por Leonardo José Ostronoff e Felipe Ramos Garcia
Por que recorrer aos militares, soldados treinados para guerra contra um inimigo externo, para lidar com seus próprios cidadãos dentro do estado de direito? A segurança pública seria um assunto da Defesa?
A segurança pública no Brasil ganhou uma expressão maior no debate público nos últimos anos, tornando-se um dos temas cruciais para nossa sociedade. Hoje é impossível ignorar tal tema, seja nos programas de governo, salas de aula, ou mesmo nas “conversas de bar”. Muitas vezes pautada pela direita, as políticas públicas de segurança são fundamentais para consolidação da democracia; por exemplo, é impossível pensar nossa sociedade contemporânea sem a existência da polícia, portanto, o tema é uma necessidade para os debates do campo da esquerda democrática. Uma ressalva fundamental, no presente artigo: a partir de agora, utilizaremos o termo “políticas públicas de segurança” em vez de “segurança pública”, pois o mesmo deve ser compreendido enquanto uma política pública integrada em outros temas como educação, assistência social, saúde, direitos humanos etc. Não se pode fazer política pública na área de segurança apartadas desses temas. A diminuição da violência somente tem eficácia dentro dessa prática de fazer e pensar de forma integrada as políticas.
Nesse sentido, é fundamental discutirmos a participação das Forças Armadas na política de segurança pública em nosso país, mais precisamente a utilização do mecanismo institucional da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Apesar da regulação formal do mecanismo de intervenção militar por meio da GLO ter ocorrido apenas em 2001 – após a criação do Ministério da Defesa, em 1999 –, a atuação das Forças Armadas já fazia parte do repertório do Estado para administrar questões como greves de policiais, violência urbana e segurança de grande evento. As Forças Armadas têm sido empregadas desde, pelo menos, o início dos anos 1990, tendo como marco a Eco 92. Diversas GLOs foram realizadas nas últimas três décadas, destacando-se a Operação Arcanjo nos complexos do Alemão e Penha, bem como, a Intervenção Militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro (Ostronoff, 2021). Luís Eduardo Soares (2000), ao relatar seus “quinhentos dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro”, mostra a representatividade que os militares possuem no quadro interno dessa pasta institucional naquele estado. Segundo ele, ainda na Constituição de 1988, o Exército preservou um poder estratégico quando foi outorgado que as polícias militares devem responder a ele em última instância. A utilização das GLOs reforça esse poder, consolidando as políticas públicas de segurança não somente como caso de polícia, mas como assunto militar, por excelência. Essa associação tornou-se um senso comum que deve ser criticado com ênfase.
Ostronoff (2021) demonstra que até mesmo oficiais de alta patente do Exército brasileiro questionam a eficácia das GLOs, justamente porque as Forças Armadas são treinadas para combater o inimigo, não para lidar com cidadãos, função das forças de segurança pública, por sua vez. O mesmo autor, traz ainda relatos de oficiais que afirmam a incapacidade de se resolver o problema da violência urbana somente com a utilização da força, sendo necessário ações em educação, assistência social, saúde, moradia, ou seja, melhorar as condições de vida da população ofertando mais oportunidades e igualdade de condições sociais. Essa perspectiva pode parecer estranha se considerarmos o pensamento do grupo de oficiais que atualmente compõe o governo. Esse é um ponto importante, pois vai na contramão de todo pensamento bolsonarista, que tem como um dos pilares dessa “expressão política” justamente a ideia de um militarismo como o da ditadura militar de 1964, que preserva a ordem através das armas e da prática institucional de tortura, justificando combater um suposto inimigo interno: o comunismo em 1964 – ou os petistas hoje.
O cientista político Paulo Ribeiro da Cunha (2020), que pesquisa militares há mais de duas décadas, defende pensá-los não de forma homogênea ou como um bloco monolítico, mas como uma instituição que possui diferentes grupos e correntes internas que buscam assegurar seus interesses e suas pautas enquanto corporação. Evidentemente que existe uma série de similaridades envolvendo o grupo, principalmente no que diz respeito ao “ser militar” e ao “ser civil”, uma visão de mundo corporificada no “espírito militar”, como brilhantemente expõe o antropólogo Celso Castro (1990). Aliás essa é uma tese partilhada por vários pesquisadores e pesquisadoras que mais recentemente têm ganhado destaque no debate público. Neste artigo partilhamos dessa concepção, afinal, nas Ciências Sociais aprendemos que nada é lá muito homogêneo na sociedade, não sendo diferente com as instituições militares. Pensando com Foucault, diante das relações de poder, compreendemos a existência de diferentes sujeitos e posições que estão em disputa continuamente no interior das Forças Armadas. É um equívoco tratar militares como um todo uníssono, é preciso perceber as brechas e diferentes matizes que apresentam, isto é uma contribuição fundamental do pensamento sociológico para esse tema. Também, em termos políticos, não se pode ignorar que o Ministério da Defesa esteve sob treze anos de governo do PT, o que certamente teve uma influência nas Forças Armadas, principalmente se pensarmos nos investimentos federais feitos nesse período no campo militar. Aqui cabe uma crítica aos governos tanto de esquerda, como os de direita ou centro, que, apesar de corroborarem com o controle civil dos militares por meio da criação do Ministério da Defesa e a manutenção de civis como ministros, nunca ousaram repensar os currículos das escolas de formação de oficiais, mantendo a antiga noção presente na corporação de que as Forças Armadas, mas principalmente o Exército, seriam bastiões da democracia e do estado de direito – noção que tem sido replicada por alguns oficiais da ativa e da reserva e propagada por políticos e simpatizantes bolsonaristas. Esse nó ainda não desatinado contribui para reforçar a associação de senso comum dos militares com a manutenção e garantia da ordem em operações de segurança pública.
Neste ponto, abre-se um questionamento interessante em termos institucionais: onde está alocada a secretaria nacional de segurança pública? Está no Ministério da Justiça, não no da Defesa. Portanto, em termos institucionais, o Estado brasileiro associa segurança pública a uma área civil e não militarizada. É possível então entender as GLOs como um reconhecimento, por parte federal, da incapacidade de certos estados, em determinados momentos, darem conta da segurança pública? No caso da intervenção militar no Rio de Janeiro em 2018, pode-se afirmar isso. Segundo Ostronoff (2021), tal ação militar não visou combater o crime organizado como GLOs anteriores, mas reorganizar institucionalmente a área de segurança pública daquele estado em termos financeiros e estruturais, em crise devido aos problemas de corrupção do governo Sergio Cabral. A intervenção tornou possível repassar altos montantes de verbas federais para o estado do Rio de Janeiro, o que pelo menos pagou salários do funcionalismo da área de segurança, que estavam atrasados na época. De fato, tal situação abria um precedente perigoso, tornando as forças de segurança do estado quase inoperantes, o que seria uma verdadeira crise institucional (Ostronoff, 2021). Mas por que recorrer aos militares, soldados treinados para guerra contra um inimigo externo, para lidar com seus próprios cidadãos dentro do estado de direito? Então a segurança pública é um assunto da Defesa? Discordamos veementemente dessa posição e afirmamos a necessidade da participação civil nos assuntos de segurança pública e defesa.
Entretanto, cabe ressaltar aqui que, apesar das críticas à participação dos militares das Forças Armadas em operações de segurança pública por meio do mecanismo da GLO, essas atuações ocorrem sempre a pedido do chefe de Estado. A Presidência da República tem a prerrogativa de acionar os militares para atuar nessas operações, seja por iniciativa própria, seja por pedido de governadores. Nesse sentido, é importante reforçar que essa relação simbiótica dos militares com a segurança pública não é apenas de responsabilidade dos oficiais. Embora existam alguns casos em que eles capitalizam politicamente sua atuação em operações via GLO,[1] de modo geral a atuação ocorre por conta de uma dificuldade crônica do Estado brasileiro em gerir a segurança pública, que está relacionada com outros problemas que fazem parte da gênese da formação do Brasil: racismo, desigualdade e autoritarismo.
Como proposta para segurança pública, trazemos a participação da sociedade civil através de conselhos e fóruns institucionais como fundamental. Um exemplo é o conselho nacional de juventude no governo Dilma Rousseff, que mostrou como tais espaços institucionais são eficazes, podendo ser referência para o campo das políticas públicas de segurança. Não podemos nos acomodar ao senso comum de que esse tema é caso exclusivo de polícia, muito menos de militares. Certamente que eles terão participação, mas é preciso ampliar o debate para além dos muros das bases e quartéis. A consolidação da democracia brasileira passa por uma outra concepção da segurança pública, ou seja, desmilitarizada, participativa e embasada pelos direitos humanos. Do contrário, continuaremos assistindo espetáculos militares através das GLOs, mas sem efetividade na transformação da situação social.
Leonardo José Ostronoff é sociólogo. Doutor em sociologia pela USP, possui pós-doutorado pela mesma universidade. Autor do livro Não existe almoço grátis (2021).
Felipe Ramos Garcia é sociólogo e doutorando em sociologia pela USP.
Referências
Castro, Celso. O Espírito Militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
Cunha, Paulo Ribeiro. Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
Ostronoff, Leonardo José. Não existe almoço grátis – 1.ed. – Curitiba: Brazil Publishing, 2021. 268p.: il.; 21 cm. ISBN 978-65-5861-599-6.
Soares, Luís Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública no Rio de Janeiro- São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ISBN 85-359-0079-9.
[1] É o caso do general Braga Netto, que atuou na intervenção do Rio de Janeiro, foi ministro-chefe da Casa Civil e atualmente é ministro da Defesa.
https://diplomatique.org.br/os-militares-e-a-seguranca-publica-no-brasil/