Desde os primórdios da civilização humana, temos atravessado inúmeros momentos de crise de consciência política capazes de reestruturar a nossa vida em sociedade. Não precisamos ir muito longe na história à procura de um exemplo claro desses eventos. Na famosa transição da idade moderna para a idade contemporânea, a Revolução Francesa se refletiu como a mais estrondosa proposta de reforma sociopolítica em todo o mundo ocidental. Evidentemente, na mentalidade transformadora do iluminismo europeu, o que constantemente se buscou foi a ampliação das liberdades individuais, civis e econômicas. Em essência, ser uma pessoa livre era a maior das aspirações revolucionárias.
Mesmo assim, para cada fato histórico de impulso inovador, encontramos grupos de pessoas profundamente apegados ao status quo, temerosos diante da possibilidade de terem seus privilégios dissolvidos. Podemos dizer que esses grupos carregam uma breve diferença quanto ao seu caráter reacionário: o primeiro – e o mais conservador e egocêntrico – pretende unicamente manter os moldes da sociedade em sua forma padrão, com ligeiras modificações em setores irrelevantes, sem alterar o cenário principal; o segundo grupo é o dos resignados e conformistas. Eles impedem que grandes reformas sejam desenvolvidas e testadas por causa da crença de que as coisas não podem melhorar, pois não existe nenhum “sistema” superior. Assim se justifica a proposta da resignação.
O principal argumento, tanto dos conservadores quanto dos resignados, é baseado numa compreensão vulgar do pensamento hobbesiano, que destaca o ser humano como um animal selvagem e corrupto em seu estado de natureza. Existe um sentido no qual essa afirmação de fato contém alguma verdade, mas se equivoca ao ignorar outros aspectos pouco explorados na chamada “natureza humana”, como a generosidade, a cooperação, a solidariedade, o afeto e a coragem de ajudar os mais miseráveis. Sabemos pouco sobre a natureza humana para defini-la como naturalmente má. O ser humano, esteja ele em seu estado natural ou civilizado, pode ser agente de procedimentos benéficos e também destrutivos. Temos provas suficientes para nos assegurar de que somos, ou genocidas em potencial, ou pacifistas globais. Não existe uma regra geral capaz de simplificar a complexidade das relações que nossa espécie manifesta.
No entanto, legitimar o argumento da resignação nos leva a um raciocínio bastante traiçoeiro. Por exemplo, se uma criança estivesse a ser brutalmente estuprada, diríamos algo como: “vejam bem, isso aí é a natureza humana, certo?”. Ou seja, mesmo que haja uma parcela de verdade nisso, significa que deveríamos agir assim? Deveríamos parar de combater as torturas, os massacres e as mais variadas formas de dominação? Ao longo do tempo houve um progresso notável no âmbito moral dos indivíduos, conquistas simbólicas e realmente significativas para nossa sobrevivência. Muitas pessoas, em algum momento, imaginaram essas conquistas como um prenúncio do absurdo. Foi assim com o abolicionismo e até com a ideia da democracia.
A melhor maneira de qualificar o conteúdo da natureza humana, antes de pensar em mudá-la, é observar racionalmente as experiências deixadas por nossos erros e acertos cometidos no passado, para que decidamos quais deles merecem se repetir no presente. Apenas um olhar crítico sobre as consequências dos nossos atos é capaz de nos preparar para uma compreensão do verdadeiro significado dos valores humanos.
http://www.bulevoador.com.br/2015/08/a-natureza-humana-e-ma/
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