quinta-feira, 8 de julho de 2010

Legitimidade da República

Por Mauro Santayana, JB on line

Mais do que as outras campanhas eleitorais conhecidas, a que se iniciou ontem começa com uma grave dificuldade, a da legitimidade do processo eleitoral.

Todos os tratadistas da política, dos gregos aos romanos, e dos romanos aos pensadores medievais, situam no consentimento dos governados a legitimidade do Estado e de seus eventuais administradores. É evidente que o consenso absoluto é impossível. O processo democrático admite como consenso possível o obtido mediante a maioria, e essa maioria, hoje, depois da evolução das sociedades políticas, a partir do século 17, é aferida pelos votos populares. Os parlamentos, quando são bem formados, têm presente a representação clara das minorias e, por intermédio das leis, tratam de buscar o equilíbrio entre os interesses em conflito, de forma a encontrar, nas negociações e acordos, o máximo de consentimento dos governados.

No processo democrático clássico, a partir dos gregos, a representação política está associada ao espaço de vida dos eleitores. A representação com base geográfica pressupõe a discussão e o entendimento prévio entre os cidadãos, na identificação de seus interesses e na escolha de seus delegados. É o melhor sistema: o poder deve ser constituído de baixo para cima. E os partidos, que são os instrumentos adequados para o processo de escolha democrática, têm que ser criados de baixo para cima. E ter sua identidade própria.

Nossa República é dominada, desde o seu nascimento, pelas regiões mais ricas e mais poderosas do país. E como o poder é poder, e como é da natureza do poder acumular-se, a fim de conservar-se, essa predominância, a partir de São Paulo, é a cada dia mais intolerável. Ora, o princípio federativo é o da igualdade entre as unidades autônomas, conforme a Constituição. Reconstruir o pacto federativo a partir desses princípios é um dos caminhos para a legitimidade política.

Os partidos brasileiros representam grupos de pressão e contrapressão, dos banqueiros e agronegociantes a organizações religiosas, sindicatos patronais e de trabalhadores, clubes minoritários. Já começam a representar etnias, que pretendem transformar-se em “raças”, com todo o perigo que essa falsa identificação pode provocar.

Sobre a relação entre a sociedade nacional – a societas civilis dos pensadores antigos – com o Estado, Manfred Riedel, ao analisar a atualidade de Aristóteles, autor que não diferencia a sociedade da polis, da República, esclarece que a burguesia tenta separar a “sociedade civil” e o Estado. Mas, na realidade, o Estado é a própria sociedade civil. “De modo que – diz o estudioso alemão – o problema da legitimação do poder equivale, neste século, ao problema da legitimação da sociedade em si mesma”. Há o interesse dos poderes econômicos em fazer essa distinção, que os ajuda a exercer os poderes de facto. Mas o Estado é a sociedade organizada.

Alguns verdadeiros homens de Estado do século 19 no Brasil partiam da ideia de que era preciso criar instituições políticas sólidas, ainda que a democracia fosse incipiente. Com poucas exceções, os nossos parlamentares de hoje não querem construir cidadãos; pretendem “adquirir” e conservar eleitores.

Só quando a sociedade tiver a consciência de si mesma, como a teve na memorável campanha das Diretas, e organizar-se para exercer o poder dessa consciência, e cada um dos brasileiros sentir-se cidadão de pleno direito, e votar com essa consciência, os nossos governos terão real legitimidade.

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