quarta-feira, 16 de junho de 2010

De como a África do Sul vendeu-se à Fifa



O Mundial é completamente seu, Blatter já o ganhou

Contam os jornalistas sul-africanos que a suíte renascentista escolhida por Joseph Blatter (foto), presidente da FIFA, no Hotel Michelangelo de Sandton, tem um tapete vermelho diante da porta, o tamanho de um campo de futebol, uma “jacuzzi” decorada com estilos africanos e um minibar individual com cubos de gelo da água mineral da marca Levian.

O apartamento se encontra na cobertura de uma das torres do hotel cinco estrelas que domina o distrito econômico mais branco e mais rico de Johannesburgo. 


Monarca indiscutível da república mundial do futebol, o coronel construíu sua sucessão a Havelange ao trono da FIFA com os votos da Confederação Africana e a promessa (primeiro, na Alemanha em 2000 e mantida em 2004, com a presença de Mandela) do primeiro Mundial da história do continente negro. Isso explica por que ele é uma figura tão popular na região, a tal ponto que, em um almoço de gala celebrado em Johannesburgo, o presidente da África do Sul, Jacob Zuma lhe outorgou a Ordem dos Companheiros de Oliver Reginald Tambo, uma das mais honrosas do país outorgadas a personalidades estrangeiras. Tambo, junto com Mandela, foi um dos grandes lutadores contra o apartheid.
 

Vendo esse personagem, nunca falta alguém disposto a encontrar, na magnanimidade de Blatter, pulgas que desmascaram as falhas de sua mastodôntica máquina de ganhar dinheiro. Esse é o caso do semanário sul-africano 
Mail & Guardian, que nos últimos meses tratou de meter o nariz no grande negócio dos mundiais de futebol, encontrando-se com um muro elástico.

Devido à escassa colaboração do Comitê Organizador Sul-Africano (LOC), dirigiu-se a um juiz, solicitando acesso aos documentos oficiais relacionados aos contratos da Copa do Mundo, em nome da liberdade de informação. Mas, antes mesmo que o tribunal emitisse a sentença, começaram a saltar alguns detalhes embaraçosos.
 

Antes de tudo, as garantias concedidas pelo governo de Pretória à FIFA no momento da confirmação do Mundial, em 2004, são 17, confirmadas pelos diferentes ministros do Executivo conduzido naquela época por Thabo Mbeki, destroem a soberania do país, como se a FIFA fosse o Fundo Monetário Internacional. 


Para começar, tanto a FIFA como suas sociedades e delegações estão isentas do pagamento de impostos. Entre elas a Host, empresa do neto de Blatter que administrou a venda dos ingressos do Mundial, os hotéis oficiais e os pacotes de recepção (ainda que para as federações internacionais e seus amigos assegurasse um desconto de 20% em todos os hotéis). 


Não haverá restrição a ninguém quanto à importação e exportação de moedas estrangeiras. Em um país onde ninguém sem um plano de saúde privado pode ser atendido em um hospital, o governo ofereceu ao exército do coronel Blatter cobertura médica total, além de segurança privada 24 horas por dia. 


Uma parcela importante das forças da ordem foi comprometida e redirecionada para o que mais urge ao coração do chefe da FIFA: proteger a exclusividade de seus sócios comerciais, os generosos e fidelíssimos patrocinadores em termos de marketing, marcas, direitos televisivos e propriedade intelectual. No caso de controvérsias legais, a África do Sul se comprometeu inclusive a pagar à FIFA uma indenização, além dos honorários dos advogados. 


É inútil esclarecer que as causas levantadas contra os falsificadores e os vendedores não autorizados da logomarca do Mundial proliferaram: 450 na África do Sul, 2.500 em todo o planeta. Algumas das ações são realmente ridículas: um pub de Pretória foi acionado por ter pintado em seu próprio teto a Copa do Mundo; uma fábrica de caramelos por ter impresso na embalagem destes uma bola de futebol e a bandeira sul-africana. Os vendedores de bebidas fora dos estádios foram obrigados a transferir para garrafas neutras qualquer bebida que competisse com aquela  arquifamosa das borbulhas, que há 40 anos enche as arcas da FIFA. 


Contudo, o caso mais retumbante é o da Kulula, linha aérea de baixo custo, que recebeu uma carta de advertência para que retirasse imediatamente a genial publicidade veiculada nos jornais locais em fevereiro: “A companhia não oficial de vocês sabem o quê”. 


Segundo a FIFA, era uma emboscada aos direitos do autor, tendo em vista a presença de vuvuzelas, bolas e bandeiras, sobre os quais o governo suíço do futebol pretende ter o 
copyright absoluto. A coisa apareceu rapidamente no Twitter, desencadeando debates e protestos, bem resumidos por Heidi Brauer, diretora de marketing da Kulula: ´”É uma coisa exagerada acreditar que tudo o que é relativo à Copa do Mundo pertence à FIFA: as vuvuzelas, a bandeira nacional e o futebol pertencem à  África do Sul. Parece que, em troca, vendemos os símbolos e a economia ao senhor Blatter".

A Kulula finalmente retirou a publicidade, mas a raiva pelo excesso de poder concedido á FIFA está muito difundida entre as pequenas e médias empresas sul-africanas, que esperavam obter lucros com o grande acontecimento. 


Alguém lembra que muitas das ações tentadas pela FIFA há quatro anos na Alemanha ainda estão pendentes (é memorável uma ação contra um padeiro de Hamburgo, que deu a seus pães a forma da Copa do Mundo). 


E aqui volta ao jogo o 
 Mail & Guardian, ao qual um juiz da Suprema Corte de South Gauteng reconheceu o direito de ter acesso aos documentos relativos aos contratos. O Comitê Organizador, que pretendia ser um organismo privado, livre da obrigação de transparência, deverá colocar à disposição do semanário, no prazo de 30 dias, a nominata das empresas que obtiveram a concessão dos contratos ganhando milhares de rands (indicando a que preço e sob que modalidade de licitação obtiveram as concessões).

“Negar esses documentos – explicou o juiz Les Monson – permitiria aos organizadores ocultar à opinião pública eventuais casos de corrupção, violação ou incompetência. Torná-los públicos demonstrará, pelo contrário, que não houve nenhuma malversação”. 


O diretor do 
Mail & Guardian, Nick Dwes, diz que também eles, como todos os sul-africanos esperavam o Mundial com ansiedade, mas “essa vitória mostra que a liberdade de informação na África do Sul é uma lei viva e não um pedaço de papel”.

Contudo, hoje [10/6], Blatter abrirá em Johannesburgo, com magnífica pompa, o sexagésimo congresso da FIFA, para confirmar que no ano que vem ele se candidatará a um quarto mandato, já que, segundo ele, ainda não completou sua missão.


Artigo do jornalista Matteo Patrono, publicado quinta-feira passada (10) no jornal italiano Il Manifesto (de esquerda independente), muitas vezes confundido como jornal do velho PCI, dissolvido em 1991 para dar lugar a um partido social-democrata chamado Partido Democrático da Esquerda (PDS, S de Sinistra, esquerda). Este partido detém até hoje o controle do jornal L'Unità, fundado em 1924 por Antonio Gramsci, hoje, com uma linha político-editorial completamente abastardada e desfigurada.

Tradução de Renzo Bassanetti.

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