Por Alexandre Figueiredo
A intelectualidade dominante de hoje perde tempo tentando associar a "cultura de massa" brega-popularesca à natureza espontânea da verdadeira cultura popular. Isso não existe. Desde os primeiros ídolos cafonas, até os novos nomes do "sertanejo universitário" e até do "funk ostentação", a "cultura" brega sempre foi um produto midiático, por ser resultante de valores ideológicos transmitidos pelo poder midiático.
Neste sentido, pouco influi se é aquele grupo de "pagodão erótico" inventado por um esperto produtor de eventos ou se é um ídolo cafona que foi sozinho do interior do Nordeste para São Paulo num ônibus lenhado para iniciar carreira hospedado em uma pensão de quinta categoria. Ou se é um ídolo da axé-music de bem com a vida ou um "sertanejo" que antes da carreira trabalhava em colheita de alimentos plantados em uma fazenda.
A cultura midiatizada, neste caso, é determinante, e no caso do brega ela estabelece relações de classe, porque é uma cultura que nada tem a ver com os vínculos comunitários das classes populares, mas antes a reunião destas classes em torno de um processo de transmissão de valores "de cima para baixo" determinado pelo poder midiático regional.
Vamos pensar um pouco. Um bom exemplo é a própria música brega original. De Waldick Soriano, de Orlando Dias, e, um pouco mais tarde, de Odair José e Paulo Sérgio. Do que se compõe o brega original? De "restos" de valores oriundos de um regionalismo brasileiro em decomposição, seja pelo poder latifundiário, seja pelo êxodo rural,e de valores estrangeiros mal-digeridos pela velocidade das informações trazidas pelo rádio e pela imprensa e, mais tarde, pela TV.
Não são identidades brasileiras, não é a brasilidade renovada, mas uma identidade confusa, em que "eu" e "outro" parecem se confundir, em que o coronelismo cultural estabelece seu padrão etnocêntrico de "cultura popular" e se empenha para que o povo pobre expresse não a sua cultura, suas crenças e suas vidas, mas seja apenas um reflexo do que rádios, TVs e imprensa ligados ao poder oligárquico estabelecem como paradigma de "popular".
A intelectualidade dominante tenta nos fazer crer, em argumentação chorosa, apesar do forte aparato científico, de que essa "sub-cultura" é uma suposta semente de uma "nova brasilidade". Conversa para todo o gado dormir tranquilo. O que ocorre é uma visão tipicamente emprestada de Francis Fukuyama à qual toda a cultura brasileira produzida até 1964 está "superada" e que agora "novas" identidades, a pretexto de serem "modernas", passam a ser desenvolvidas.
Quer dizer que todo o patrimônio cultural brasileiro, arduamente desenvolvido às custas de muita luta, muita dor, com índios exterminados a bala por bandeirantes e por negros escravizados e até mortos na tortura e no açoite, deva ser jogado na lata de lixo? Agora o que vale é o brega em dor-de-corno, o funqueiro se fazendo de vítima, o axézeiro "mal-compreendido" pelos cariocas e paulistas, todos mais próximos de Miami do que de Brasília?
O QUE É O POVO MESMO?
Na verdade, o que se vê é que a própria intelectualidade dominante, que ainda se atreve em se passar por "progressista", também tem uma formação ideológica midiática. Seus "pensadores", geralmente nascidos a partir de 1960, viram televisão durante o auge da ditadura militar e se formaram, culturalmente, felizes na bolha de plástico midiática durante a vigência do AI-5. Eles não viveram o tempo em que famílias se reuniam para ouvir os "causos" de avôs sob a luz do lampião.
Evidentemente, a atual geração de antropólogos, sociólogos, historiadores, cineastas e jornalistas musicais que trabalham o tema "cultura popular" segue uma pedagogia social mais próxima dos estereótipos da televisão do que da realidade vivida 'in loco'. Se em outros tempos falava-se numa intelectualidade de formação meramente livresca, hoje se fala numa intelectualidade de formação televisiva, em ambos os casos sem a necessária vivência social junto às classes populares.
O contato com as classes populares é meramente pragmático e superficial. Os intelectuais dominantes estabelecem relações com empregadas domésticas, faxineiros, porteiros, feirantes e alguns comerciantes. Isso não é suficiente para ter uma consciência exata do que são e do que querem as classes populares. Da mesma forma que os antigos burocratas em relação aos escravos, mascates e pequenos comerciantes, no século XIX.
A intelectualidade dominante que trabalha com o brega-popularesco, defendendo desde os antigos ídolos cafonas até os funqueiros, julga conhecer profundamente a realidade do povo pobre. Grande engano. Mesmo os contatos mais "penetrados" nos ambientes das periferias e do interior, por mais que tentem se aproximar da realidade popular, carregam um paternalismo que, mesmo não-assumido, revela seus preconceitos acadêmicos e elitistas severos.
Afinal, não há uma avaliação crítica dos conflitos de classes nem das questões em torno da miséria e de outras carências associadas à pobreza. O que existe é uma glamourização, uma construção da realidade, de um discurso intelectual persuasivo, discurso que na forma segue o rigor científico das produções acadêmicas, jornalísticas ou cinematográficas, mas cujo conteúdo tem muito mais a ver com o discurso publicitário institucional.
Descontando os propósitos escusos que intelectuais associados a órgãos estrangeiros ligados à CIA - como a Fundação Ford e a Soros Open Society - , a boa-fé dos demais intelectuais aponta para o fato de que mesmo o contato físico com o povo não quer dizer que essa intelectualidade dita "sem preconceitos" seja realmente desprovida de qualquer preconceito elitista.
Pelo contrário, tudo para esses "pensadores" segue o caráter quase ficcional da realidade midiática. Até mesmo a influência do rádio e das empresas de entretenimento é minimizada em seu discurso. Os empresários de entretenimento, que no âmbito das estruturas sociais, equivalem a uma forma moderna e menos violenta dos capatazes (ou jagunços) dos grandes fazendeiros, são tidos como "meros produtores culturais" e, mesmo ricos, são ainda tidos em vínculo com as populações pobres.
Já o rádio, que sabemos ser expressão do coronelismo midiático nos subúrbios e roças de nosso país - mesmo algumas emissoras "comunitárias" são vinculadas a esse poder, através do controle acionário de vereadores, deputados e até mesmo jagunços - , praticamente vê esse poder "desaparecer" no discurso intelectual dominante. Esse discurso tenta sobrelevar o trabalho dos programadores e gerentes artísticos, como se fossem detentores de um suposto poder libertário na "cultura das periferias".
TUDO É MIDIATIZADO
O controle midiatizado faz com que o povo pobre perca sua consciência na extratificação social. A grande mídia que trabalha com o brega e seus derivados cria uma espetacularização do cotidiano que, no contexto das classes populares, insere valores confusos, numa assimilação indigesta e acrítica de valores elitistas e estrangeiros, mesclados por uma gororoba de valores sociais ligados ao grotesco, ao piegas, ao sensacionalista, ao pitoresco e que banalizam a degradação de valores morais.
O discurso intelectual tenta "positivizar" o processo, achando que são "valores do outro", e tentam eles mesmos superestimar as questões de gosto, embora condene o questionamento que mentes realmente mais questionadoras fazem com a supremacia do "mau gosto" sobre o cotidiano das classes populares.
Afinal, a própria questão do "mau gosto", tida como "bandeira libertária" pela intelectualidade dominante de hoje, é bastante duvidosa, porque o processo de gosto já é corrompido pelo mercado e pela mídia. "Gosta-se" dos "sucessos do povão", "gosta-se" de "funk", brega, "pagodão" etc, como se "gosta" de sabão em pó, de automóvel, de comida enlatada. É tudo questão de persuasão publicitária, algo que as elites "pensantes" de hoje ignoram.
Mesmo a "conscientização" do "funk" e as "lamentações" dos bregas "de raiz" são fruto de uma educação midiática, que corrompe os valores, desejos, crenças da população pobre, que deixou de ter seus próprios desejos, suas próprias necessidades, sua própria realidade. Mesmo na "mais dura realidade" do "funk carioca", os desejos não são mais os próprios. São os desejos da grande mídia, do empresário das equipes de som, do poder político e econômico, das agências de publicidade.
Portanto, tudo ficou midiatizado. Daí não fazer sentido a intelectualidade dominante de hoje defender no brega-popularesco os vínculos sociais que já foram rompidos pelo poder midiático, em vez de questionar as relações de dominação que estão por trás dessa "cultura de massa" claramente patrocinada pelo poder oligárquico que controla, de uma forma ou de outra, as periferias.