alguém poderia dizer na Alemanha, mas o CDU está perdendo credibilidade rapidamente diante do reacionário AfD à direita e o SPD está em crise há mais de uma década.
Pesquisas de opinião em todos os países capitalistas avançados têm mostrado consistentemente uma profunda (e sem precedentes) falta de confiança e até mesmo desprezo completo por políticos e pela mídia. Nos EUA, o Congresso tem uma taxa de aprovação que varia entre 15% e 18%, a menor da história. O nível de desdém é o mesmo entre eleitores democratas e republicanos. O gráfico abaixo mostra essa queda abrupta de apoio nos últimos anos:
O percentual de europeus que desaprovam todo o sistema democrático em seu país subiu significativamente, atingindo 45%.
Estes sentimentos viscerais “antissistema” estão amplamente difundidos na Grã-Bretanha e representam uma completa perda de fé na democracia burguesa. Citando um estudo detalhado realizado por Will Jennings, professor de Ciência Política na Universidade Southampton, o Financial Times afirma o seguinte:
O professor tem estudado a atitude dos britânicos em relação ao sistema político desde os anos 1940. Sua conclusão: a confiança tem se desgastado consistentemente ao longo das décadas, mas agora está num nível alarmantemente baixo.
O arquivo do Observatório de Massas do Reino Unido, que coleta diários e correspondências pessoais, mostra que as pessoas hoje em dia escrevem sobre médicos, clérigos e advogados de forma mais ou menos igual elas faziam em 1945. O mesmo não se pode dizer dos políticos, como aponta um trabalho recente co-escrito pelo Professor Jennings: “Os cidadãos hoje descrevem seu ‘ódio’ pelos políticos que fizeram eles ficarem ‘com raiva, ‘irados’, ‘injuriados’, ‘enojados’ e ‘nauseados’”.
O artigo continua dizendo que entre as palavras usadas para descrever políticos estão “arrogante”, “grosseiro”, “nojento”, “corrupto”, “desonesto”, “detestável”, “mentiroso”, “parasita”, “fanfarrão”, “vergonhoso”, “imoral”, “traiçoeiro”, “mal caráter”, “traidor”, “fraco” e “sujo”. De acordo com o Prof. Jennings, “qualquer que seja o padrão que você utilize, a falta de confiança política está crescendo – é possível perceber um mal-estar generalizado” (Fonte: Financial Times, 15.06.16).
Essa situação pode ser vista de maneira escancarada no gráfico abaixo:
Há uma sensação amplamente difundida de que “o sistema está emparelhado”, que o “sistema” por inteiro precisa de uma mudança em nível fundamental, pois sua estrutura está errada ou defeituosa a um ponto que não pode mais ser reparado. A premissa básica de nossa tão falada democracia é a de que o povo é soberano, sendo esse o paradigma de nosso sistema educacional e da maioria dos debates públicos. No entanto, a verdade é que o sistema democrático está subordinado ao sistema econômico capitalista. Não há qualquer “soberania nacional” de verdade sob o capitalismo, na verdade são sempre os homens de negócios que exercem o domínio. Nos tempos de hoje, com a dominação maciça do mercado internacional, a ilusão de uma soberania nacional se enfraqueceu bastante. No entanto, é bastante claro que a atual crise do capitalismo é a principal responsável pelo duro golpe que essa ilusão tem sofrido.
A crise econômica e financeira sem precedentes alterou a política em todo o mundo à contragosto de todos os atores políticos, tanto conservadores quanto socialdemocratas. Todos os políticos agora devem se curvar diante do altar do equilíbrio orçamentário e da austeridade sem fim. Muito antes da crise financeira, os socialdemocratas haviam abandonado a pretensão de defender qualquer coisa diferente dos conservadores. No entanto, ela expôs sem piedade o completo vazio deles, sua incapacidade de lutar por qualquer coisa. Isso pôde ser visto de maneira mais explícita na Grécia, primeiro com o PASOK e depois de maneira ainda mais dramática com o Syriza. Mas a incapacidade da democracia de controlar o mercado também se mostrou com Hollande na França e o PSUV na Venezuela. Eleitores em toda parte sabem que se elegerem um governo reformista de esquerda, ele vai imediatamente enfrentar uma fuga de capitais e uma crise econômica e sua capitulação ao “mercado” será rápida e vergonhosa.
A crise mostrou precisamente que o sistema está aparelhado e que a democracia burguesa é uma farsa. Essa descoberta tem efeitos mais graves sobre a socialdemocracia, uma vez que são os partidos dessa linha que têm sobre si a obrigação de “provar” que através da “democracia” é possível domar o capitalismo. É a socialdemocracia que é mais fortemente revestida da ilusão da soberania popular. Estas palavras de Trotsky acerca do dilema da socialdemocracia durante a Grande Depressão são extremamente relevantes hoje em dia:
“A crise não fortaleceu o partido do “socialismo”, ao contrário, o enfraqueceu da mesma maneira que fez recuar a circulação comercial, os recursos bancários... Hoje é obrigatório olhar não nos jornais da mídia burguesa, mas na imprensa socialdemocrata as avaliações de conjuntura mais otimistas... Se a atrofia do capitalismo produz a atrofia da socialdemocracia, então a iminente morte do capitalismo denota a morte precoce da socialdemocracia. O partido que se baseia nos trabalhadores, mas serve à burguesia, no período de aguda intensificação da luta de classes, não pode senão inalar o odor que exala sua cova já aberta”.
Uma crise gestada por décadas
A verdade é que a socialdemocracia é profundamente dependente da saúde do capitalismo. Ela se aproveita das épocas de bonança, executando reformas quando as condições econômicas são favoráveis, mas se veem confusos e catatônicos a cada crise periódica do capitalismo. Incapazes de desaviar de maneira efetiva a classe dominante, tentando persuadi-la ao invés disso, a socialdemocracia nunca está pronta para seus ataques. O reformismo vai sempre fracassar em prever as inevitáveis consequências de suas tentativas de regulação do mercado, tais quais inflação e fuga de capitais, justamente porque está baseada na ilusão de que políticas inteligentes são capazes de eliminar a injustiça e a anarquia do sistema. Seus planos, portanto, sempre se chocam com as pedras da realidade.
Foram fracassos desse tipo nos anos 1970 que levaram ao ataque pioneiro do qual a socialdemocracia jamais se recuperou completamente. O governo Wilson-Callaghan de 1974-1979 foi eleito a partir de uma plataforma radical, comprometido com nacionalizações em grande escala. No entanto, o boom econômico do pós-guerra havia se esgotado completamente àquela época. Os choques do petróleo e a crise de Bretton Eoods alterou o rumo do pensamento capitalista para o monetarismo e o “neoliberalismo”, distanciando-se do Keynesianismo. Isso pegou a liderança do Partido Trabalhista no contrapé, uma vez que eles nem anteciparam nem conseguiram compreender o significado dessa mudança a longo prazo. Seu governo foi corroído por inflação galopante, fuga de capitais, quebra da libra esterlina e um resgate humilhante por parte do FMI.
Assim como o Syriza, o governo trabalhista fez um giro de 180º e engoliu a agenda de austeridade do FMI, abandonando todo o programa de esquerda para o qual foi eleito. Exemplo semelhante é a mudança em prol da austeridade que François Mitterand realizou dois anos após ter sido eleito sobre as bases de um programa de esquerda em 1981. O mesmo aconteceu na época da traição vergonhosa de Ramsay MacDonald durante a crise dos anos 1930, quando abandonou seu programa e seu partido para formar um governo de austeridade com os conservadores e os liberais.
É importante enfatizar o quão despreparados os líderes reformista estavam para estas situações, uma vez que esta falta de visão é característica do reformismo, que acredita em vão que o capitalismo pode ser domado ou racionalizado. É igualmente importante enfatizar o afastamento decisivo da classe dominante das ideias keynesianas, que eram complementares à socialdemocracia. É importante enfatizar esses dois pontos porque mostram a importância decisiva que os movimentos anárquicos e não planejados do mercado têm na mudança e na limitação do processo político dentro da sociedade capitalista. É exatamente essa característica que o reformismo não consegue compreender e aceitar.
Na verdade, a socialdemocracia, ao menos na Grã-Bretanha, está ausente do front político desde então. Ela jamais recuperou suas posições, uma vez que elas estavam baseadas na crença (hoje completamente destruída) de que os capitalistas e seu sistema eram capazes de conviver permanentemente com alta carga tributária, financiamento do déficit e um amplo estado de bem-estar social. Todos estamos acostumados com o caráter estranhamento vago, impreciso e banal dos discursos e promessas de líderes reformistas ultimamente. Em uma recente entrevista, Angela Eagle foi incapaz de dizer quais eram as bases políticas de sua oposição à liderança de Jeremy Corbyn. Ela simplesmente não tinha o que dizer, nenhum único conteúdo político. A razão disso é o fato de que ela e os da sua laia tiveram suas opiniões destruídas pela crise do sistema capitalista. Na verdade, nós sabemos qual é o seu conteúdo político, seu histórico de votações no parlamento mostra que ela é uma apoiadora da austeridade e da guerra. No entanto, ela não pode falar isso abertamente, então não diz nada.
Os socialdemocratas poderiam ter tirado uma lição dessa experiência: é impossível criar um caminho gradual rumo ao socialismo através de reformas. Eles poderiam, diante dos ataques do capital, ter mobilizado a classe trabalhadora para a luta, chamar os trabalhadores a apoiar a expropriação dos capitalistas que estão destruindo a economia etc. Mas fazer isso significaria desafiar o capitalismo de maneira revolucionária. Ao invés disso, eles ficaram em estado de choque e simplesmente cederam às exigências da austeridade. Essa imagem não construtiva tirou os trabalhistas do poder em 1979 e o resto a história está aí para contar.
Podres de tão maduras
Em 1938, o Programa de Transição escrito por Trotsky apontou que as condições para a superação do capitalismo se tornaram podres de tão maduras. Se o declínio capitalista não se traduz em revolução socialista, a sociedade burguesa apodrece. No lugar do socialismo, nós temos o fascismo.
Os pós-modernistas gostam de falar sobre o fim das “grandes narrativas históricas”, especialmente da superação do capitalismo pelo socialismo. Eles declararam o fim do progresso e da racionalidade e se retraíram para o campo das experiências subjetivas e da interpretação. Essa é uma filosofia cínica e que não aponta a lugar nenhum, completamente inútil para qualquer coisa que não seja a justificação da manutenção do capitalismo e, claro, de sofismas intelectuais. Mas todas as filosofias influentes o são por uma razão; elas devem refletir alguma coisa que seja verdadeira.
O que o pós-modernismo reflete (mesmo que acriticamente) é exatamente esse estado podre de tão maduro da revolução socialista. O “fim das grandes narrativas” é na verdade a incapacidade da liderança proletária na época da revolução social.
Quando alguém olha para a vastidão desindustrializada da Europa e da América do Norte, para a alienação políticas das massas, para o cinismo e o esvaziamento da política tradicional, fica claro que o capitalismo atingiu uma espécie de caminho sem volta e começou a encolher. Na verdade, ele temporariamente foi além dos seus limites construindo grandes estados de bem-estar social e agora precisa devorar essas intromissões da classe trabalhadora.
Pega de surpresa pela crise dos anos 1970 e despreparados para os ataques da burguesia, os reformistas, comprometidos com a gestão do capitalismo, não tiveram outra escolha que não aceitar a supremacia do mercado. Os tatcheristas realizaram um meticuloso trabalho de ataque ao “socialismo” e a derrota da esquerda foi humilhante. Na Grã-Bretanha, uma vez que os mineiros foram derrotados, foi dado o golpe de misericórdia contra um movimento operário indefeso. A classe trabalhadora se retirou maciçamente da atividade política e os carreiristas no topo da socialdemocracia ficaram livres para executar sua capitulação incondicional ao “neoliberalismo”.
Hoje, a combinação entre o esvaziamento desses partidos e a atual crise severa do capitalismo produz a mudez vazia das políticas desses partidos. Esse vácuo surreal atingiu seu ponto máximo sob Ed Miliband, que por um lado sentiu a necessidade de posicionar o Partido Trabalhista à esquerda dos conservadores e tentou capitalizar politicamente criticando a austeridade, mas por outro aceitou inteiramente a necessidade da austeridade e no Partido Trabalhista ser visto como “economicamente responsável”. Ele foi visto (com razão) como fraco, confuso, sem princípios e a anos-luz de distância da raiva latente vivida pela classe trabalhadora.
Antes da última eleição para a liderança do Partido Trabalhista, o partido inteiro parecia estar vagando sonâmbulo em direção à morte. Havia uma constante e vã busca por uma fórmula mágica para o sucesso, mas sem qualquer ingrediente real para compor esta fórmula. Um ou outro parlamentar aparecia e falava de maneira incrivelmente vaga sobre a necessidade de encontrar uma misteriosa nova estratégia, pois eles aceitavam o fato de que era seu trabalho gerenciar o sistema capitalista em profunda crise. Esse debate era bastante barulhento, apesar de estranhamente vazio – confirmando novamente o ditado de que um vaso oco é o que faz mais barulho.
A esquerda precisa jogar a precaução na lata do lixo
A perspectiva burguesa para a socialdemocracia neste cenário político pulverizado é que ela se reduza a uma espécie de partido de nicho dentro da colcha de retalhos dos interesses políticos. Para eles, ser da classe trabalhadora é apenas uma identidade superficial, portanto os partidos socialdemocratas podem manter sua força política em regiões que possuam uma identidade explícita ligada à classe trabalhadora, como Newcastle na Inglaterra e Ruhrgebiet na Alemanha. Mesmo assim, tal lealdade poderá e será extirpada se o partido falhar em expressar os reais interesses dos trabalhadores, como mostram as posições do Partido Trabalhista na Escócia. Esse, talvez, seja o futuro da socialdemocracia se ela falhar em romper com a inércia e lutar pelos interesses (e não apenas a simples identidade cultural) da classe trabalhadora.
Há uma raiva latente na classe trabalhadora de toda a Europa e América do Norte, um sentimento de traição e extrema alienação política. Não se trata apenas de raiva pela injustiça econômica, é também uma frustração pelo sentimento de total ausência de controle sobre a política. Muitos têm notado como o apoio a Trump costuma aumentar sempre que ele faz algo que a mídia entende como uma “gafe”. Muitos provavelmente não concordam ou não consideram particularmente coerentes suas frases grosseiras, racistas e sexistas. No entanto, não está sendo percebido que as pessoas não apoiam ele pela sua coerência ou frases de feito, eles o apoiam por rasgar o chamado “livro de regras sociais”. Eles se regozijam em ver alguém que parece refletir o sentimento de que “essa política, essas regras e esses valores não significam nada para nós!”. Eles gostam do fato de Trump não se importar com os maneirismos artificiais da política tradicional, pois percebem (corretamente) que esses maneirismos só ajudam a enfeitar a ilusão.
Parte da popularidade de Trump se deve ao fato dele ter jogado a precaução na lata do lixo. Mas a esquerda parece ainda estar se desculpando com a classe dominante, com medo de sua própria sombra. Antes da atual crise e da eleição para líder do Partido Trabalhista, até mesmo Corbyn e McDonnel pareciam excessivamente cuidadosos, com medo de liberar a fúria até então contida de seus apoiadores. McDonnell fazia questão de enfatizar a sua “responsabilidade” econômica e “disciplina orçamentária ferrenha”. Em muitos países, a socialdemocracia ainda parece assustada com suas derrotas, acreditando na propaganda da direita. Ela ainda tem medo de se libertar de seus grilhões porque sabe que precisará administrar um sistema capitalista decrépito e não pode criar expectativas altas demais. No entanto, isso é fatal, pois ela só poderá ressuscitar se refletir a raiva e a determinação das massas em movimento. Dessa forma, a crise da socialdemocracia reflete a crise do sistema capitalista.
A verdade é que a sociedade se voltou para a esquerda desde 2008. Há uma radicalização e um desejo de expressar a raiva que se formou a partir das injustiças das últimas três décadas, de se acertar as contas com o “sistema”. Consequência disso foi o número de votos sem precedente a favor do Brexit, que acelerou de maneira dramática todos esses processos. A raiva está começando a encontrar uma forma de expressão: fora da socialdemocracia tradicional em alguns países (por exemplo, Espanha e Grécia) e na Grã-Bretanha através de uma mudança sem precedentes no Partido Trabalhista.
A imensa lacuna entre a raiva e os interesses negligenciados da classe trabalhadora e a situação política finalmente começou a se estreitar. Por anos nós ouvimos dos pós-modernistas que partidos políticos de massa eram coisa do passado, que todos agora são interessados somente em temas individuais e são essencialmente indivíduos de classe média. No entanto, os acontecimentos mudaram tudo. O Partido Trabalhista agora é o maior da Europa, com quase 60 mil membros. Todas as perspectivas e teorias sobre sociedade e política que eram dominantes até agora estão sendo postas à prova. Uma gigantesca luta de classes está se abrindo no Partido Trabalhista. Na verdade, o abismo entre a classe trabalhadora e os membros do partido de um lado e os parlamentares do outro está maior do que nunca. Mas agora essa raiva e essa consciência de classe não são mais passivas, elas têm um canal e estão crescendo em confiança e ousadia a cada embate nessa luta. O gênio saiu da lâmpada e nada pode colocá-lo de volta.
Nós estamos testemunhando no Partido Trabalhista o doloroso renascimento do movimento socialista e da política de classe. A socialdemocracia e a colaboração de classes estão em seus estertores de morte. Corbyn e seu movimento não são o fim do processo, mas apenas o início catártico. Ele próprio se mantém reformista, mas se pode duvidar: nós estamos vivendo a morte da socialdemocracia como nós a conhecemos.
A radicalização política que nós estamos testemunhando é um processo confuso. É quase como se o movimento estivesse começando tudo de novo. Nós veremos uma onda de radicalização após a outra se manifestando em um país após o outro. Em alguns deles a socialdemocracia existente será abalada e transformada, como estamos vendo acontecer no Partido Trabalhista britânico. Em outros, novas formulações surgirão, como no caso do Podemos da Espanha.
Em ambos os casos o fenômeno será bastante instável e provavelmente terá vida curta, pois até que rompam com o capitalismo eles sempre serão subjugados pela crise capitalista e forçados a abandonar seu programa de esquerda, como no caso do Syriza. Existe e continuará existindo uma miscelânea de partidos de esquerda (e de direita) ao redor do mundo. Em meio aos chiados e à confusão do processo, uma nota se destaca claramente: “o povo demanda a queda do regime!”.
O regime, que é o capitalismo, se exauriu e o reformismo não tem qualquer espaço para realizar suas reformas. Fundamentalmente, é esse o motivo da crise na socialdemocracia. Ela só poderá se livrar do odor pútrido da traição se “jogar a precaução na lata do lixo”. Ela precisa abandonar as tentativas de gerenciar o capitalismo (uma missão fadada ao fracasso) e abraçar de maneira corajosa a luta por uma alternativa socialista ao capitalismo. Discurso combativo e alternativas claras são o que a classe trabalhadora precisa e almeja.
Artigo publicado originalmente em 14 de setembro de 2016, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título "The crisis of social democracy".
Tradução Felipe Libório.