sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Dilma entre a grande e a pequena política

Dilma entre a grande e a pequena política


O governo de Dilma está recém no começo: um mês e três dias. Avança firme, mas cautelosamente. Este é um governo que tem estratégia e projeto nacional. Projeto que define a posição do Brasil na geoeconomia e na geopolítica mundial e que valida o nosso lado interno com a necessária erradicação da miséria e da ampliação dos direitos da cidadania. Como substrato econômico, sertão relativamente consolidado, vai trabalhar para a indispensável e irredutível reformulação produtiva e financeira do país. Nesse projeto de ambição progressiva há um deslizamento visível: fazer da economia industrial, sob a liderança do Estado, o centro do desenvolvimento brasileiro. 
Significa este farol que, no jogo dos grupos sociais, Dilma vai se apoiar no capital produtivo e na população de baixa renda, aglutinando empresários, operários, trabalhadores, desempregados, a classe média possível e os deserdados do sistema para o seu apoio. Os lances da política econômica serão evidentemente para o desenvolvimento capitalista do Brasil, com alterações significativas para a população (distribuição de renda e bem-estar) e uma menor influência do capital financeiro internacional e do capital bancário brasileiro.

O problema de Dilma não está aí. Aí, ela tem projeto, tem alvos: o Brasil será um dos elementos fundamentais para a infraestrutura contemporânea do novo modelo de acumulação mundial: energia, matérias primas e produtos alimentares. Por outro lado, há todo um processo de infraestrutura, logística e urbana, para desenvolver, acompanhado tanto pela tentativa de expansão do comércio externo como pela volta do mercado interno para bens de consumo duráveis e não-duráveis. Como ornamento desse bolo, a sinalização da esteira de um possível desenvolvimento: educação, saúde, segurança, cultura. E se os ventos forem benfazejos, no caso da ciência e tecnologia, o governo poderá ter objetivos de longo alcance: avanço de processos, inovações e produtos ligados às novas tecnologias de comunicação e informação.

Esse é um projeto de Grande Política, pois supõe uma estratégia e aponta, dedo alvissareiro, para um caminho e uma trajetória muito clara. O problema de Dilma não é esse, o problema está na pequena política. Essa é aquela dos jogos vis, das propostas venais, das chantagens políticas, das disputas de cargos, das pressões partidárias. E é aí que Dilma precisa ir além do que já sabe, fazer um longo aprendizado do tecer, do costurar e do articular a pequena e a Grande Política. Como uma fúria negra ou uma dança cigana, ele passa pelo jogo habilidoso de negociar as coisas miúdas sob a ótica iluminadora da visão da política estratégica nacional. Só que nesse nível há que ter vasta experiência, pois há que saber manobrar o trânsito e o tráfico dos ministros, as sinuosidades da burocracia, sobretudo das altas esferas: Banco Central, Banco do Brasil, BNDES, estatais, etc.; há que balancear os interesses nacionais com os interesses dos capitais privados, com os sindicatos patronais e dos trabalhadores. Mas há também que saber jogar com os partidos políticos. Veja-se para efeito de pensamento. Dilma é do PT, mas o seu triunfo foi alcançado graças a Lula. As correntes querem mais e mais. Dilma, claro, armou um esquema ministerial também pensando nisso. Mas esse fato dela ter vindo do PDT conta na hora das pressões políticas do principal partido do governo. A política é a arte de saber lidar também com os preconceitos, terreno fértil do rumor, da trama e das intrigas da pequena política.

E que dizer dos outros partidos? PMDB de Temer, de Sarney, de Renan, PDMB de TODOS. Pois o Temer não quis se colocar como co-presidente do Brasil? Aqui todas pressões e todos os ardis são possíveis e são válidos no jogo político. Mas, aqui, mesmo que Dilma tenha vivido todos esses últimos anos na vivenda de Lula, a experiência deste é intransferível — “flor carnívora que não dá assim no sereno”, como dizia meu avô. Aristóteles já falava: o que nós podemos fazer por alguém é lançá-lo na mesma experiência que tivemos. Deu Lula a Dilma esta possibilidade. E então cabe a Dilma construir a sua rede de ideias e de relações e de valores que fará a abordagem pescadora dos frutos do mar. Mas há que construir no singrar as velas no oceano o talento de empolgar os ministros, de dar um norte à burocracia — na verdade, construir uma nova — de negociar amplamente com parlamentares e partidos, de aumentar a relação e a simpatia com a população.

Agora, entramos na área mais difícil do governo. A negociação no Congresso Nacional. Dilma sabe negociar com parlamentares, políticos, partidos. Aprendizado que fez como ministra. Só que agora o jogo é outro. Trata-se de uma coordenação política geral que envolve tanto os grandes projetos estratégicos para o Brasil como um projeto diplomático, como um jogo denso e árduo do Congresso Nacional, como um extenso combate de negociações sociais.. Por melhores auxiliares que ela tenha — e ela tem — há algo que é peculiar ao cargo de chefia, principalmente no presidencialismo: a sua solidão. Parece banal e simplória essa idéia. Mas não é. Porque em política todos tem interesses, tem visões alternativas, mesmo os seus auxiliares mais diletos. Assim, muitas decisões, muitos lances, muitas iniciativas terão que ser decididas no recanto do cenário dos seus próprios pensamentos. Só ela pode decidir, só ela pode arbitrar, só ela pode usar o seu poder. E como nos mostrava Maquiavel, a melhor decisão não é a que atende as razões do coração, mas as razões de Estado, que são peregrinas, contundentes e robustas. A presidenta na política não tem amigos. Tem conflitos a manobrar, tem discórdias a resolver, tem dilacerações a postergar, tem propostas a construir, tem adversidades a dissolver, tem divergências a superar. É esse jogo que ela vai ter que aprender profundamente. O que significa dizer que ela terá que articular e moldar, conceber e imaginar, agir e suspender ações às flutuações da grande com a pequena política. Pode ter conselheiros, pode ter assessores, pode ter ministros, pode ter companheiros fiéis, mas o gesto definitivo é seu. O lance de dados. A aposta. A decisão, mesmo quando a favor da pequena, é sempre hegemonizada pela Grande Política, que é o caminho de Longo Prazo do Brasil.

Mas, no fundo, no fundo, esse jogo que é de ganho e de perda e que supõe o saber das paixões humanas — logo das tarefas e dos jogos políticos — só ela pode avaliar na sua trajetória para realizar a estratégia nacional e a sua estratégia política. Estamos, portanto, no coração do sucesso de Dilma. Ou sabe que no limite está só e tem sempre que decidir em função da Grande Política ou o governo diminui, vacila e desmaia e cai na miudeza e no balcão de negócios. É fácil saber como se resolve a disjuntiva: a primeira parte, a Grande Política, prepondera sobre a segunda. Só que esta é uma habilidade que tem que ter talento, excelência, domínio das suas emoções, cálculo político, força, capacidade de organização, imantação dos múltiplos níveis de adesão — do ministério à burocracia, do empresariado aos trabalhadores — e habilidade política para aglutinar políticos e partidos. Mas falta um ponto, e ponto decisivo. O que sustenta, no limite, um presidente é o povo. E essa distância entre o presidente e o povo, que é imensa, por causa da estrutura da democracia moderna, para ser atravessada depende muito da imaginação, da audácia, da tenacidade, do trabalho do dirigente para conectar bases políticas e sociais com tal finalidade. E essa estratégia só a presidenta pode ter, pois o seu olhar é o mais alto do que todos os demais. Se esse olhar fracassar, o país também se ferra. Essa solidão é o desafio de Dilma.

Seus primeiros passos são animadores: a constituição de um núcleo de governo de sua escolha pessoal: Fazenda, Banco Central, Planejamento, Casa Civil; a vitória com maioria da base do governo na presidência da Câmara e do Senado; uma presença discreta, mas civilizada na reabertura do Judiciário; e uma abertura diplomática significativa para a Argentina, comovente e promissora, envolvendo discussões de política mundial e regional, direitos humanos e uma colaboração pública e de negócios.

Que Dilma esteja mais para Getúlio do que para Dutra, mais para Juscelino do que para Jânio, mais para Lula do que para FHC!


Eneas de Souza

Fonte:Sul21

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