quinta-feira, 6 de maio de 2010

Dialética da utopia


Por Mauro Santayana

O documentário de Silvio Tendler Utopia e barbárie é referência necessária ao exame da história contemporânea, ao lado de outros estudos marcantes, como os livros de Chomsky e de Bárbara Tuchman – sem falar nas análises filosóficas mais profundas de Hannah Arendt e dos expoentes da Escola de Frankfurt.
 Como trabalho cinematográfico, a obra de Tendler se identifica com o clássico Mourir à Madrid, de Frédéric Rossif, de 1963. Mas Silvio nos espicaça com inquietação explícita: até onde a barbárie pode alimentar-se no combate à utopia?

A discussão não é nova, mas muitos procuram evitá-la, nutridos do sumo de justiça e da busca de seus sonhos proféticos. A mais bela e forte das utopias é a do cristianismo, que nos promete a realização do Reino de Deus entre os homens. Sem ela, a vida no Ocidente teria sido insuportável, mas sua associação ao poder temporal, com Constantino e Ambrósio, trouxe o conformismo e a frustração.

Ao organizar o seu caminho, a utopia corre o risco de perdê-lo. Isso parece dar razão aos anarquistas puros do século 19, que reduziam a utopia à atualidade destruidora: toda tentativa de ordenar a vida social em estados era, para eles, violência intolerável. Tendler fala de Hitler, de Stalin, de Pol Pot, e de suas vítimas, como portadores de utopias singulares. A de Hitler, desde o início, não se dissimulava, porque o nazismo é identificado com a morte. Seu mundo ideal Hitler o desenhou a partir de Mein Kampf: um mundo dominado pelos alemães, herdeiros da Terra pela força e pela beleza, ou, seja, pela sua superioridade como animais predadores.

Quando as melhores utopias se valem da violência, a fim de se tornarem viáveis, elas se pervertem, é a conclusão dos espectadores do filme de Tendler e dos estudiosos da história. Em suma: as utopias políticas de igualdade e justiça devem ser fiéis a si mesmas, ainda que permaneçam sempre utopias, ou seja, irrealizáveis. Se assim for, cumprem o seu papel ontológico, o de, ao conservar a esperança no absoluto, permitir a realização do relativo. Ou, na linguagem de Marcuse, construir a história como a realização do possível no interior do necessário.

No seu estudo sobre o alvorecer do século 20, Bárbara Tuchman mostra como o apogeu do poder e do fausto do Império Britânico, durante a hipócrita sociedade vitoriana, correspondeu à mais dramática situação de seus trabalhadores. Trinta por cento dos ingleses viviam em pobreza inimaginável, apesar do saqueio colonial, trabalhando sete dias por semana, de 12 a 16 horas por dia, dizimados pela tuberculose, enquanto nos palácios ducais as recepções perdulárias e insolentes se repetiam. Quando os trabalhadores começaram a organizar-se, o governo ameaçou excluí-los de tudo, e importar mão de obra chinesa, quase escrava. Foi exatamente nesse período que os anarquistas passaram a agir: seu terrorismo era a resposta da justiça utópica contra as pétreas estruturas do poder. Em menos de duas décadas, reis, rainhas, duques, primeiros-ministros europeus e o presidente dos Estados Unidos, McKinley, foram assassinados. Os anarquistas atuavam quase sempre sozinhos, ou associados a dois ou a três companheiros, quando muito.

O documentário de Tendler se encerra com uma nota forte de esperança, que se funda na experiência. Mesmo tendo sido o século mais sangrento da História, com mais de 60 milhões de mortos nas guerras sucessivas, os últimos cem anos contribuíram para a libertação dos homens, embora novas etnias sociais, como as dos moradores de rua, tenham surgido da economia neoliberal, essa teologia dos banqueiros. Tendler cita como sinais da esperança a eleição do operário Lula, no Brasil, e a de um negro, Obama, para presidir os Estados Unidos.

As utopias, em todos os tempos, são a denúncia da injustiça e o ânimo para a resistência. Elas se realizam pouco a pouco; a cada passo trazem novas esperanças e se distanciam, como as linhas do horizonte, quando delas nos aproximamos. São inalcançáveis, como os arcos-íris. Ao mesmo tempo, suas conquistas açulam as contrautopias, para a violenta reação que conhecemos. Nesse jogo dialético entre a barbárie e a utopia, se faz a história, com a grandeza e a miséria da condição humana.

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