A obra de Dan Brown foi um dos maiores fenômenos literários dos últimos tempos. Ela baseia-se em uma trama misteriosa recheada de surpreendente lógica e que abusa da verossimilhança para ser convincente. Sua obra, conforme ele mesmo admite, não passa de ficção e foi escrita apenas para nosso entretenimento. É óbvio que não é possível traçar a árvore genealógica de Cristo, que a Opus Dei não anda matando pessoas e os arquitetos das catedrais góticas não se inspiravam em úteros femininos. Mas este é o segredo da obra. Seu raciocínio fantasioso, sem utilizar qualquer referência bibliográfica ou nota de rodapé, provocou um debate mundial, que só fez engordar os bolsos do autor.
Parece que os relatores do Código Florestal se inspiraram mesmo em Dan Brown. É incrível anotar as estratégias de argumentação. Sem qualquer base científica, utilizando sombrios cenários mundiais de fome e verossimilhanças com países do outro lado do mundo, os interessados no Projeto de Lei, que altera nosso Código Florestal, vêm conseguindo derrubar a crença na importância de nossas florestas e nas conquistas e avanços legais para a proteção ambiental deste país.
Através da pura ficção, a floresta vem sendo apresentada como entrave econômico, como vilã da inflação e futuramente da fome mundial. A premissa é de que a produção de alimentos e principalmente os lucros no campo dependem exclusivamente do aumento da área cultivada. Por ser o Brasil o detentor das últimas áreas agricultáveis do planeta, deveria disponibilizá-las para atender a crescente demanda mundial, em um ato de altruísmo internacional. Essa premissa atraente, mas irreal, não seria mais útil depois que a última área agrícola fosse aberta. Comeríamos então o que? Lembro que na primeira década do século 21 (É isso mesmo, já entramos na segunda década!) optamos pelo risco de comer organismos geneticamente modificados, os famosos transgênicos, justamente para resolver este tipo de problema. Li em algum lugar, há 10 anos, que os transgênicos eram a salvação das florestas.
O que há de verdadeiro é que estamos diante de um acirramento cada vez maior na disputa pelos mercados consumidores de commodities agrícolas. A prosperidade da econômica mundial deve ainda perdurar muito tempo, o que continuará transformando os países emergentes, bem como os mais pobres. Isso colocará, na próxima década, bilhões de seres humanos entre as prateleiras dos supermercados.
Mas aí é que aparece o segredo do Código Florestal da Vinci. Um dos maiores temores dos latifundiários brasileiros, com a suspensão do desmatamento por aqui, é a perda de espaço para a carne, soja e outros produtos agrícolas americanos. Cada um dos estados produtores de grãos como o Iowa, Illinois, ou Indiana poderia lucrar entre 3 a 7 bilhões de dólares até 2030. Qual seria então a mágica americana em aumentar os lucros agrícolas onde não há mais terras a serem exploradas? A resposta não é difícil, mas necessita de investimentos, muito cérebro e inovação, algo muito mais lento do que usar a motosserra e o agrotóxico paraguaio. Por isso a reforma do Código insiste na idéia de que o espaço agrícola no Brasil é limitador da produção.
Apesar dos esforços dos últimos governos, o Brasil continua sendo recordista em concentração de terras. Não existe nada paralelo no mundo. Nenhum país detém terras agrícolas particulares tão vastas, mesmo considerando a necessidade de manutenção da Reserva Legal em qualquer percentual que se imagine.
Nosso maior rival, os Estados Unidos, estabeleceu em 1862 a Lei de Cessão de Terras, o que foi diametralmente oposto à nossa Lei das Terras de 1850. O Homestead Act se iniciou com a distribuição de terras aos imigrantes com dimensões de apenas 160 acres, algo minúsculo se comparado aos nossos módulos rurais. Isto foi determinante para a atual estrutura fundiária americana, onde predomina uma melhor distribuição de terras, e uma agricultura mais democrática, familiar e tecnológica. Em oposição, as gigantescas fazendas de gado na Amazônia têm uma das piores produtividades do mundo. Muitas foram e continuam sendo facilmente abertas na base da ilegalidade fundiária e ambiental, são montadas a partir do lucro ilegal de madeira, da corrupção e recebe tantos benefícios financeiros e proteção política que são abandonadas sem qualquer cerimônia, logo após o esgotamento dos solos. São verdadeiros garimpos de carne.
Para amenizar coisas deste tipo, o relatório do Projeto de Lei se apóia em exemplos distantes de nossa realidade, como a agricultura praticada na China. Cita o país como referência na produção de alimentos em áreas de preservação permanente, como é o caso do cultivo de arroz nos terraços construídos em encostas regadas pelas monções de verão. Porém, não menciona que o cultivo emprega mais de 4 trabalhadores por hectare, que as propriedades são coletivas e que uma população maior do que a do Brasil está envolvida na atividade. A China, que não tem muitas alternativas de espaço, já que está cercada de montanhas e desertos, tem conseguido aumentar a produção de alimentos entre 10 a 15% a cada nova invenção tecnológica. Acumulam recordes após recordes.
A obra de ficção ruralista, que usa qualquer tipo de argumento, veio com a última, alardeada faz 15 dias: de que a inflação dos preços dos alimentos viria aí com toda força, se não fosse retirado o atual “engessamento florestal”. Coincidentemente no início desta semana foi anunciado o aumento de 21,3% no preço do óleo de soja, item indispensável das panelas brasileiras. Isso ocorreu não por falta de área para o plantio da soja, mas porque os produtores preferem exportar para China. Isso mesmo! Aquele país imenso que planta em área de preservação permanente, que não tem Código Florestal nenhum e que mesmo assim, precisa importar comida.
O desafio como se vê não é o alimento, mas sim o mercado. Infelizmente a profundidade do Código Florestal, não foi compreendida pelo nosso parlamento e nem pela totalidade de nossa sociedade, que desperdiçou, durante todos estes anos a oportunidade de debatê-lo e aprimorá-lo. O fato é que nunca chegamos a aplicá-lo, quer seja pela exigência de seu cumprimento, quer seja pelas múltiplas oportunidades, inclusive econômicas, que oferece. Querem sentenciá-lo de morte sem nem mesmo ter nascido.
Se hoje temos ilegalidades, estas sem dúvida são motivadas por uma razão muito simples: a falta do poder público que jamais disciplinou a ocupação e o acesso às terras. Nesta tarefa, que começamos a praticar muito tardiamente, acabamos nos confrontando com um modelo de desenvolvimento implacável e destrutivo, justamente no momento mais capitalista da história da humanidade. O Projeto de Lei simplesmente despreza a capacidade humana em resolver problemas, em conciliar a prosperidade econômica com os recursos naturais essenciais à nossa sobrevivência. Esquece que o país pode lucrar com sua biodiversidade, com regulação do clima global, com a biotecnologia e a produção agroflorestal, tudo isso recuperando a qualidade de vida de sua população, que já não é das melhores.
Assim como o Código da Vinci, a proposta de Código Florestal não passa de ficção, seria até um entretenimento se não corresse o risco de virar lei. Se publicado, transformará a ficção em realidade, e da mesma maneira que a obra literária, encherá os bolsos dos seus autores.
Leslie Tavares, analista ambiental do ICMBio.
By: Terra Brasilis
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