Qualquer semelhança entre o texugo da piada e a elite brasileira é mera coincidência
Que falta ao Brasil? Uma elite e uma classe média mais competentes, mais honestas, mais democráticas. Ou, se quiserem, menos egoístas, menos individualistas, menos prepotentes. Habilitadas a entender que os interesses do País coincidem com seus próprios e que uma nação forte e independente convém a todos.
Que falta ao Brasil? Um povo mais consciente da cidadania, mais maduro, mais politizado. Ou, se quiserem, menos resignado, menos paciente, menos “cordial”. (Cuidado, revisão, cordial entre aspas, em homenagem a Sérgio Buarque de Hollanda). Habilitado a entender que o País pertence a cada um e a todos.
Seria uma questão de mentalidade, como diria aquele frequentador do Cine Oberdan, no bairro paulistano do Brás, personagem de uma anedota tão remota quanto o cinema. Ali o documentário da Universal, exibido antes do filme, ao visitar o zoológico de Edimburgo, atreve-se a focalizar o miúdo texugo, capaz de comer suas crias quando impelido pela fome. De pronto, o citado espectador, contínuo em fuga do trabalho de calças arregaçadas até os joelhos em tarde de verão, vira-se para as duas velhinhas sentadas às suas costas, e diz: “Que mentalidade...”
Repito, que mentalidade, mas não cogito do texugo. A elite brasileira, tão bem representada pela nossa mídia, continua impavidamente a trafegar pelas ideias e atitudes de sempre. As mesmas que precipitaram o golpe de 1964, o golpe dentro do golpe de 1968, o fracasso das Diretas Já, a dita redemocratização. Redemocratização? Será que já houve democracia em um País tão monstruosamente desigual?
Que mentalidade... A dita classe média, medida à base dos dados da economia, no Brasil começa por quem ganha acima de três salários mínimos. Prefiro considerá-la ao sabor da postura política, de forma ampla, nutrida pela ambição de imitar os colunáveis e os motorizados de luxo. Claro que nem todos os burgueses e remediados portam-se de acordo com o figurino ditado pelos editoriais dos jornalões e pela onipresente Veja. No entanto, boa parte deles sim. Nada disso contribui para o exercício livre e desabrido do espírito crítico.
Sim, sim, que mentalidade... Do embate dos conformismos, o da minoria e o da maioria, surge uma zona de desencontro muito mais vasta do que parece, a qual se alastra e se torna cada vez mais evidente. A adesão da minoria aos preconceitos, equívocos, vezos pueris, sem desprezar a ignorância e a vocação para o exibicionismo, continua mais ou menos intacta. Já a maioria mostra-se muito menos aturdida, muito menos desarmada, muito menos confusa e incerta.
Que mentalidade... Os donos do poder não percebem que o próprio lhes escapa entre os dedos como areia. Na história do País, há um divisor de águas. A eleição de 2002. De certa maneira, a fronteira claramente vincada entre passado e futuro independe do ex-metalúrgico e de sua esperta Carta aos Brasileiros e dos seus dois mandatos, cujos êxitos mais nítidos a minoria, aliás, não reconhece.
Um operário na Presidência da República é um peso insuportável no estômago de quem se pretende aristocrata e de quem jamais será o burguês da Revolução Francesa. E além do mais, um operário de muitos pontos de vista mais talentoso, nas áreas mais variadas, do que seus predecessores, conquanto engravatados. O povo identificou-se com Lula e se viu representado, finalmente. Consciente de sua escolha.
Há qualquer coisa no ar, algo similar, quem sabe, ao ruído que o dono da toca, bicho misterioso e insondável no conto de Kafka, começa a escutar, de início igual ao resmungar longínquo de um trovão. Estabeleceu-se naquele canto de floresta, depois de cavar fundo e abrir galerias caudalosas e bem escoradas terra adentro, e definir ao cabo e refúgio cálido, aparentemente inalcançável, para o corpo cansado depois de um dia de faina e para os pensamentos ainda acesos. Às vezes experimenta a necessidade de sair da toca para encarar a sua entrada de certa distância, protegido por um tronco, e sentir então o prazer de ter abrigo tão inexpugnável.
E eis que chega aos ouvidos deste animal não melhor especificado por Kafka o ruído distante e um arrepio lhe percorre a coluna. E assim como o ruído aumenta, e desperta ecos surdos, o medo vive também in crescendo. O baque grave e poderoso põe a vacilar as paredes da toca e acua seu dono no fundo do refúgio, não mais seguro da inviolabilidade de sua obra. De verdade, conformado com o fim próximo.
Parece-me que a minoria do Brasil está menos atenta ao desenrolar dos eventos do que o ser sem nome de Kafka. Não ouso dizer que a espera o mesmo fim da personagem do conto. Talvez esse tivesse orelhas bastante desenvolvidas, enquanto por aqui o pessoal não consegue ouvir certos ruídos. Também, que mentalidade... Lê a Veja, e disto não posso ter dúvidas. Mesmo porque, assisto ao trabalho do zelador do meu prédio nas manhãs de sábado, envolvido na distribuição de dezenas de quilos de papel inútil, andar por andar, para esvaziar o saguão abarrotado.
A campainha de alarme soou para os privilegiados e os aspirantes ao privilégio em 2002, e elevou os decibéis em 2006. Deveria ter ficado perfeitamente audível, da primeira vez, e tanto mais da segunda, que a mídia já não dispunha do alcance atingido décadas e décadas. Para não ir longe demais, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Não falarei dos efeitos da internet porque o computador me amedronta, ainda que saiba de algumas das suas qualidades. Como diz um grande jornalista italiano, Eugenio Scalfari, tento ser moderno mas não sou contemporâneo. É óbvia, decerto, no sentido de que a conclusão é inevitável, a ineficácia de uma mídia destinada a alcançar apenas a minoria. Ou não seria a minoria da minoria? E, de todo modo, que tal começar a esticar os ouvidos?
Mas que mentalidade, a minha...
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