sábado, 5 de setembro de 2020

AFINAL, O 'ZERO UM' É CÍNICO OU TOLO?

 

josias de souza
CENSURA DEIXA FLÁVIO BOLSONARO INTEIRAMENTE NU
A situação criminal de Flávio Bolsonaro mudou de patamar. Até aqui, o primogênito do presidente da República vivia um processo de desnudamento progressivo, em camadas. De repente, o filho do soberano ficou —horror, frisson!— com as vergonhas totalmente expostas. 

Flávio atingiu o estágio da nudez absoluta ao obter na Justiça a censura à TV Globo. A pedido dos seus advogados, a juíza Cristina Serra Feijó, do Rio de Janeiro, proibiu a emissora de veicular notícias sobre o inquérito sigiloso que tornou o Zero Um impróprio para menores de 99 anos. 

"Acabo de ganhar liminar impedindo a #globolixo de publicar qualquer documento do meu procedimento sigiloso", celebrou Flávio nas redes sociais. Alguém que chama de "meu procedimento" uma investigação em que é acusado de peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa ou é um cínico ou é um tolo.

"Não tenho nada a esconder e expliquei tudo nos autos", escreveu Flávio, como que decidido a esclarecer que o seu caso é mesmo de cinismo. "As narrativas que parte da imprensa inventa para desgastar minha imagem e a do presidente Jair Bolsonaro são criminosas." 

O filho do presidente demora a notar que não precisa do auxílio da imprensa. Desmoraliza-se sozinho. Há vitórias que envergonham os vitoriosos, dignificando os vencidos. 

O problema não é a capacidade dos jornalistas de obter dados sigilosos. O que complica é a incapacidade do investigado de prover explicações. 

A censura à TV Globo logo será revogada em instâncias superiores do Judiciário. Mas algumas reações oficiais precisam ser censuradas. 

Dias atrás, Bolsonaro manifestou o desejo de "encher de porrada" a boca de um repórter por causa de uma pergunta incômoda. Agora, Flávio esmurra a democracia recorrendo à censura prévia do noticiário.

"A juíza entendeu que isso [o noticiário sobre a investigação] é altamente lesivo à minha defesa", trombeteou Flávio, antes de ameaçar: "Querer atribuir a mim conduta ilícita, sem o devido processo legal, configura ofensa passível, inclusive, de reparação". 

Ironia suprema: na campanha eleitoral, pai e filho surfaram na lama que escorria do petismo. Uma lama que chegava às manchetes graças ao trabalho da imprensa. Agora, queixam-se da sorte. 
Nos próximos dias, o Zero Um será denunciado pelo Ministério Público. Ou costura meia dúzia de argumentos ou continuará nu em cena. 

https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2020/09/mais-uma-pergunta-que-nao-quer-calar-o.html


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

NUM ESTADO LAICO, HOMENS SANTOS SÃO INTOCÁVEIS APENAS PARA SEUS DEVOTOS

 

Não se nega aos crentes o direito de sentirem-se ofendidos com publicações, filmes, livros, etc., mas vale lembrar que nenhum deles é obrigado a ler o Charlie Hebdo ou ver A última tentação de Cristo

Os que o fizeram, provavelmente, foi em função do falatório e das polêmicas, para verificarem se era ou não verdade o que se dizia a respeito de ambos – já predispostos, portanto, à indignação.

No Ocidente, com a separação entre Igreja e estado, sua única iniciativa possível contra a fita era recorrerem aos tribunais. Felizmente, países contemporâneos à própria época (ou seja, que não estejam brigando com a modernidade) não censuram filmes por atentarem contra a imagem de personagens históricos que alguns consideram sagrados, outros não. 

Já vão longe os tempos em que católicos queimavam bruxas e lançavam cruzadas sanguinárias contra os infiéis, então, felizmente, nenhuma besta-fera foi encher de balas o diretor Martin Scorcese ou o ator Willem Dafoe (que interpretou Cristo).

Os responsáveis pelo semanário satírico, por sua vez, jamais fizeram o que seria, realmente, uma provocação: providenciar traduções e lançar edições direcionadas para países e contingentes humanos que vivem no século 21, mas continuam com a cabeça no século 6.  

A quais maometanos antes incomodavam, de verdade, os 60 mil exemplares do Charlie Hebdo comercializados apenas na Europa? Pouquíssimos, decerto. 

O que houve não foi nenhuma reação furibunda de indivíduos emocionalmente primitivos que estariam sentindo-se agredidos em sua fé, mas sim uma sanguinária e calculista demonstração de força de terroristas clássicos.

Ao chamá-los assim, diferencio-os dos combatentes que, em nome do seu povo e por ele apoiados, resistem pelas armas às tiranias que lhes são impostas pela força das armas, pois estes exercem seu legítimo direito de reagirem aos déspotas e ao terrorismo de Estado com que tais déspotas se mantêm no poder. 

A confusão semeada entre uns e outros foi um mero artifício dos serviços de Guerra Psicológica de ditaduras como a brasileira dos anos de chumbo

Os verdadeiros terroristas são aqueles que, como francos-atiradores dissociados das massas e sem estarem contribuindo para nenhum ascenso revolucionário, utilizam a violência apenas para punirem e intimidarem seus inimigos. Os dementes responsáveis pelo ataque covarde e vil ao Charlie Hebdo, p. ex., garimparam diligentemente, até encontrarem, um alvo condizente com a mensagem que queriam passar.

Terroristas clássicos obtêm muitos holofotes, mas sua pirotecnia quase sempre levanta a bola para o inimigo marcar pontos, além de eventualmente ter consequências catastróficas. No primeiro caso está, p. ex., a tentativa de matarem o czar Alexandre III em 1897, que redundou na execução do irmão do Lênin, Alexandre Ulianov, e de quatro de seus companheiros, além, é claro, de um previsível agravamento da repressão política.

E no segundo, tanto o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando por parte do
 mão negra Gravilo Princip em 1914, que conduziu aos horrores da 1ª Guerra Mundial; quanto o atentado ao WTC em 2011, responsável pela pior escalada global de estupro dos direitos humanos e perseguição a inocentes que os cidadãos de origem árabe já sofreram.
Atentado terrorista clássico que causou a 1ª Guerra Mundial

Marxistas e anarquistas há muito descartaram e se dissociaram do terrorismo clássico. Nos últimos tempos, contudo, contingentes desnorteados de esquerda que, trocando a coerência com o amadurecimento político que já haviam atingido pela mais tacanha 
realpolitik, vêm cometendo uma dupla heresia (este termo retrô cai como uma luva no presente contexto...):
  • a de defenderem fundamentalistas religiosos que não querem, de maneira nenhuma, fazer a humanidade avançar para além do capitalismo, mas sim fazê-la retroceder para antes do capitalismo, ou seja, para as trevas medievais; e
  • a de defenderem terroristas clássicos e seus monumentais tiros pela culatra, tornando-se parceiros dessas derrotas e associando estupidamente sua imagem a carnificinas que qualquer cidadão isento repudia.
Caem no vazio suas tentativas de relativização de um episódio que foi, isto sim, totalmente bestial e absolutamente condenável. Quando alguém é chacinado por dá-lá-aquela-palha, buscar justificativas para o crime soa hipócrita e aberrante. Uma das diferenças entre nós e os animais é que, ao contrário dos touros, não temos nenhuma compulsão irresistível de destruir um semelhante apenas porque veste vermelho.

Reconheço e até admiro a boa fé de ingênuos religiosos, mas não perdoo os esquerdistas que abdicam do seu compromisso fundamental com a civilização, passando a raciocinar como simplórios torcedores de futebol ("Se é contra os EUA, a Europa e Israel, vale tudo, até gol de mão nos acréscimos, em posição de impedimento"...).

Por último:
 religiosos de ocasião e por conveniência à parte, como fica a questão das pessoas devotas que, sinceramentesentirem-se insultadas em sua fé?

Ora, sendo nosso estado laico, homens tidos como santos são encarados, por quem não é devoto de tal religião, como personagens históricos (ou fictícios) iguais a quaisquer outros. 

Não cabe nenhuma forma de censura ou perseguição dos poderes públicos a quem trata Cristo ou Maomé da mesma forma que, digamos, Vlad Dracul e Hitler (os quais, aliás, têm lá seus defensores, mas 99,9% do que aparece sobre eles em filmes e publicações é extremamente negativo).

E, como a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos no Brasil do século 21, só resta aos ofendidos o caminho dos tribunais e de iniciativas visando ao convencimento da opinião pública (desde anúncios pagos até campanhas virtuais incentivando o boicote aos
 blasfemos).

No fundo, o que os religiosos pretendem é que se conceda um tratamento diferenciado para quem eles consideram diferente. Mas, agnósticos, ateus e mesmo religiosos de outras confissões podem discordar (um neopentecostal admitiria, p. ex., Oxalá como similar a Jesus Cristo?). Então, não faz nenhum sentido, em termos legais ou morais, pretender que a imprensa não os ridicularize como ridiculariza outros personagens históricos do passado e do presente.

Podemos até achar que a irreverência é exagerada no seu todo, que a nossa imprensa pega pesado demais com Bolsonaro, ou que a francesa pega pesado demais com Marine Le Pen. O que não podemos é aceitar como válidos os piores achincalhes a Bolsonaro e à Le Pen e, ao mesmo tempo, não admitir a mais ligeira irreverência com Maomé.

Caso contrário, para que terão servido, afinal, 1945 e 1985 aqui, o iluminismo e a Grande Revolução lá? E de que valeu tantos resistentes morrerem lutando contra os nazistoides daqui e contra os nazistas de lá?

Pois eram todos expressões da intolerância, fanatismo e autoritarismo inseparáveis da tese da intocabilidade dos homens santos.

Além do mau humor e dos maus bofes, claro!
 (por Celso Lungaretti)

https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2020/09/num-estado-laico-homens-santos-sao.html



quarta-feira, 2 de setembro de 2020

METÁSTASE NA POLÍTICA E NA ECONOMIA

 


Dístico dos inconfidentes mineiros
É a economia quem define o modo de ser da política. 

Todas as formas de organização social na história da humanidade foram moldadas pelo modo de produção social, que mais não é do que as regras pelas quais se obtém a sustentação social (além da produção, a distribuição e o consumo).

É o modo de produção que define o modo de distribuição e consumo, ou seja, o modo de apropriação dos bens e serviços indispensáveis ao consumo social. O termo economia, que deriva do grego, tinha o significado de regras da casa

Destarte, a economia é a regra socialmente definida, que tem sua aplicabilidade explicitada por regras comportamentais de controle social materializadas e  determinadas pela política. 

Num sentido amplo, economia é uma definição política (que tem sido historicamente imposta de cima pra baixo) de comportamento macrossocial de produção e consumo.

Em sentido estrito, política é o regramento jurídico governamental e comportamental do indivíduo social, enquanto homo economicus transformado em cidadão (detentor de direitos e obrigações próprias à cidadania definida economicamente). 

Não é por menos que há cidadãos de primeira classe (aqueles a quem os países concedem o direito de ir e vir livremente, desde que tenham posse para financiar o turismo de passeio ou negócios); e os de segunda classe, obrigados a enfrentas as intempéries de uma migração clandestina. 

A superestrutura é formada por definições jurídicas que evidentemente estão sempre permeadas por outras injunções comportamentais, como a arte, a filosofia, a religião, a literatura, a estética corporal e urbana, etc. 

Mas todos esses fenômenos sociais são contaminados (no caso da ciência social aplicada à economia capitalista) ou estabelecidos por um modo econômico-social de produção e convivência que historicamente tem sido imposto de cima para baixo. 

Daí a conclusão óbvia de que a política é serviçal da economia e tem uma soberania de vontade relativa, presa que está à dependência econômica. 

Se quisermos dar à política um conceito mais abrangente, de vontade soberana, teremos de defini-la de modo também mais abrangente, como modo de relação social (ou seja, como economia social, que assim abrange um pensar político fora da caixa, cujos conceitos vão além da economia burguesa). 

Daí Marx ter intitulado de Crítica da Economia Política as suas reflexões sobre a forma-valor enquanto instrumento de escravização indireta moderno e contraditório nos seus fundamentos, e como tal fadado ao desaparecimento, uma vez que é dado histórico, com começo, desenvolvimento e morte.

O atual estágio de degradação da política advém da degradação da economia e não o contrário, como tentam fazer-nos crer aqueles que a apresentam como algo intrinsecamente salutar, mas prejudicado pela crapulosa política atual. Trata-se apenas de uma versão conveniente para quem está empenhado em preservar o modo de produção capitalista. 

É a velha economia aquilo que faz um farsante como o capitão Boçalnaro, o ignaro, optar por:
— dar um giro de 180° no seu propósito original (eleitoral-absolutista-militar-golpista-nacionalista-liberal), que é contraditório desde o seu enunciado;
 abraçar um projeto eleitoral populista de quinta categoria, que nega os conceitos liberais de seu ministro da Economia e dos manuais clássicos do ramo, deixando o grande empresariado e o mercado com as barbas de molho, indagando-se sobre em quantas heterodoxias mais ele incorrerá para tentar reeleger-se;
 concluir que, com o desemprego estrutural no atual estágio de debacle econômica mundial e brasileira, turbinado por uma pandemia virótica assombrosa, seu projeto original teria de ser momentaneamente abandonado (ainda que por mero oportunismo político e somente até que as suas pretensões originais possam ser retomadas, segundo sua visão míope de golpista primário).

Mas a metástase da economia em estágio avançado de decomposição não aponta para uma harmonia política capaz de mantê-lo com níveis de popularidade aceitáveis, perante uma população desassistida em razão de uma ordem econômica que faz água por todos os lados.

Se o quadro econômico brasileiro é depressivo, quadro político chega a ser desolador. 

O que dizer de um Estado como o Rio de Janeiro, cujos últimos governadores foram, estão ou serão presos por corrupção (causa relativa, pois a primária é a falência capitalista), tendo à desgraça deles se acrescentado agora a desse farsante corrupto, sem passado, sem presente e sem futuro, Wilson Witzel, que se elegeu com o mesmo discurso anticorrupção do Boçalnaro e de seus filhos zero à esquerda???

O que dizer de um partido que terminou o seu ciclo de mais de 13 anos na presidência da República envolvido em comprovadas maracutaias (mensalão, petrolão e outras) com o que há de pior na tradicionalmente putrefata política brasileira??? 

O que dizer de um presidente que se ofende e ameaça esmurrar um profissional do jornalismo em serviço, pelo simples fato de este fazer a pergunta (por que o Queiroz depositou R$ 89 mil na conta da Michelle?que até os paralelepípedos da ruas repetem???  

O que dizer de um parlamento composto em sua maioria pelo chamado centrão, que chantageia todos os governantes em troca de cargos públicos para ali promoverem as mais descaradas práticas corruptivas e de exercício de poder como forma de manter as suas reiteradas elegibilidades pelo voto de cabresto dos grotões empobrecidos??? 

A política apenas reproduz aquilo a que serve: o capitalismo, cuja natureza é a corrupção contida na apropriação indébita do trabalho abstrato produtor de valor, mecanismo pelo qual ocorre a acumulação do capital pelo capitalista. 

Isto no Brasil, que tem o triste galardão de:
 ser uma das últimas nações a abolir a escravidão dos africanos, aqui trazidos como mercadoria; 
— ser o único país que derrubou o império monarquista e instaurou a república pela força militar em conluio com uma elite política de direita, mais conservadora do que o Imperador destituído; 
 nos anos de chumbo do século passado, ter hipocritamente entronizado no poder político, após a queda da ditadura de 1964-1985, o antigo presidente do partido fantoche dessa mesma ditadura (José Sarney). 
Por aqui é oficialmente proibido o custeio eleitoral pelo poder econômico (empresas industriais, bancos, grande comercio, ricaços em geral, etc.), mas se destina, no empobrecido orçamento público, uma criminosa verba para os partidos políticos, presididos por verdadeiros gangsters que a usam para se perpetuarem como chefões de suas respectivas legendas. 

Portanto, além de o povo financiar a sua própria opressão política, ainda ocorre por debaixo do pano (o famoso caixa 2) a influência do poder político econômico empresarial e do enriquecimento ilícito da corrupção com o dinheiro público. Além de queda, coice. 

Sem querer elogiar o Grande Irmão estadunidense, que é a meca da exploração mundial econômica e bélica, devemos enfatizar que pelo menos na questão da influência do poder econômico nas eleições de lá, a coisa se passa de maneira explícita: os candidatos que mais arrecadam dinheiro publicam tal ocorrência como forma de demonstração de prestígio e de forte apoio político na pátria do capital. 

O eterno pêndulo da ineficácia eleitoral entre progressistas e conservadores corresponde a uma farsa de manifestação da vontade popular pelo voto, que nada mais é do que a legitimação do roubo na economia e do exercício do poder político que lhe é subserviente. 

Se num passado distante a conquista da sufrágio universal representou um avanço com relação ao absolutismo feudal e capitalista dos primórdios, a democracia burguesa atingiu um estágio tal de decomposição e degeneração que votar em suas eleições significa corroborar e legitimar um sistema que sofre de metástase orgânica funcional, cuja morte está anunciada.

Daí nossas recomendações:
 não vote! 
 conscientize-se da importância do seu protesto contra tudo que está aí!
 supere todas as categorias capitalistas (valor, trabalho abstrato, dinheiro, mercadoria, mercado, política, Estado, partidos políticos, etc.)! 
 promova a emancipação social e a verdadeira justiça!!! 

(por Dalton Rosado) 

CEGUEIRA FUNDAMENTALISTA EM PLENO SÉCULO 21 É UMA EXCRESCÊNCIA GROTESCA

 

HOSPITAL NÃO É DELEGACIA
A índole do governo do presidente Jair Bolsonaro se revela inteira na portaria baixada na sexta (28) pelo Ministério da Saúde a pretexto de normatizar o provimento de aborto nos casos previstos em lei. 

Na pasta militarizada, a cegueira fundamentalista aniquila qualquer resquício de bom senso e empatia.

Sobra-lhe, contudo, hipocrisia. Sob a justificativa de levar segurança jurídica a funcionários de serviços hospitalares encarregados da realização do procedimento, acrescenta barreiras intimidantes a mulheres já traumatizadas pela necessidade de interromper a gravidez.

Cabe aqui reiterar quais os casos com autorização legal de abortamentos, para que não paire dúvida sobre a gravidade da condição em que tais gestantes se encontram. Eles só podem ocorrer quando a gravidez decorre de estupro, comporta risco para a vida da mulher ou resulta em feto anencéfalo.

Em nome de uma vida, aquela incipiente no ventre da vítima de situação cruel, impõem-se tormentos adicionais às que buscam o serviço de saúde profissional em lugar de recorrer a abortos clandestinos que tantas mortes provocam.

Extremistas religiosos veem justiça divina no sofrimento alheio, mas espanta que o Ministério da Saúde se renda à estratégia de desumanização. 
Que o faça poucos dias depois do assédio impiedoso à menina capixaba de 10 anos estuprada desde os 6 evidencia que o zelo ideológico suplanta com folga, na pasta, o mandato ético.

A portaria estipula, entre outros constrangimentos, que médicos reportem o aborto à polícia e colham depoimentos circunstanciados sobre o evento do estupro.

Hospital não é delegacia. A norma afastará do atendimento aquelas que dele necessitam.

Há que levar em conta a tendência de alguns profissionais de saúde a escudar-se na objeção de consciência para recusar o procedimento a mulheres desesperadas. Criar exigências novas só lhes dará novas desculpas para falhar no cumprimento do dever.

Logo no Espírito Santo surgiu outro caso para abrir os olhos de quem não perdeu a faculdade de se comover com a desdita alheia: mais uma menina estuprada e grávida, de 11 anos, a peregrinar por quatro dias por um direito seu.

Particulares podem talvez abandoná-la para que se vire sozinha, se conseguirem justificar a crueldade à própria consciência. Ao poder público não se faculta tal desumanidade, na prática ou por portaria, sobretudo quando estas afrontem a letra e o espírito da lei. (editorial da Folha de S. Paulo de 01/09/2020)