quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Sobre a origem das coisas



Eu sou feito de restos de estrelas
Como o corvo, o carvalho e o carvão
As sementes nasceram das cinzas
De uma delas depois da explosão
(Lenine e Carlos Rennó)

Para muitos teístas, o fato de os céticos acharem que o universo e a vida surgiram ao acaso é ridículo; todavia, para esses, a crença de terem sido criados por um ser sobrenatural não é nada ridícula. Curioso, isso! Reitero: um ser (ou uma entidade, se preferirem); não uma força, posto que não se ora para uma força, mas, sim, para algum tipo de inteligência por parte da qual se espera ser ouvido — até porque, se não fosse assim, estariam cientes de estar apenas travando um diálogo interno. O fato é que esse antigo conflito de visões acaba remetendo à já tão explorada analogia do relojoeiro.

Olhamos para um relógio (uma estrutura complexa) com todas as suas catracas, molas e parafusos minúsculos, tudo organizado de forma a nos indicar as horas, minutos e segundos com uma precisão impressionante. A inferência a que somos espontaneamente impelidos parece óbvia e inevitável: uma máquina assim, tão complexa, não poderia ser obra do acaso; deve ter havido alguém (um relojoeiro) que a projetou e construiu. Tal relojoeiro, é claro, deve ser dotado de inteligência, visto que foi capaz de conceber e produzir algo de tamanha complexidade e engenhosidade.



Admitamos, pois, que esse relojoeiro, criador de algo tão complexo, dotado inclusive de atributos (como a inteligência) que faltam à sua criação, deve ser ainda mais complexo do que o relógio, propriamente dito. É uma conclusão bastante razoável. E, partindo dela, se nos voltamos para o universo e seus corpos distribuídos em pelo menos cem bilhões de galáxias, com buracos negros, supernovas, quasares, satélites, planetas, cometas, meteoros, todos com suas órbitas, sua disciplinada sujeição às leis físicas que os governam etc., visto que essas “peças” compõem uma estrutura muito mais complexa que de um relógio, é também um tanto plausível, aparentemente, a conclusão de que tampouco o cosmo poderia ter surgido sem um projetista. O universo deve ter também o seu “relojoeiro”, concluímos então.

O PROBLEMA É QUE QUEM RACIOCINA DESSA FORMA TEM DE ACEITAR DE ANTEMÃO A VALIDADE DA REGRA: TUDO O QUE É COMPLEXO TEM DE SER OBRA DE ALGO AINDA MAIS COMPLEXO.

Acontece que, por esse prisma, o universo teria de ter sido criado por algo ainda mais complexo do que ele próprio, e tal raciocínio também redundaria numa redução infinita. Se alguém acredita que um deus criou o universo, tal ente divino teria de ser, necessariamente, mais complexo do que sua própria criação, e, em sendo-o, por força da própria premissa adotada, seria inevitável a conclusão de que tampouco poderia ter surgido ao acaso, a exemplo do relógio ou do universo. Algo ainda mais complexo e inteligente do que o deus criador teria de tê-lo criado, e assim sucessivamente, ad infinitum.

LOGO, NÃO SERIA ABSURDO ALGUM INDAGAR: QUEM CRIOU DEUS? SE A RESPOSTA FOR A DE QUE NINGUÉM (OU NADA, SE PREFERIR) O CRIOU, DAS DUAS, UMA: OU DEUS SEMPRE EXISTIU (ELE SERIA ODEFAULT) OU CRIOU A SI MESMO.

Contudo, tal resposta traz outra inesquivável implicação: o mesmo poderia ser dito sobre o universo — ou ele sempre existiu (era o default) ou criou a si mesmo. É uma conclusão evidente, dado que, se as premissas valem para um ente, nada impede que valham também para outro.

Por sua vez, o ceticismo quanto à existência de um deus criador de todas as coisas procura apoiar-se em outras linhas de racionalização, particularmente no que a ciência tem a dizer sobre a questão. O conhecimento científico, em seu estágio atual, já nos permite apreciar algumas possíveis explicações sobre como o universo poderia ter surgido, sem a necessidade de um designer inteligente. Nesse sentido, cientistas como Stephen Hawking, por exemplo, já apresentaram suas propostas sobre “como o universo poderia ter surgido do nada”. E o fato é que tais ideias científicas sobre a origem do cosmo (que muitos teístas acham ridículas), mesmo que não sejam ainda a prova de como tudo surgiu, fazem muito mais sentido do que a “explicação” dos que creem que tudo é obra de um ser sobrenatural, que sempre existiu ou que criou a si mesmo, que escuta as preces de todas as pessoas, é onisciente, opera milagres e criou os seres vivos, incutindo nos seres humanos uma alma imortal.

No tocante aos seres vivos, aliás, a mesma linha de raciocínio que leva à conclusão de que um deus complexo e inteligente teria de ser criado por outro ainda mais complexo e inteligente acaba colidindo com uma das teorias mais solidamente corroboradas nas ciências de nosso tempo: a teoria sintética da evolução. Isto porque, quanto mais retroagimos na linha do tempo, mais nos deparamos com estruturas menos complexas, ao ponto de que já poderíamos pensar em ter os moneras, e não os mamíferos, no topo da cadeia evolutiva (repito, voltando na linha do tempo). Basta observamos o registro fóssil — pelo qual se constata que as camadas mais profundas do solo abrigam fósseis dos seres mais antigos —, para vermos que as formas de vida mais complexas encontram-se nas camadas superiores da estratificação (um dado que enfurece os criacionistas, a propósito), e, por isso mesmo, jamais encontraram o fóssil de um coelho numa estratificação do período Cambriano, ou fósseis de leões depositados na mesma camada em que se acham trilobitas.



A VERDADE É QUE A IDEIA DE COMPLEXIDADE GERADA A PARTIR DO SIMPLES VALE PARA A TEORIA DA EVOLUÇÃO, ASSIM COMO PARA A PRÓPRIA FORMAÇÃO DO UNIVERSO. ISTO É, INDEPENDENTEMENTE DE HAVER OU NÃO UNIVERSOS PARALELOS, COMO PROPÕE O MODELO DO “MULTIVERSO” QUE ALGUNS FÍSICOS DEFENDEM, TUDO INDICA QUE ESTE EM QUE ESTAMOS NEM SEMPRE EXISTIU.

Com efeito, graças a telescópios como o Hubble, foi possível calcular o ritmo de expansão do universo e regredi-lo até cerca de 15 bilhões de anos atrás. Por sua vez, o Grande Colisor de Hádrons europeu conseguiu criar alguns nonogramas de antimatéria, além de ter contribuído para o cálculo da massa dos buracos negros (o acelerador de partículas criou inclusive um nanoburaco que durou alguns nanossegundos). Como se sabe, a fissão nuclear gera uma gigantesca quantidade de energia (a bomba atômica é a prova), de modo que o que resta agora é demonstrar o inverso, a criação da matéria a partir de energia. Seria a inversão da equação 4/2 = 2, ou seja, matéria quebrada gera energia, para 2 x 2 = 4, isto é, energia fundida gera matéria. Isso sendo comprovado, torna-se plausível postular a energia como sendo aquilo que sempre existiu (o default). Muita gente, inclusive eu, pensava que o defaultera o vácuo; porém, as pesquisas atuais parecem apontar para a energia.

Para muitos, no entanto, tudo isso não passa de um monte de propostas “absurdas” sobre a origem do universo ou (no casa da evolução) sobre como os humanos surgiram sobre a face da Terra. Curiosamente, para essas mesmas pessoas, soa como uma ideia muito mais plausível acreditar que deus, puff, criou o universo, puff, criou o homem, puff, criou a mulher. Essa visão das coisas, aliás, é o que impede que os fundamentalistas bíblicos aceitem o fato de que o homem é fruto da evolução. Embora, quanto a isso, preciso reconhecer, haja também outros teístas que não tomam a Bíblia ao pé da letra e aceitam o fato da evolução das espécies — estes apenas entendem que deus criou a vida e o universo, e a evolução biológica, neste caso, faz parte dos desígnios divinos. Para o cético, todavia, também a postura deste segundo grupo traz à tona alguns questionamentos: porque ele faria isso? Para não se sentir só em sua singular existência? Para arrumar uma distração? Para que criar o mundo e a vida que nele há?

Por fim, eu gostaria de esclarecer dois pontos. Não estou aqui ávido por converter as pessoas (ou desconvertê-las, como me parece mais apropriado). Minha intenção foi argumentar contra algumas crenças infundadas que, direta ou indiretamente, dão suporte à idéia da existência de um ser supremo, criador do universo e da vida, e que acabam sendo, quer queiram, quer não, a base de sustentação das religiões, que tantos males espalham pelo mundo, tal como as vejo. O fato de eu não ser espiritualista não significa que desconheça o assunto. O problema com a espiritualidade é que ela se baseia em emoções subjetivas e crenças cujo objeto que colide de frente com importantes achados científicos de nossos tempos. Nesse sentido, orar a um deus, acreditar em milagres ou em vida após a morte, ou em qualquer outra coisa parecida, não corroborada por sólidas evidências empíricas, pode até ser muito reconfortante, mas…

Bule voador

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