O Conselho Nacional de Política Energética assegura que Belo Monte será a única usina hidrelétrica construída na bacia do rio Xingu. Mas o professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e ex-assessor do Ministério de Minas e Energia, Célio Bermann, (foto), afirma que o empreendimento não será viável sem a construção de mais quatro usinas na mesma região, necessárias para aumentar a vazão das águas e, portanto, à produção energética de Belo Monte.
O projeto atual da hidrelétrica prevê uma capacidade de produção igual a 11 mil MW/h. Para se ter ideia o potencial instalado de Itaipu, atualmente a maior usina hidrelétrica do mundo, é de 14 mil MW/h. O problema, explica o professor, é que a capacidade de Belo Monte só poderá ser aproveitada durante 4 meses do ano, quando o volume de águas é maior, em decorrência do regime de chuvas. No restante do ano, a hidrelétrica oferecerá 1 mil MW/h, portanto 10% do seu poder original. Logo, a capacidade instalada média anual será de 4500 MW, que corresponde a 39%, abaixo da medida de produção das demais usinas do país, de 55%......
“Há uma concepção que procura atender a questão ambiental e acaba penalizando o projeto. Assim, a regulamentação da vazão não será conseguida sem construírem quatro usinas acima do Rio Xingu”, completa.
O professor afirma não ser contra a utilização do potencial hidrelétrico da região Norte do país e defende a rediscussão do projeto de Belo Monte, colocando as questões sociais e ambientais à frente da necessidade de atender a demanda energética das indústrias de base, que hoje respondem por 30% do consumo de energia elétrica do país.
Acompanhe a entrevista.
O PDE estima que em 2030 teremos que dobrar a produção de energia para poder acompanhar a demanda. Sabemos, ao mesmo tempo, que 50% do potencial hidrelétrico do país está concentrado na região Norte, na Amazônia, como poderemos resolver isso sem construir usinas do porte de Belo Monte?
A demanda é caracterizada, principalmente pelo aumento do desempenho econômico, da produção, de setores industriais que consomem muita energia – estou falando em cimento, aço, alumínio, ferro ligas, papel e celulose, que são os setores que consomem hoje 30% da energia consumida no Brasil. Se eles crescem, puxam a demanda. Portanto, essa previsão se dá em função, principalmente, da economia brasileira e de sua natureza intensiva em energia, e não por um aumento da capacidade do poder aquisitivo da população em função da melhoria da rende e da melhor qualidade de vida.
Logo, a questão deveria ser: será que vamos precisar mesmo aumentar a capacidade de produção até 2030? Ou a atitude mais adequada é rever o perfil industrial brasileiro? Não estou falando em fechar essas indústrias, mas todas elas têm previsão de crescimento que puxa a nova demanda.
Se pensarmos, até 2030, teríamos tempo para rever esse modelo?
Realmente a mudança não pode ser feita do dia para a noite. Mas nós estamos falando num horizonte de 20 anos, 2030. A política industrial no Brasil simplesmente deixa de realizar esse debate profundamente, de extrema dependência da produção industrial brasileira, baseada em bens primários de baixo valor agregado, que demandam muita energia. E aí a opção da hidroeletricidade dos rios da Amazônia passa a ser apresentada como a melhor dentre outras que poderiam ser verificadas.
Devemos reorientar nossa economia de forma a reduzir a necessidade de novos investimentos para a construção de plantas de geração de energia elétrica. No caso, a hidroelétrica é considerada a fonte com menor custo de geração – esse tem sido o ponto de vista que norteia os leilões de energia e toda a política de expansão da oferta, atualmente colocada em prática pelo governo Lula e governo Dilma.
Esta energia produzida numa região de fragilidade ambiental e social, como é o caso da Amazônia, se for tratada de forma adequada, em que os investimentos necessários para reduzir o processo inevitável da degradação ambiental e deslocamento compulsório das populações, forem efetivamente feitos, vai acabar resultando num custo que acaba tornando competitiva outras fontes de energia, inclusive as fontes chamadas de alternativa.
E qual seria essa conta?
De forma nenhuma eu tenho a posição de que não vamos construir usinas hidrelétricas na região amazônica, mas há necessidade de incorporar nesse investimento as questões de ordem ambiental e social que não são levadas em consideração.
O que quero dizer com isso é que algumas usinas hidrelétricas na Amazônia poderão ser feitas desde que tenham maior rigor às questões sociais e ambientais, lembrando que os custos que envolvem uma gestão adequada do rio, da manutenção da biodiversidade, o deslocamento compulsório das populações, variam de situação.
Chegando nesse ponto dos custos, as empresas que abandonaram o projeto dizem que a ordem de grandeza é de 30 bilhões e o PDE estima o custo total em 20 bilhões. Isso significaria que o custo da energia seria equivalente a quanto?
O custo de Belo Monte, o valor do leilão foi da ordem de 78 reais o 1000 kW/h, preço vencedor no leilão que tem 49% de participação da Chesf. E agora tem toda uma discussão de reorganização do consórcio, com a saída da Bertin. Mas basicamente são principalmente essas indústrias elétrico-intensivas que estão buscando essa participação, com um custo de energia que não vai cobrir o investimento.
Para conseguir superar isso, o governo determinou, em novembro do ano passado, que a Eletrobrás, empresa pública, comprasse a energia produzida em Belo Monte há um preço de 120 reais o MW/h. E esse sobre-custo será pago pelo tesouro nacional. O empreendimento foi colocado num patamar, no eleição, absolutamente irreal. Fazendo as contas se descobriu que era inviável o empreendimento. A estratégia foi, portanto, determinar que a Eletrobrás seja compradora da energia e com isso assegurar a rentabilidade do investimento. O sobre-custo, vai cair nas costas de quem? Das empresas de transmissão, de distribuição, aos consumidores finais? Essa é uma questão que não está determinada, mas no meu ver vai recair sobre o consumidor final.
Voltando a questão onde disse que existe uma necessidade de revisão do modelo industrial brasileiro. Belo Monte terá um potencial de 11 mil MW, apenas atrás de Itaipu, que produz 14 mil MW. Se não conseguirmos fazer essa revisão em 20 anos e de fato precisarmos construir usinas de grande porte para atender a demanda, Belo Monte não será importante para matriz nacional?
O problema central de Belo Monte é que ela tem uma capacidade de 11 mil MW, o que o projeto indica, mas que só estará disponível 4 meses por ano. A camada de energia que está disponível para geração ao longo de todo o ano chega no mês de outubro a um pouco mais de 1 mil MW, porque o empreendimento não tem a regularização da vazão, não é um grande reservatório que acumula água independente do regime hidrológico. Há uma concepção que procura atender a questão ambiental e acaba penalizando o projeto. Assim, a regulamentação da vazão não será conseguida sem construírem quatro usinas acima do Rio Xingu.
E você acha que isso acabará acontecendo?
Acho que é inevitável para poder assegurar a economicidade do aproveitamento. Eu me bati na época pela redução do porte de Belo Monte de forma a adequar a capacidade de geração para todo o ano. Isso não foi considerado.
No final das contas se o projeto original de reservatório e 1.200 km2 fosse mantido, seria melhor?
O problema não é o tamanho. O reservatório inicialmente estimado, de 1.200 km2, foi reduzido para 516 km2, embora na licitação o valor é de 628 km2. Aliás, um ponto que não foi explicado, é por que o Estudo de Impacto Ambiental indica uma dimensão (516 km2) e a licitação da obra, o leilão ocorreu, foi realizada com outra indicação de tamanho de reservatório (628 km2).
Bom, mas voltando ao problema de vazão, isso acontece porque serão construídos dois canais cujo volume de terra será equivalente a um Canal do Panamá. É uma questão de engenharia, de física, a água que inicialmente iria cobrir essa extensão de 1.200 kn2 será engolida por esses canais, por isso a redução da área reservatório em praticamente metade.
Isso resolver parte do problema ambiental, mas não resolve problema da regularização da vazão que só é obtida com um barramento que segure a água rio acima e libere essa água de forma regular durante o ano todo rio abaixo. Vai depender, simplesmente, do regime de chuvas. E a gente sabe que chove muito na região de outubro, janeiro, fevereiro e março, porque nós estamos num rio cujo o manancial é do Planalto Central, então a chamada complementação hidrológica com os rios da Amazônia também é uma ficção do governo, não é tão acentuada.
A construção de Belo Monte vai ser muito pouco significativa para o sistema, em função do regime hidrológico. Mas, ao mesmo tempo em que há essa capacidade de geração durante esses quatro meses de alta pluviosidade, vai chegar os meses de setembro, outubro, e a água para geração de energia elétrica vai poder rodar apenas 1 mil MW, não mais do que isso, ou seja 10% da capacidade inicialmente instalada.
Um argumento utilizado pelo governo, é a tal da capacidade instalada média de 4000 a 4500 MW de potencial, calculado para apresentar a produção anual de Belo Monte, que corresponde a 39% da capacidade instalada que a usina terá. Mas isso também é uma situação inadequada.
*A capacidade média de produção das usinas hidrelétricas brasileiras é de 55% em relação ao potencial nelas instalado.
Daí a gente partiria para a ideia de outros empreendimentos para complementar a oferta de energia durante o ano, por exemplo, usinas termelétricas?
Não. São quatro usinas hidrelétricas que estão previstas para serem construídas acima, que o Conselho Nacional de Política Energética afirmou, numa resolução que foi tomada há dois anos, de que só iria construir Belo Monte. Mas sabemos que essas decisões podem ser mudadas.
Essas outras usinas vão regularizar a vazão, não complementar o sistema, para que a capacidade instalada de Belo Monte possa ser usada de uma forma mais regular do que o projeto de uma só usina. O problema é social, porque essa região em que está sendo prevista outras usinas é a área de ocupação indígena.
A oposição indígena hoje a Belo Monte, também se dá em função da previsão de que a primeira usina será o início de outras que vão, fatalmente, colocar em questão o modo de vida da população indígena daquelas populações. A manifestação da OEA [Organização dos Estados Americanos] é justamente em relação a isso. A avaliação hoje é que algo em torno de 25 mil pessoas vão ser deslocadas pelo empreendimento de Belo Monte. E não há nenhuma sinalização para onde essas populações serão realocadas e se vão receber indenização, porque a indenização só é assegurada aos proprietários de terra e 80% dessa população é posseiro e não tem regularização da propriedade.
Esta é uma situação acaba limitando a possibilidade de uma exploração adequada do potencial hidrelétrico brasileiro.
Você disse que não é de todo contra o aproveitamento do potencial hidrelétrico do Norte. Tem algum lugar em que entende que seria possível aproveitar esse potencial sem os problemas ocorridos em Belo Monte?
Todos os projetos hidrelétricos vão fatalmente resultar em conflitos. O problema é como esses conflitos serão gerenciados, de que forma o pleito dessas populações atingidas vai ser incorporado, se haverá uma política, que não é de estado, mas dá empresa que assume o compromisso de fazer os investimentos para redução da perda de biodiversidade, do gerenciamento adequado do reservatório e o assentamento e recuperação de vida dessas populações.
Fazendo a consideração adequada das questões ambientais e sociais, afinal de contas a energia que vai ser gerada, que pode satisfazer a demanda de indústrias ou, eventualmente, da população, significa a perda das condições de vida da população. Não podemos reproduzir a situação de décadas de descompromisso dessa população.
Não a toa existe o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB)...
O MAB procura de forma organizada solucionar esses problemas, mas a situação ainda é extremamente dificultosa. O passivo ambiental hoje das hidrelétricas envolve população desassistida que vivia bem antes das barragens, mas hoje depende de cestas básicas para se manter, em situação absolutamente condenável do ponto de vista dos direitos humanos.
O professor diz que a indústria utiliza intensivamente a energia. Como o Brasil, ainda na sua qualidade de continuar fundamentando sua economia em produtos básicos, não muito industrializados, pode usar com menos intensidade a sua energia?
No início você também comentou que demoraria muito para o Brasil reorganizar a sua indústria. Vamos relembrar o que o Japão fez com a sua indústria da década de 1970, início da década de 1980. O governo desse país, na segunda crise do petróleo, em que uma parte considerável da sua indústria de energia elétrica era produzida de derivado de petróleo, reuniu a empresa de alumínio, os trabalhadores e iniciou um processo de fechamento dessas indústrias. O Japão, no começo dos anos 1980, tinha uma capacidade de produção de alumínio igual ou similar ao que temos hoje no Brasil, para se ter ideia.
Mas se nós fecharmos de repente...
Mas eles fecharam de repente. O governo japonês criou condições para requalificação da mão de obra que trabalhava nessas usinas e empresas que produziam 1,6 milhão de toneladas de alumínio e que foram fechadas num curto espaço de tempo.
Foi um entendimento de que não era mais possível manter uma produção intensiva em eletricidade com um custo de geração proibitivo.
Eles buscaram satisfazer as necessidades de alumínio primário importando de outros países. Os japoneses vieram para o Brasil e se instalaram na hidrelétrica de Tucuruí, na Albrás. Então claro que houve uma estratégia definida do governo japonês e conduzida pelas empresas do setor de alumínio daquele país importar matéria bruta, e produzir produtos de maior valor agregado. Essa ação pode também ser conduzida, se houver vontade política, no Brasil.
Eles buscaram satisfazer as necessidades de alumínio primário importando de outros países. Os japoneses vieram para o Brasil e se instalaram na hidrelétrica de Tucuruí, na Albrás. Então claro que houve uma estratégia definida do governo japonês e conduzida pelas empresas do setor de alumínio daquele país importar matéria bruta, e produzir produtos de maior valor agregado. Essa ação pode também ser conduzida, se houver vontade política, no Brasil.
Há necessidade de aumentar no país investimentos em pesquisa e desenvolvimento de forma que o Brasil ganhe condições de produzir bens de maior valor agregado para consumo doméstico e para exportação.
O Japão não é rico em minérios quanto o Brasil, e mais cedo ou mais tarde teria que fazer essa modificação. Agora se o Brasil fizer essa mudança drasticamente terá que comprar de alguém o produto primário...
Nós temos uma capacidade de produção anual de 1,6 milhão toneladas, 70% sendo importada. Se nós precisamos aumentar nosso valor agregado, temos o minério, temos a bauxita, temos as refinarias para produzir alumina. Logo não vamos gastar dinheiro para importar. Não temos necessidade.
No quadro mundial prejudicaremos outros países, então?
De certa forma estamos subordinados a uma lógica de globalização que nos faz permanecer como um país rico em recursos naturais, com uma disponibilidade de hidroeletricidade elétrica invejável para produzir bens primários de baixo valor agregado. Essa é perspectiva para um projeto de país? E nenhum dos governos anteriores apontou para perspectiva de mudar, nem mesmo o governo Lula, e agora o governo Dilma. Fiz uma avaliação da política de bens primários de 2002 a 2009, e o período Lula foi um que aumentou substancialmente a produção de bens primários para a exportação.
Vi que em algumas entrevistas o senhor sugere como forma de reduzir a necessidade de construir mais hidrelétricas a diminuição de perdas no sistema. Como seria isso?
Na verdade isso acabou aparecendo em algumas publicações, que eu estaria indicando que não precisamos construir novas usinas reduzindo perdas no sistema. Não é bem assim. Temos hoje, no Brasil, perda da produção de energia elétricas de 15%, porque passa pelo sistema de transmissão, à grandes distâncias, chega às subestações, depois é distribuída nos centros urbanos. Nos países como Estados Unidos e Japão as perdas são entre 7% e 8%.
Mas nós não podemos imaginar reduzir as perdas para 7% numa situação como a brasileira, em que as usinas estão muito distancias do lugar de consumo, em especial as usinas hidrelétricas que satisfazem 75% da demanda elétrica. Enquanto que esses países instalam usinas termelétricas, localizadas próximas dos centros urbanos e industriais.
O governo sabe dessa perda de 15%. O que deveria ser feito no Brasil é um programa onde a ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica] seria responsabilizada pelo diagnóstico profundo de onde e como ocorrem essas perdas. Se conseguíssemos reduzir para 10%, ganharíamos obviamente 5%, ou o equivalente a, aproximadamente, uma usina hidrelétrica de 3,5 mil MW/h instalado. Não é isso que irá resolver o problema da demanda, mas vai atenuar com o investimento que é um quarto do que é necessário para construir uma nova usina, calculo.
Lilian Milena
By: Brasilianas.org
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