Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruçam sobre questões relativas a pobreza e a miséria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemática da desigualdade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos.
A escolha já foi mais difícil de ser justificada. Desde que o francês Thomas Piketty tornou-se um best-seller com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários países, o que ocorre no topo da pirâmide social global tem ganhado um pouco mais de espaço nos debates de economistas e sociólogos - ao menos no exterior.
Para Cattani, no Brasil a situação é um pouco diferente da de outros países, porque aqui ao menos se avançou no combate à pobreza. "Mas só isso não basta. Precisamos reduzir a distância entre ricos e pobres para termos uma sociedade equilibrada, com qualidade de vida e sem violência", defende.
Em A Riqueza Desmistificada (
BBC BRASIL: O que o caso Eike Batista diz sobre o modo como encaramos a riqueza em nossa sociedade?
Cattani - Eike teve uma ascenção meteórica que envolveu o uso de recursos públicos e, aparentemente, também informação previlegiada. Mas havia um certo deslumbramento da opinião pública por ele. No auge de sua carreira, centenas de pessoas pareciam dispostas a pagar US$ 1.000 ou US$ 2.000 para ouvir uma palestra sua. E não havia qualquer questionamento sobre a forma como seu império foi construído - um gigante com os pés de barro.
De certa forma isso ocorreu porque há um fascínio em torno da riqueza, um deslumbre. Os grandes empresários, executivos, e ricos de uma maneira geral são tratados como superiores.
É natural que a riqueza seja vista como algo positivo, que todos almejam. Isso é até legítimo. Mas esse deslumbramento tem impedido uma análise mais rigorosa sobre como algumas dessas fortunas são construídas - o que pode envolver processos abusivos e predatórios, monopólios, vantagens junto ao poder público e outros subterfúgios, como no caso de Eike.
BBC BRASIL: Por que o sr. escolheu estudar os ricos?
Cattani
Os pobres são milhões mas têm um poder mais limitado, não estão organizados, estão sob a influência dos meios de comunicações. Às vezes, meia dúzia de megaempresários influencia decisões econômicas que alteram a vida de todos.
Alguns dados apontam que 1% da população controla de 17% a 20% de toda riqueza nacional. E os ricos, como os pobres, não são autorreferentes ou autoexplicativos. Ou seja, a riqueza ajuda a explicar a pobreza - e vice-versa. Por isso, temos de entender como se estrutura essa sociedade de alto a baixo. Não que os estudos sobre os pobres não sejam importantes, mas eles precisam ser complementados com análises de economistas e sociólogos sobre o topo da pirâmide - e sobre de que forma esse topo está acumulando sua fortuna.
BBC BRASIL: Por que é tão difícil estudar o topo da pirâmide social?
Cattani - A riqueza é tratada em nossa sociedade como um objeto de veneração, um totem, algo superior que precisa ser respeitado. É um tema proibido.
Além dessa dimensão ideológica, há as dificuldades práticas. Os pobres são acessíveis. Os pesquisadores podem entrar em suas casas e fazer as perguntas mais inconvenientes sobre todos os aspectos de suas vidas. Eles respondem porque esperam que isso possa ajudá-los a melhorar a sua situação.
Já os multimilionários não respondem às pesquisas porque não têm interesse em informar sobre a origem e a exata dimensão de sua riqueza. Não querem que ninguém vá bisbilhotar seu patrimônio. E o resultado é que os dados estatísticos sobre eles são extremamente fracos. Não dá para confiar apenas na declaração de imposto de renda - até porque poucos ricos são assalariados. E é difícil obter dados sobre o patrimônio. Muitos multimilionários mantêm parte de sua riqueza no exterior - têm imóveis em Paris, Londres ou Miami e escondem fortunas em paraísos fiscais.
Para completar, eles são protegidos por mecanismos legais e jurídicos, como o sigilo bancário e de declaração do imposto de renda.
BBC BRASIL: Piketty tenta há alguns anos estudar o Brasil, mas um de seus colaboradores relatou a BBC Brasil ter dificuldade em acessar dados da Receita Federal...
Cattani - Acho que no Brasil há regras específicas que garantem o sigilo desses dados e pouca colaboração das autoridades.
BBC BRASIL: Quem são esses ricos?
Cattani - É difícil quantificar isso. No Brasil, em geral as pesquisas demográficas e sociais estabelecem um patamar de renda de R$ 6 mil, às vezes R$ 10 mil por mês - elas dizem: todo mundo que está acima disso é rico, é classe A. Mas precisamos estabelecer melhor as diferenças dentro desse grupo. Quem ganha R$ 6 mil por mês pode ter um bom padrão de vida, mas seu poder e o impacto na sociedade é muito diferente do que quem ganha centenas de milhares de reais.
A partir de um certo patamar, o indivíduo em questão dispõe de uma corte de serviçais, assessores tributaristas e advogados para ajudar a multiplicar sua fortuna, assessores de marketing pessoal e institucional. Faz parte do topo da pirâmide que verdadeiramente tem poder. No caso dos super-ricos eu trabalho com um percentual de 0,1% da população adulta, por exemplo.
BBC BRASIL: O sr. menciona no livro a série de TV Mulheres Ricas, de 2012. Temos os colunistas sociais, revistas sobre ricos e famosos ... Até que ponto o mundo dos super-ricos está mesmo oculto, como o sr diz?
Cattani - Um famoso apresentador de TV pode tirar uma foto em seu iate para mostrar como é bem sucedido. Mas essa publicidade é pouco relevante - e eles só mostram o que interessa. O próprio Eike era uma excessão. Há toda uma camada de ricos do setor financeiro, do agronegócio que são discretissimos, não tem interesse nenhum em se mostrar. Circulam incolusive em outra esfera, internacional.
BBC BRASIL: Afinal, há algum problema em ser milionário ou bilionário? Não é "justo" que um indivíduo talentoso e trabalha duro possa gozar dos frutos de seus esforços?
Cattani - A partir de um certo nível muitas fortunas não tem mais origem no empreendedorismo, mas em situacões de poder. É esse o caso dos monopólios, por exemplo, que reduzem a eficiência da economia como um todo. Ao anular a concorrência, um determinado grupo impõe seu preço, sua prática de negócios, se vale de mecanismos tributários para aumentar sua riqueza.
BBC BRASIL: O Brasil é um dos poucos países em que a desigualdade de renda teria diminuído nos últimos anos. Estamos no caminho certo?
Cattani - Estamos no caminho correto das políticas públicas para redução da pobreza, mas as distâncias entre os ricos e os demais ainda são imensas. Há muito a fazer no tema da concentração de renda.
O problema é que quem está no topo da pirâmide quer manter seus privilégios. No Brasil, o pobre paga proporcionalmente mais imposto, por exemplo. Não há impostos sobre heranças e doações, como em muitos países desenvolvidos. Também não há imposto sobre dividendos e rendimentos do capital. Quem ganha milhões com dividendos não paga nada, enquanto um assalariado a partir de dois mil, três mil reais já paga imposto de renda. Precisamos de uma reforma na área tributária, além de um combate mais firme a paraísos fiscais.
BBC BRASIL: Por que é importante combater a desigualdade? Não basta combater a pobreza?
Cattani - Enquanto não avançarmos nessa área, não teremos uma sociedade mais equilibrada, com mais qualidade de vida e no qual todos tenham boas oportunidades de trabalho para desenvolver suas capacidades. Há estudos que mostram que a violência está diretamente relacionada às distâncias sociais, por exemplo. Além disso, a partir de determinado patamar, a concentração de renda prejudica a eficiência de uma economia, tira dinamismo do mercado interno. É melhor ter uma fortuna reinvestida na produção, gerando emprego, do que imobilizada em uma mansão luxuosa ou em contas no exterior."
Nenhum comentário:
Postar um comentário