Os grandes eventos da história mundial foram, quase sempre, imprevisíveis. Os analistas podem perceber indícios aqui e acolá, mas nunca conseguiram prever quando o evento acontecerá, e muito menos qual profundidade terá. Quem diria, há um mês, que um evento na Tunísia provocaria o impressionante levante do povo egípcio contra o ditador-mas-amigo-dos-EUA, Hosni Mubarak? Quem diria que o povo, dois milhões de pessoas, se reuniria numa única praça exigindo a saída de Mubarak? Hoje, quem ousa dizer quando e como o levante acabará?
Mas aconteceu. Espontaneamente, sem lideranças claras, o povo egípcio ocupou as ruas exigindo a renúncia do ditador, chamado pela mídia ocidental de “presidente”; afinal, Mubarak é quase um amigo de infância dos Estados Unidos e é o terceiro maior destino da ajuda internacional de Washington, com 1,3 bilhão de dólares anuais. Para outros não-tão-amigos, o tratamento dispensado pela mídia ocidental é, digamos, um pouco mais rude.
Tão rude quanto as bombas de gás jogadas pela polícia egípcia contra a população, ou quanto os vôos rasantes de caças militares, na demonstração de força do regime de 30 anos. Um detalhe: os caças e as bombas são “made in USA”, adquiridos com aquela ajudinha da Casa Branca.
Na tentativa de se manter no poder, o governo egípcio derrubou o acesso a redes sociais, fechou a internet e perseguiu jornalistas de todo o mundo. O “democrata” Mubarak tenta, a todo custo, calar as vozes dissonantes. Ah, se fosse o Evo Morales!
Neste momento, quando os arautos do “mundo livre” deveriam estar gritando pelos 5 mil alto-falantes contra Mubarak, Hillary Clinton, Henri Kissinger e Tony Blair pediam paciência à população egípcia (Trinta anos não foram suficientes?), e moderação ao “presidente” Mubarak, e pedindo que este, sim ELE, Hosni Mubarak, liderasse a transição.
Por que no Egito é tão diferente? A resposta é uma tanto quanto cínica: Realpolitik. Nenhum Estado age pensando nos direitos humanos, ou pela “democracia”. Age por seus interesses econômicos e políticos, que podem coincidir com uma agenda humanista, mas não necessariamente.
Para os EUA, Mubarak é mais que um amigo, é quase um fantoche. É vendido como a única possibilidade de “moderação” no maior país árabe. Velha tática do medo, as opções postas na mesa pelo discurso oficial e seguido pela mídia em geral é: ou Mubarak ou o fundamentalismo islâmico, encarnado na Fraternidade Muçulmana.
Que a Fraternidade Muçulmana é uma concorrente forte nas próximas eleições é um tanto quanto óbvio. Também óbvio que pode ganhar as eleições. Neste caso, sim, há o risco (não a certeza, afinal nenhum grupo é coeso) de o Egito caminhar na direção de um Estado teocrático muçulmano, o que seria um retrocesso enorme. Mas, nas revoltas, nada é dado de antemão e o processo é construído dia a dia, pelos atores envolvidos. A dicotomia, por enquanto, é muito mais um discurso que uma realidade iminente.
Entretanto, quanto mais a situação se radicalizar, mais espaços se abrirão para os fundamentalistas. Os eventos da madrugada desta quinta-feira, quando milicianos a soldo do governo atacaram os revoltosos na principal praça do Cairo, enquanto o exército assistia a tudo, passivamente, parecem indicar que é exatamente isso que o governo quer, deixar o circo pegar fogo para que ele seja a única saída possível. Vendem o caos para entregar a ordem.
Mas o que realmente assusta é o poder de contágio que uma revolta popular no Egito legará, um efeito dominó no mundo árabe, que já ameaça governos da Jordânia e do Iêmen. Seria o pior dos pesadelos dos EUA, se a onda revolucionária chegar à Arábia Saudita, o maior aliado árabe do “ocidente” e o maior produtor mundial de petróleo.
Significaria o fim da política imperialista dos EUA na região, e o mundo inteiro se reconfiguraria. É por isso que as versões gentilmente ofertadas tentam acabar com a revolta no Egito, seja insistindo na tecla que Mubarak é “presidente”, seja ameaçando que, sem este fantoche, o mundo estará pior, nas mãos dos temerosos fundamentalistas islâmicos, o bicho-papão moderno. Mas tudo isso é uma falsa dicotomia, e reduzir lutas políticas ao bem contra o mal é tão profundo e verdadeiro quanto um desenho de He-Man.
Assumindo o risco, aposto na primavera árabe, quando eles, autonomamente, se livrarão dos seus tiranos e assumirão as rédeas dos seus destinos, doa a quem doer. Ou, como disse um cientista político egípcio radicado em Oxford: O melhor para o Egito é aquilo que o povo egípcio quiser!
De alguma maneira, ou de qualquer maneira, a primavera insiste em nascer para aqueles que, durante trinta anos, conviveram com um governo tirânico, corrupto e assassino. E ela nascerá. Se feia ou bonita, depende apenas do povo egípcio.
O Esquerdopata
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