segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Todo branco é racista?


Por Jones Makaveli, em seu blog

Um sujeito de esquerda fez uma postagem afirmando que todo branco é racista. O poste me chamou atenção. Basicamente, ele vê a sociedade dividida entre brancos e negros, afirma que todo branco é privilegiado (e induz a pensar que todo branco no Brasil é rico) e por isso será racista. A certa altura do texto ele diz que "racista é aquele que oprime e/ou se beneficia da opressão direta e/ou indireta de uma raça. É todo aquele que goza de algum beneficio da estrutura social racista!", contudo, diz que o "branco racista" pode ser aliado na luta, combater o racismo, mas mesmo assim continuará sendo racista, pois "seguirá sendo racista enquanto a sociedade assim o for. Enquanto ela o beneficiar pela cor de sua pele” [1]. Esse tipo de discurso é bem na moda na majoritária do movimento negro de base culturalista - estranho é um marxista divulgar isso.

Antes de entrar no conteúdo do texto, é necessário traçar um comentário teórico-político. A produção do conhecimento nunca é neutra. Ela é constituída por determinantes de classe, institucionais, ideológicos, econômicos e geopolíticos. Determinada teoria, tema ou abordagem ser dominante ou marginalizada nunca é produto de um confronto erudito entre os membros do campo científico, como se disputando quem tem a “melhor teoria”. Logo, o foco da crítica e da análise da questão do racismo explícita – mesmo que muitas vezes as pessoas não estejam conscientes disso – a perspectiva de classe, política e teórica. Para um marxista o foco da análise deve sempre ser como as relações materiais de produção e a dinâmica política e ideológica de uma determinada formação social condiciona a produção e reprodução de terminado complexo social em sua gênese, estrutura e desenvolvimento. Ou seja, mesmo que estudemos o racismo através dos seus efeitos em microrrelações, como na escola, nunca podemos perder de vista da totalidade da dinâmica societária comandada pela lógica do capital.

Alguém pode, formalmente, se afirmar marxista, mas na prática, isto é, em debates, produção do conhecimento e militância, está mais preocupado em que fulano “x” reconheça seus privilégios, fulano “y” não use turbante porque é “apropriação cultural”, ou fulano “z” não queria militar contra o racismo porque é branco; o marxismo desse sujeito é apenas uma palavra vazia. Esse sujeito age politicamente e pensa com um misto de liberalismo e pós-estruturalismo. É lógico que não estou cobrando uma análise marxista apurada do racismo nesse post do Facebook, mas a forma como o sujeito construiu o texto e a escolha do seu foco de “análise” é sintomático. Inutilmente podemos procurar a palavra classe, capital, capitalismo ou Estado burguês nesse texto. Dito isso podemos entrar na questão central.

Karl Marx em seu célebre 18 Brumário disse que “os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem”. Ou seja, o sujeito histórico da transformação social – que é sempre a classe social – faz a história, mas sobre condições que muitas vezes escapam ao seu controle (as famosas condições objetivas).  Antônio Gramsci avançou nessa direção e criou a categoria de política em sentido amplo, isto é, quando o sujeito histórico toma consciência das suas possibilidades históricas de atuação ditadas pelas condições objetivas, deixa de ser sujeito passivo dessas condições e atua como vetor da transformação histórica. Com esses dois exemplos quero mostrar que na tradição marxista existe uma dialética entre sujeito e estrutura. As condições materiais concretas de uma época forjam o sujeito histórico, mas esse sujeito histórico não é um mero agente passivo, um eterno dominado pela ideologia e as condições dominantes, posto que se assim fosse, a mudança histórica estaria descartada. A classe trabalhadora é dominada pela ideologia burguesa (“as ideias de uma época são as ideias da classe dominante”), explorada e dominada politicamente, mas, através da sua organização política, elevação do nível de consciência e luta pode transformar as condições materiais capitalistas – ou seja, a classe obrera é produto das estruturas, mas ao mesmo tempo pode ser sua negação histórica.

Dito isso, à luz do marxismo, é no mínimo estranho alguém dizer que enquanto existir racismo todas as pessoas brancas serão racistas. É evidente, porém, que no capitalismo dependente brasileiro o racismo é um complexo social constitutivo das relações de produção e poder, e tendencialmente a imensa maioria dos brasileiros serão racistas – afinal, a ideologia dominante é a da classe dominante. Mas negar que uma pessoa – mesmo branca – possa não reproduzir práticas racistas pressupõe a impossibilidade estrutural de o sujeito histórico produzir transformações em sua forma de consciência. Isso ignora que mesmo no capitalismo as forças anticapitalistas, como as organizações comunistas, procuram criar espaços de socialização pautados em outros elementos ideopolíticos e novas práticas sociais. Não é preciso dizer, me parece, que enquanto existir o racismo, mesmo sendo parte um projeto de transformação revolucionária, o sujeito histórico viverá em constante luta contra a ideologia dominante e a superação total da hegemonia burguesia na consciência é pouco provável enquanto não se estiver no processo de transição socialista.

Mas se a superação total das formas ideológicas de consciência burguesas é possível apenas na transição socialista, isso significa que seremos racistas enquanto existir o capitalismo dependente racista brasileiro? A resposta é não! Responder sim significaria ignorar as práticas sociais concretas. Explicando. O autor do post que estamos criticando diz que todo branco será racista mesmo que não tenha práticas sociais racistas, pois “Enquanto ela o beneficiar pela cor de sua pele” será racista. Aqui temos uma antinomia. Nesse caso o sujeito não “é” racista, ele “está racista” por causa de uma estrutura racista que independente do que ele fizer o torno racista – algo como o “suporte das estruturas” bem ao gosto do estruturalismo francês.

O que quero dizer é que mesmo existindo uma tensão constante entre a ideologia dominante e as formas de consciência emancipatórias que combatem as opressões, e que essa tensão é superada nas condições materiais e não na consciência, o sujeito a ser socializado em novas práticas e conjuntos ideopolíticos pode desenvolver uma forma de consciência que condiciona seu agir de um modo a ele não ser um reprodutor de práticas racistas, embora viva no racismo. Dando um exemplo. Todo comunista passou por um processo de níveis variados de superação da ideologia burguesa para lutar pelo socialismo. Continuamos vivendo no capitalismo.Mas, mesmo assim, o comunista age como um não reprodutor da ideologia burguesa em suas microrrelações cotidianas – eu, por exemplo, enquanto professor de História não aplico métodos avaliativos supostamente meritocráticos e formas de “controle” coercitivos em sala de aula.

Mesmo que eu não tenha superado totalmente a ideologia burguesa e que exista uma constante tensão entre a perspectiva ideopolítica comunista e a ideologia burguesa na minha consciência e prática social (o que pode, muitas vezes, produzir atos incoerentes de minha parte), eu consigo, no dia a dia, manter práticas sociais de alguém que não é dominado pela ideologia dominante – considerando todas as limitações estruturais disso, é claro (se a diretora do colégio me mandar mudar o método de avaliação, mesmo eu sabendo os impactos disso, não tem o que fazer, por exemplo).

Para resumir podemos dizer que todo branco dominado pela ideologia dominante é tendencialmente racista, mas existem possibilidades histórico-concretas da superação do seu racismo nas práticas sociais cotidianas, embora que a criação de uma subjetividade totalmente livre do racismo passe por um processo radical de transformação social (a revolução socialista).

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