Márcia Denser*
Há alguns anos – quinze, para ser mais precisa – um amigo escritor me disse (recitou? citou?) que a velhice é um longo, lentíssimo naufrágio. Porque a pessoa não desaba de uma vez e de repente. Ela vai dando o ar da graça por indícios esparsos, aqui e ali, tão tênues que a princípio você não associa, aliás você DISSOCIA completamente tudo que diz respeito ao fato de estar envelhecendo. Quando não racionaliza. Secura no olho? Computador demais. Bico de papagaio? Hereditário. Protocolo de titânio? É a tecnologia. Histerectomia? Bobagem.
Nesse ínterim você descobre que já não tem o mesmo pique: não dá mais pra emendar noite e dia, não dá mais pra dançar tipo 18 horas seguidas, não dá mais para pedir bloody mary logo cedo, é bom parar de ser bandido. E se não é a falta de pique é a falta de saco. Fazer dietas x, y, z, ultra-radicais, tipo faquir, tanta dieta pra quê se você não vai transar com ninguém nos próximos 20 anos? Mas tem coisa boa: você também não tem mais saco para mentir 1) para os outros; 2) para si próprio. Nem saco, nem tempo, nem interesse nessa merda toda.
Sabedoria, no god, ninguém está interessado, sem contar que cultura é aquele lugar onde agora proliferam só os muito medíocres. Neguinho sem cacife nem QI pra estudar pra médico ou engenheiro ou advogado resolve fazer uma instalaçã ou ocupaçã ou intervençã ou escrever – e publicar – um livro, ou entã vira “gestor cultural” e atraçã na Adriane Galisteu, noves fora a viadagem.
Cultura definitivamente, no god, não dá ibope
Outra: não vou ficar aqui repetindo todos aqueles clichês que você ouve dia e noite há milênios sobre morte, velhice, declínio, porque a idéia é abrir caminho em direção a algo novo, algo que nem eu nem você nem ninguém sabe ainda, e a via de acesso seria a proposta de uma poética da maturidade que evoluísse – como se isso fosse possível – na corda bamba entre o sublime e o ridículo. Não. Pode ser feito.
Que fique bem claro: ISTO não é auto-ficção, tampouco auto-naufrágio, até porque escritor é aquele nadador com várias medalhas olímpicas que, de repente, chega na beira da piscina e lembra que não sabe nadar e assim mesmo mergulha e vai fundo e consegue emergir. Absolutamente só, mas vivo, porra.
Aquele verso de Neruda fica ressoando então: “Nos despimos como se fosse para morrer ou nadar ou envelhecer”, porque parece que precisamos nos despir de toda vaidade e de todo desejo – as cadeias da alma – para começar a empreender a derradeira jornada rumo aos últimos vinte anos de vida, se os tivermos. Porque teremos pouco tempo para fazer o que precisamos fazer para assim justificar nossa passagem pelo mundo. E isto é terrível, meu deus, íamos fazer tanta coisa, escrever tantos livros. Mas é quando finalmente a alma fica livre para alçar seu vôo vertiginoso que o corpo mais solicita e prende ao solo.
Na juventude, a alma ou espírito ou mente, não sei o nome exato disso a que chamamos eu profundo, mas talvez seja por isso que na juventude a mente apenas rasteja vinda lá de baixo, da treva, sem luz e sem ar, rasamente, sem sabedoria, hesita em levantar-se, o corpo poderia voar mas o coração e o espírito se deixam arrastar de um lado para o outro, atraídos por qualquer objeto idiota, qualquer um. Desde que brilhe.
Então, fico por aqui, talvez (talvez) prossiga na próxima semana.
*A escritora paulistana Márcia Denser publicou um monte de coisas. Procurem outros textos dela nesse blog com a lista completa.
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