Tem gente que ainda acha que as ideologias acabaram. Uns o dizem com os lábios retraídos num esgar de ironia, indicando o puro oportunismo da afirmação: não crêem no que dizem, pois sabem que a ideologia ainda existe, mas interessa a eles assegurar o oposto. Outros fazem-no com inocência, acreditando piamente que o mundo não comporta mais reviravoltas doidas.
De fato, um dos erros dos idealistas dos anos 60 foi achar que a economia dos países teria a mesma flexibilidade do cinema experimental. Não é assim, mas isso também não significa que mudanças não sejam necessárias. Até porque as mudanças são inevitáveis. Dos anos 60 para cá, o mundo já passou por tantas revoluções tecnológicas que muitos dos argumentos brandidos por quem almejava revirar as coisas pelo avesso hoje esvaíram-se junto com o linotipo, a máquina de escrever, e as saudosas cartas escritas à mão.
As ideologias não acabaram, e o próprio debate sobre a existência ou não delas, ou a importância ou não delas, é um debate ideológico. Lembro-me de Nelson Motta entrevistando Arnaldo Jabor na Globo, a respeito do filme que este último está fazendo. Sem ligação nenhuma com o tema, mas coerente com a algo bizarra obsessão de Motta em criticar a esquerda e o socialismo, o jornalista trocou figurinhas com Jabor sobre a (na sua opinião) negativa influência da ideologia sobre o cinema brasileiro. Era um joguinho de cartas marcadas. Um ping pong bobinho, anticomunista, feito para agradar os filhos do Roberto Marinho. Jabor criticou os cineastas dos anos 60 por se apegarem às ideologias.
Isso é uma baita grosseria. Claro que pode haver exageros. Houve patrulhamento nos anos 60 e 70, mas a culpa não foi da esquerda, e sim o resultado da atmosfera sufocante, totalitária, desesperada, produzida pela ditadura militar. Havia aflição no ar. Segredos em toda parte. Gente desaparecida, quiçá já morta ou sendo torturada. Natural que a intelectualidade batesse cabeça. Essa releitura conservadora dos tempos ditatoriais, que visa culpabilizar a esquerda pelo clima desconfortável da época, como se vê no filme sobre Wilson Simonal, e nos comentários de Motta, é altamente ofensiva aos ideais democráticos, violados brutalmente pelo regime militar.
A história não morre. O regime militar continuará, enquanto existir historia, a violar a democracia brasileira. Não se esquece isso, ainda mais se tratando de um fato tão recente.
O Estadão obteve, ontem ou anteontem, o programa preliminar do Partido dos Trabalhadores a ser usado na campanha de Dilma. A divulgação do texto precipitou um debate ideológico interessante, e a esquerda só tem a ganhar com isso, visto que o conservadorismo nacional, representado por José Serra e os partidos que o apoiam, continuam retraídos em termos de propostas políticas.
Formados na escola neoliberal, os tucanos se vêem acuados diante da constatação de que os brasileiros, como qualquer povo em desenvolvimento, querem um Estado forte, querem serviços públicos eficientes (o que implica em mais funcionários), e não querem mais privatizações irresponsáveis, indiscriminadas.
Desorientados, os tucanos não se arriscam a formular plataformas políticas. Não participam de nenhum debate público. Nas dezenas de conferências realizadas no país, por iniciativa não só do governo mas de inúmeras entidades da sociedade civil, os tucanos estiveram sempre ausentes. Só mostraram o bico quando a big press passou a criticar alguns pontos discutidos nesses encontros, e sempre alinhando-se caninamente, mediocremente, sem criatividade, sem culhões, à opinião dos conglomerados midiáticos.
Serra, o principal candidato da oposição, optou por um silêncio deliberado sobre qualquer questão estratégica. Em que isso contribui para a democracia? E não se trata de evitar campanha antecipada. Serra, como cidadão brasileiro, e como quadro político, tem o direito e o dever de participar dos debates públicos. Enchente em São Paulo? Tem de convocar imediatamente a sociedade para um grande esforço com vistas a minorar o sofrimento das famílias que perderam suas coisas e vivem em áreas alagadas com água fedida e contaminada.
Buraco no metrô? Igualmente deveria vir à público prestar esclarecimentos. Queda de viadutos? Onde está Serra nesses momentos?
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Na verdade, talvez haja um tipo de pendenga ideológica que tenha perdido a vitalidade, que são as acadêmicas, quase sempre pedantes e autoritárias, que pretendem impor teorias abstratas, artificiais, duras, a realidades complexas, instáveis, dinâmicas. A ideologia deve ser formada por dentro da ação política, para que tome a forma da realidade; para não se converter num invólucro bonito que não se encaixa, porém, em nenhum objeto.
*Fonte: blog òleo do diabo
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