Por Washington Araújo
No Observatório da Imprensa
A intenção é sempre boa. Ninguém levar adiante reforma em jornal sem estar bem intencionado. Muitas vezes parte da constatação de que a fonte secou e, acima de qualquer outra prioridade, o ribeirão precisa ressuscitar. De imediato surgem logo duas correntes. Uma defende que o jornal precisa acompanhar os novos tempos, os avanços da tecnologia, o advento de novas formas de comunicação; outra defende que a história do jornal deve ser preservada, suas conquistas, lutas em tempos de maior ou menos respeito à liberdade de expressão. Entre as duas, ganha uma terceira, aquela que diz que podemos mudar para continuar sendo o que sempre fomos.
A intenção é sempre boa. Ninguém levar adiante reforma em jornal sem estar bem intencionado. Muitas vezes parte da constatação de que a fonte secou e, acima de qualquer outra prioridade, o ribeirão precisa ressuscitar. De imediato surgem logo duas correntes. Uma defende que o jornal precisa acompanhar os novos tempos, os avanços da tecnologia, o advento de novas formas de comunicação; outra defende que a história do jornal deve ser preservada, suas conquistas, lutas em tempos de maior ou menos respeito à liberdade de expressão. Entre as duas, ganha uma terceira, aquela que diz que podemos mudar para continuar sendo o que sempre fomos.
É quando a faxina assume ares de reforma. Posicionam-se os móveis da casa de outra maneira, manda-se forrar aquele velho conjunto de estofados, troca-se a luminária da direita e descobre-se que não é mais importante ter o setor de chapelaria porque as pessoas que visitam o jornal dificilmente usarão chapéus. Fecha-se a seção chapelaria e ordena-se o sumiço de seu peculiar mobiliário, aqueles vários ganchos (espetos para uns) sem qualquer outra utilidade.
Como em toda faxina, descobre-se na ativa objetos inúteis, mas com evidente valor afetivo. Estes precisam ser mantidos. Mas em outro lugar, não assim tão à vista. Faxina não exige desprendimento de quem a executa e sim gosto pela limpeza e senso de organização. Reforma exige boa dose de coragem para decretar expirado o prazo de validade de certas coisas e ousadia na escolha de outras.
Para repor as energias
Há poucos dias, tratei neste Observatório da reforma fartamente propalada pelo jornal Folha de S.Paulo (ver “O jornal de cara nova”). Emiti considerações sobre o que o próprio jornal estava divulgando em seu habitual afã de ser visto como dono do futuro. A Folha demonstra muito maior interesse em anunciar a reforma do que em realizá-la. É como se estivesse subjugada pelo marketing fácil, esse que faz da propaganda autorreferente um fim em si mesmo. Se não houvesse uma operação de guerra para publicizar a reforma, será que seus leitores notariam alguma diferença entre o jornal antes e o jornal depois, como fazem anúncios de remédios para emagrecer?
Nada de errado nisso. Mas tem algo que me incomoda. Essa história de que agora, com a reforma, o jornal passa a ser do futuro. O viés da arrogância e da pretensão enfim encontrou meio de se manifestar em toda sua estúpida inteireza. Quem disse que podemos tomar posse do futuro se mal damos conta do presente e nem sabemos como lidar com o passado? Futuro não é matéria do presente. Futuro, com cara de futuro, conteúdo de futuro e jeito de futuro é o que está sempre por vir, à espreita, emitindo sinais que nem sempre se confirmam, nem sempre se unem à matéria da realidade.
Futuro é também como criança trabalhosa, aquela que não fica quieta, que parece ter o tal bicho carpinteiro e cuja missão na vida é desarrumar nosso pensamento e nossa vontade. E, qual criança trabalhosa, dessas que dão trabalho extenuante, imenso, sem paradas nem claudicações, sem pit-stop para repor as energias, o futuro adora escapulir como areia vazando dos dedos. Ao alcance da mão e distante dos olhos e ao alcance dos olhos, mas distante das mãos. Então, não me venham me vender o presente como se futuro fosse. Enquanto meus três neurônios estiverem aptos ao trabalho, saberei distinguir passado, presente e futuro.
Meios de discernimento
Ora, essa! Ainda mais jornal avançando, se esparramando futuro afora. Fosse descoberta no campo da biologia molecular ainda passava, sim, estaríamos na ante-sala do futuro. Fosse especialista em nanotecnologia, com sua mania de reducionismo exacerbado, ainda poderia sucumbir ao canto do futuro hoje. Mas… jornal? Justamente o que perde a validade em duas dúzias de horas, que diz a que veio em não mais que 1.440 minutos, e começa a expirar no momento mesmo em que começou a inspirar, coisa que chega no máximo a 86.400 segundos? Para ser jornal do futuro teria que abandonar de vez as âncoras do presente, se libertar das circunstâncias, ousar no limite, fazer a viagem para dentro em busca de mundos novos e com certeza “nunca dantes navegados”. Agora, como o paciente leitor deve ter percebido, o assunto me pegou de jeito. E sigo adiante. O que seria, então, um jornal do futuro?
Seria o jornal apreciado pelo leitor do futuro. Nesta breve frase imagino existir um mundo de reflexões latentes, matéria viva germinando. Como seria o leitor do futuro? Para começar, teria que ter olhos posicionados na ponta dos dedos. E não apenas no rosto. Teria que manejar novos códigos de comunicação e manter atualizados filtros aptos a separar cultura e conhecimento úteis de seus similares inúteis. Não poderia ser o leitor de hoje: sempre com o pé atrás, em atitude de crescente desconfiança, achando que está sendo engrupido, manipulado descaradamente pelos cartéis da grande imprensa.
O leitor do futuro teria meios de discernimento eficientes para detectar as reais intenções do editorialista, do articulista, do analista econômico, do resenhador de livros, discos e filmes. E teria também um chip no olho esquerdo. Sempre que estivesse lendo uma matéria plantada, a defesa de algum interesse escuso, as letras do texto ficariam irremediavelmente desfocadas e a imagem, como por encanto, desapareceria dando lugar a outra.
País de triste passado
O leitor do futuro teria expertise em uma porção de coisas. Por exemplo, em não deixar as entrelinhas esmagadas pelas linhas. E, ainda no desjejum matinal, tomaria dois comprimidos que trariam de forma condensada a informação que mais lhe apetece: se amasse música clássica seria rapidamente informado dos principais lançamentos na área, ouviria pequenos trechos, saberia do processo criativo da obra em formação e lhe seriam identificadas, de par em par, críticas favoráveis e desfavoráveis por quem entendo do riscado; se fosse aficionado de política internacional, logo estaria inteirado das contagens regressivas em andamento, quais guerras estavam no nascedouro e quais estivessem em andamento mesmo que uma das partes ainda não estivesse consciente disso; se fosse apaixonado pelo texto dotado da clara claridade de Clarice Lispector, logo estaria equipado para viver dia com tudo a que tivesse direito, com sensibilidade tal que poderia pegar em asas de borboleta sem machucar.
O leitor do futuro acessaria notícias por seu sentido mais apurado: se fosse a audição, tudo chegaria por esse meio, se fosse a visão, o som e a imagem estariam sempre entrelaçados produzindo a informação na medida. O leitor do futuro não seria o leitor do futuro e sim o destinatário da informação, o beneficiário final da notícia. Ler seria o de menos, até porque as notícias não chegam apenas pela antiquada forma da leitura. Novamente, acho que puxei demais o novelo e agora vejo fios espalhados por todos os lados.
Acelerei muito o pensamento e sou obrigado agora a dar um cavalo-de-pau. Puxo, então, o freio de mão da razão. Preciso retornar ao tema desse texto: a Folha de S.Paulo que se apresentou domingo (23/5/2010) como sendo o jornal do futuro. Menos de uma semana depois do grandiloqüente anúncio, feito para nublar qualquer conquista sobre a ignorância que invade nosso código genético, leio com desalento sua manchete de sexta-feira (28/5): “Hillary vê risco para o mundo no acordo Brasil/Irã”.
Será que, no futuro alardeado pelo jornal, é esperado que seus leitores captem o futuro com um misto de medo e impotência? O jornal do futuro preza em demasia o teor de cataclismo, de desgraça grande que parece carregar a visão de Hillary Clinton sobre o Brasil. Pobres de nós, brasileiros, não bastasse Hillary e esta sua visão estampada com ênfase aterrorizadora, ainda temos o jornal do futuro para repercuti-la. No caso específico entendo que esta primeira página da Folha nos remete a um país de triste passado, aquele que gripava ante o espirro ocasional da potência do Norte. Nos restos das entrelinhas sufocadas ainda consigo ler algo como: “Tremei brasileiros: Hillary nos escala para a bola da vez, depois do Irã”. Recuso-me, desde logo, a participar do futuro antecipado pelo jornal.
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