A INJUSTIÇA SISTÊMICA COMO
CAUSA DA CISÃO SOCIAL.
"É muito difícil você vencer a injustiça secular que dilacera o
Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e
o país dos despossuídos." (Ariano Suassuna, dramaturgo)
.
Há dois mundos em curso na vida social brasileira, embora exista um só mundo oficial, com regras estabelecidas para todos. Tratam-se os desiguais com regras iguais, e esta é a fonte legitimadora da opressão de uma lógica reificada de relação social.
Há um mundo com pessoas com poder de compra e vida confortável apesar dos conflitos de convivência próprios das relações interpessoais. Este mundo dos beneficiários sistêmicos é povoado por rentistas do capital, cuja função é tentar preservar e multiplicar o seu patrimônio, mas também por gente com nível de informação elevado e que ganha seu salário acima da média nacional, dignamente, mas nem sempre com sensibilidade social.
Nesse mundo chamado de alta e média classe média (5% e 15% da população, respectivamente) se inserem os que raciocinam de forma sistêmica e que querem que o defunto caiba no caixão, independentemente do tamanho de um e de outro.
Muitos deles, conhecendo as leis, trafegam no limite entre a legalidade e a burla da legalidade em seu benefício, ou na legalidade opressora sistêmica sem que dela divirjam frontalmente, alguns com acesso à alta corrupção e manipulações contratuais em seu benefício ou sonegando e embolsando impostos extraídos do povo, etc., etc., etc. Estes ainda contam com advogados tributaristas que os defendem como o indefectível Ives Gandra.
Muitos dos privilegiados por suas capacidades profissionais, embora exercendo funções sociais importantes, ficam acomodados diante da cisão social, como se os problemas não lhes dissessem respeito. Dizia Fidel Castro que “as pessoas mais cruéis do mundo são as indiferentes à injustiça social, à descriminação, à desigualdade e à exploração”, querendo dimensionar a omissão como forma de manutenção da opressão.
Mas há um mundo extraoficial, de pessoas que vivem sob as regras próprias de sobrevivência e que se constitui em 80% da população. Um mundo no qual apenas se sobrevive.
Nesse mundo há uma alta percentagem de pessoas que são obrigadas a viver nas precárias moradias de bairros mal assistidos, ou, o que é pior, a construírem moradias toscas, de madeira e papelão e fora de todas as regras do plano urbanístico da cidade, bem como das regras de arruamento e normas de edificação. Para o Estado, tais pessoas não passam de párias cujas demandas sociais são impossíveis de serem atendidas.
Há um mundo dos que não podem pagar um plano privado de saúde e são obrigados ao atendimento precário do SUS, num faz-de-conta que termina causando mortes por absoluta falta de assistência médica.
Há um mundo de desempregados desesperados com crianças para alimentar, além de outros consumos indispensáveis à vida digna, sem condições de satisfação dessas necessidades.
Há um mundo dos que vivem atormentados pelos baixos salários e, pior, com a perspectiva de perder o emprego miserável à medida que envelhecem e são rejeitados pelo mercado de trabalho, agora com justificado receio de que suas aposentadorias saiam apenas pós-morte.
Há um mundo dos que são empurrados para o crescente comércio das drogas e que se tornam escravos do crime organizado sem colarinho branco, este último gestado dentro da exclusão social própria a uma sociedade cindida entre os que estão incluídos no processo de produção de modo confortável e os que estão excluídos do processo de produção.
Há uma geração nem-nem, que nem estuda e nem trabalha, composta por analfabetos ou analfabetos funcionais absolutamente inadaptados a uma sociedade tecnológica que somente paga salários relativamente bons aos poucos que são altamente qualificados.
Esse mundo cindido tem sua origem numa sociedade fundada numa corrupção original que é a mãe de todas as outras: a extração de mais-valia.
Como se admitir como correta, ética, moralmente superior e insusceptível de corrupção uma relação social que se estabelece a partir da apropriação pelo capital da riqueza produzida coletivamente e na qual a maior parte dos que a produzem não têm acesso ao que produziram?
Como um magistrado, escravo do cumprimento e aplicação da lei, pode ser respeitado nos seus julgamentos, ainda que probo (aí excluídos aqueles que praticam atos de corrupção e se tornam os mais perigosos bandidos da sociedade) se a própria lei é injusta e proporciona a coerção estatal da injustiça?
Como se admitir como justa uma sentença que decreta o despejo de um desempregado diante do senhorio que detém centenas de imóveis alugados, simplesmente porque é a lei que lhe assegura constitucionalmente tal direito, corroborado por leis ordinárias legiferadas pelo parlamento que temos e que disciplinam tal procedimento como expressão da cláusula pétrea do direito à propriedade?
Estabelece-se agora uma corrida de concorrência da corrupção que tomou conta da sociedade em todos os níveis.
Os criminosos de colarinho branco rivalizam com os bandidos descamisados e levam vantagens nos números que compõem o fruto da corrupção. Os primeiros falam em milhões e até bilhões, os segundos são meros pés-de-chinelos ou submissos soldados do crime organizado.
Mas quem é mais criminoso: o delinquente que rouba um cordão de metal barato em plena luz do dia e é preso (sem que queiramos inocentá-lo ou estimular tal prática) ou o engravatado diretor de um sistema penitenciário que superfatura a compra de milhares de tornozeleiras eletrônicas e com sua delinquência inviabiliza ainda mais o já depauperado volume de recursos de um sistema prisional estatal que tem custo orçado em alguns bilhões de reais, cobertos pelos combalidos cofres públicos?
Mas agora o mundo dos excluídos, de tão volumoso e sem alternativas, volta-se contra a oficialidade do mundo dos incluídos, estabelecendo-se o impasse sob as formas mais variadas. O índice de violência urbana é fruto da desobediência civil desordenada crescente, expressão da barbárie promovida por um sistema falido que considera como tema tabu qualquer alternativa social que não esteja enquadrada na lógica de reprodução do capital.
Os incluídos têm a força da coerção sistêmica, mas não têm a força de conter a barbárie que termina por atingi-los, de uma forma ou de outra.
A saída do impasse não é o aeroporto, mas a adoção de postulados alternativos que nem de longe passam pela lógica do sistema produtor de mercadorias.
(por Dalton Rosado)
https://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2017/01/dalton-rosado-escancara-o-apartheid.html