quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Cidade e qualidade de vida

Frei Betto, Adital

“Se considerarmos que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, a cidade é uma invenção relativamente recente. Durante milênios nossos ancestrais viveram como nômades coletores e, aos poucos, as técnicas de reprodução dos alimentos os fixaram como agricultores e pecuaristas. Havia, naquele longo período –como ainda hoje nas comunidades indígenas tribalizadas– relação direta, e até venerável, entre o ser humano e a natureza. Nossos antepassados se alimentavam sem alterar ecossistemas, biomas, biodiversidade.

Essa relação se altera com o advento das cidades. E um dos relatos mais significativos de como isso ocorreu é o episódio bíblico da Torre de Babel (Gênesis 11, 1-9), joia literária em menos de dez versículos.

Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica "bil”, que significa "confundir”. Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. "Isso é o começo de suas iniciativas!” – disse o Senhor. "Agora nenhum projetoserá irrealizável para eles.”

Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio "todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras.” Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um – o cacique, o chefe do clã, enfim, o poderoso -, era o ponto de vista de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.

A invenção do tijolo e da argamassa provoca um movimento migratório do campo para a urbe. Os humanos decidem "construir uma cidade” – Babel.

O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: "Para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra.” Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama, possuir um nome sobreposto aos demais, e permanecer segregado, seguro.

A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato.
Desprendido do ciclo da natureza, o ser humano já não funda sua identidade nos vínculos comunitários da sociedade agrária. Sua consciência se personaliza, ele se torna senhor do próprio destino, livre das mutações ecológicas que antes criavam nele a sensação de fatalidade e de temporalidade cíclica.”
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