sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Os muros da vergonha

Muro da Cisjordânia (760 km)



O que está a acontecer na América Latina? Após a primavera progressiva, somos testemunhas do regresso do inverno neoliberal reaccionário?

Michel Collon é um activista comunista, jornalista, ensaísta belga, fundador do colectivo independente Investig'Action. Neste podemos encontrar um artigo cujo título já diz muito: "Os muros da vergonha", publicado também no nº 9 de Le Journal Notre Amérique. Os novos muros podem também ser o símbolo duma "marcha atrás" no plano social? A palavra aos Leitores. Por enquanto, aqui vai a tradução.

Os muros da vergonha da América Latina

Mais de um quarto de século depois da queda do Muro de Berlim e enquanto os apologistas do neoliberalismo não se cansam de glorificar os méritos da globalização, o mundo nunca viu um tal número de muros. Cada dia mais presente na Europa, construídos para proteger-se dos imigrantes e dos refugiados que fogem da guerra e da miséria, as paredes tornaram-se novos marcadores geográficos para repelir os indesejáveis.

O que se sabe e é que estes enormes fortalezas também servem para separar os ricos dos pobres e criar segregação social, territorial e racial. Na América Latina, onde a desigualdade tem sido particularmente evidente, a construção de muros tem acelerado nos últimos anos, aprofundando o fosso que separa aqueles que possuem todos daqueles que nada têm.

...para não misturar aqueles de cima com aqueles de baixo

Há quatro anos que os habitantes do subúrbio deVista Hermosa, nas alturas de Lima, são incapazes de ver o panorama da capital.
Por qual razão? Por causa dum muro de mais de dez quilómetros de comprimento e três metros de altura que os separa de um dos bairros mais luxuosos da capital: Las Casuarinas.

"A vista daqui era muito bonita; era possível ver toda a cidade, até que chegaram os de Las Casuarinas e construíram o muro; fecharam-nos a vista para que não seja possível olhar para o lado dele, porque não estamos ao mesmo nível" afirma Amadeo Alarcon, um residente de Vista Hermosa.

Dum lado, então, casas feitas com tudo o que vem à mão. Sem gás, sem eletricidade, sem água corrente. Deste lado da parede, uma casa vale menos de três centenas de Dólares.

Do outro lado da parede, no entanto, é um outro mundo. Lá, as casas podem valer até cinco milhões de Dólares. Lá vive a parte burguesa do País. Enquanto os primeiros pagam uma fortuna a água para as necessidades básicas, os segundos desfrutam de água abundante e barata para preencher as suas vastas piscinas.

A construção deste "muro da vergonha", como é chamado pelos habitantes das favelas, iniciou em 1980, "na altura do terrorismo e das invasões do Peru", explica Elke McDonald que vive em Las Casuarinas.

Os anos '80 foram marcados pela terrível guerra civil em que os guerrilheiros marxistas do Sendero Luminoso enfrentaram o governo peruano. Forçados a fugir dos combates, muitos agricultores migraram para a capital e encontraram refúgio nestas colinas íngremes, onde as condições de vida eram terríveis.

Mais de vinte anos após o conflito que causou mais de setenta mil mortos, muitos agricultores ainda vêm para a capital em busca dum futuro melhor para as sua família. Mas porque ainda chegam? A resposta é dada pelas políticas económicas prosseguidas por décadas no Peru, cujas primeiras vítimas são as populações indígenas.

Muito dependente das exportações, a economia peruana é quase exclusivamente baseada na extracção de metais (ouro, cobre, zinco...). Para melhor gerir esta actividade, os sucessivos governos não pouparam meios para atrair os investidores e os estrangeiros se apressaram: o País é um Éden para as multinacionais que acumularam lucros fabulosos.

Na região de Cajamarca, por exemplo, as actividades criminosas da poderosa multinacional dos EUA, a Newmont, têm provocado o êxodo de milhares de famílias rurais, expulsos das suas terras pelas autoridades para abrir o caminho à pilhagem dos recursos minerais.

Muitas vezes vítimas da repressão policial, quando não atiradas para a prisão ou simplesmente assassinadas, as comunidades indígenas encontram refúgio nas grandes cidades e particularmente na capital, onde vêm para engrossar as fileiras dos sem-abrigo e dos excluídos da sociedade.

Para proteger-se destes náufragos do sistema, que as elites peruanas consideram perigosos e muitas vezes rotulados como criminosos, os moradores ricos de Las Casuarinas construíram este muro com a aprovação das autoridades.

Estes ricos simplesmente consideram o muro como uma medida de segurança: "Qualquer pessoa tem o direito de fechar a sua propriedade privada para protege-la" defende o senhor McDonald que acrescenta: "Este é o melhor lugar no Peru pois pode-se caminhar e dormir em paz. Todos nós pagamos uma contribuição mensal de 100 Dólares para a segurança".

No entanto, na opinião de Alicia Yupamqui que vive numa barraca, aquela é uma parede que discrimina. "Acho que o muro foi construído para não misturar aqueles de cima com aqueles de baixo" continua Sara Torres, outra moradora do bairro.

Outra cidade no continente com um fenómeno similar: São Paulo. Megalópole de mais de onze milhões de habitantes, é o coração económico do Brasil.

Há também enormes desigualdades e discriminações, simbolizadas pelo muro que separa a favela de Paraisópolis, onde moram setenta mil habitantes, do bairro rico de Morumbi. Dum lado: quatorze mil casas de madeira e plástico; do outro, apartamentos que podem valer até 700.000 Euros.

Enquanto alguns não têm serviços públicos, outros têm consultas no Hospital Albert Einstein, um dos mais famosos e caros do País. As pessoas de ambos os bairros não se falam, não se frequentam, não se conhecem. "Nós não misturar-nos com eles. Eles ficam lá e nós aqui" diz um morador da favela.

A cidade, e mais geralmente o Estado de São Paulo, atrai todos os anos milhares de pessoas que vêm principalmente das pobres regiões setentrionais em busca de trabalho e melhores condições de vida.

A violência simbólica

Na sua obra-prima, As Veias Abertas da América Latina, publicado em 1971, o escritor Eduardo Galeano dava o alarme e denunciava o espetáculo insuportável de miséria e desigualdade que assola o continente. Mais de quarenta anos se passaram e, embora houvesse não poucos progressos em termos de redução da pobreza, da analfabetismo, erradicação ou luta contra a fome, a América Latina ainda tem muitas dificuldades para curar todas as feridas.

Após ter sido um laboratório das políticas neoliberais, políticas que fizeram crescer o número de pobres desde 136 milhões em 1980 para 225 milhões no início de 2000, o subcontinente americano conheceu durante a década passada sucessos sociais sem precedentes. Novos Países (Bolívia, Venezuela) foram declarados pela UNESCO "livres de analfabetismo".

Essas políticas sociais foram aplicadas em particular graças ao aumento dos preços das matérias primas, das quais dependem essencialmente as economias latino-americanos. Mas a crise económica e financeira de 2008, com a queda dos preços das matérias primas nos últimos anos, têm influído duramente nas Nações sul-americanas.

O Brasil, onde a política da Presidente Dilma Rousseff dia após dia tem virado para Direita, tem abandonado os movimentos sociais e as desigualdades são particularmente escandalosas. Depois do Honduras, o Brasil é o País menos igualitário nas Américas.

No Peru, embora a pobreza tenha diminuído da metade nos últimos anos, em particular graças a um crescimento económico de cerca de 6,5%, ainda há grandes disparidades. Há desigualdades sociais, mas também regional e mesmo racial. De facto, em 2004 a possibilidade dum habitante da campanha de cair na pobreza era duas vezes mais elevada do que no caso dum morador da cidade. Em 2014, essa mesma probabilidade era três vezes maior. Os Peruanos de língua materna indígena (aimara, quíchua...) são duas vezes mais propensos a cair na pobreza do que aqueles cuja língua materna é o castelhano.

As paredes erigidas em Lima ou São Paulo são o símbolo desta terra de contrastes chamada América Latina. Um continente e uns povos que lutam há mais de quinhentos anos para alcançar libertação e independência.

Estas imensas fortalezas também trazem à tona o caráter racista das elites latino-americanas, que muitas vezes sentem desprezo e repugnante perante pessoas pobres e indígenas.. Este "muros da vergonha" ficam muito perto da violência simbólica, uma violência que não fere os corpos, mas as mentes. Uma violência subtil que não mata, mas contribui para criar frustrações e desespero naqueles que não têm a sorte de ficar do lado "bom" da parede.

O enfraquecimento dos governos de Esquerda e ofensiva da Direita latino-americana ameaçam muitos os avanços sociais destes últimos quinze anos, como na Argentina, por exemplo. A liderar o protesto contra as políticas neoliberais, os movimentos sociais poderia muito bem voltar a actuar para derrubar aquelas paredes indignas e pôr um ponto final com estas sociedades altamente desiguais.

Nota: há outros muros da vergonha. Para ficar no Peru, e precisamente na zona de Lima, lembramos os recentes La Molina-SJM, Sta. María/VMT -Manchay/Pachacamac, Villa María del Triunfo...

Em 2004 o governo do Estado de Rio de Janeiro anunciou a intenção de construir um muro de 3 metros de altura para cercar 4 favelas (Rocinha, Vidigal, Parque da Cidade y Chácara del Cielo), todavia o projecto não teve seguimento.


Ipse dixit.

Fontes: Investig'ActionLe Journal Notre Amérique (nº 9), Limamalalima

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