A defesa da “família tradicional” pelos evangélicos é uma perversão.
O cristianismo, desde tempos remotos, teve papel preponderante na história brasileira. O Brasil sempre foi (a partir dos colonizadores, que impuseram seu capital cultural ao país e aos povos subjugados) cristão. Ao longo da história, inclusive, a separação entre Estado e Igreja nunca foi cristalina, esse entrelaçamento, esse entrecruzamento foi uma constante.
A maioria cristã, na história moderna nacional, foi e continua sendo absoluta. Qualquer político com esperanças eleitorais, ainda hoje, tem calafrios ao sonhar que pode transparecer um certo ateísmo (para isso costumam ir, convenientemente, a igrejas em datas ainda mais convenientes). No entanto, a configuração, a distribuição dos cristãos vem paulatinamente mudando. O Censo de 2010 revelou que os católicos passaram de quase 83% da população em 1980 para 64,6%, enquanto os evangélicos cresceram de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010, o que representa, aproximadamente, 42,3 milhões de pessoas.
Diferentemente da católica, as igrejas evangélicas são um grupo multiforme e dividido em três grandes categorias: as protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Anglicana, etc.), as pentecostais (Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor, etc.) e as neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, etc.) Basicamente, o pentecostalismo (e essencialmente o neopentecostalismo) distinguem-se do protestantismo histórico por pregar a crença na contemporaneidade dos dons do espírito, entre os quais se destacam o dom de línguas (glossolalia), cura e discernimento de espíritos e por defender a retomada de crenças e práticas do cristianismo primitivo, como a cura de enfermos, a expulsão de demônios, a concessão divina de bênçãos e a realização de milagres.
O neopentecostalismo é um fenômeno urbano crescente. Caracteriza-se, basicamente, por dar uma especial ênfase à teologia da prosperidade, originária dos Estados Unidos, a qual defende que o cristão deve ser próspero, feliz e vitorioso em sua vida terrena. Para tal, estabelece-se uma espécie de contrato com Deus, em que quanto mais se doa, para a igreja obviamente, mais se recebe. A prosperidade econômica é vista como sinal da graça divina. Além disso, outra grande característica dessas igrejas é o uso intensivo da mídia. Proliferaram-se programas em que aparecem testemunhos, milagres e mecanismos que permitem a expansão dessas igrejas.
Esse adiantamento de recompensas de um plano celestial para um plano terrestre somado à midiatização massiva explicam, de alguma maneira e em partes, o vertiginoso crescimento dessas igrejas. Não obstante, o avanço evangélico se dá em vários âmbitos, inclusive culturais. Há uma rede social cristã que cresce no número de adeptos: o Faceglória (que está sendo processado pelo Facebook por plágio e já passou por outra polêmica ao não permitir fotos de beijos homossexuais), bem como são detentores de ambições e aspirações de poder, políticas. A já famosa bancada evangélica tem agenda consolidada, um número crescente de parlamentares, uma atuação estrondosa, barulhenta e, agora, o Presidente da Câmara, que já garantiu isenção fiscal a igrejas com a anulação de autuações fiscais que passam dos 300 milhões de reais.
A ofensiva política e a intenção de legislar a partir da bíblia (e um código penal de 3.000 anos atrás!), impondo crenças religiosas e normatizando (ainda mais!) corpos, comportamentos e sexualidades é perigosíssima, mas não é o ponto em que me deterei. O assunto em questão, não menos chamativo, é o tratamento dispensado ao Outro, essa fábrica simbólica de contrastes, de diferenças e de mal-estar, para usar uma expressão freudiana.
A vida do homossexual, na sociedade brasileira, não é nada fácil, embora tenha melhorado um pouco. Estereotipado, é alvo de humor estigmatizante, discursos de ódio, discriminações, agressões e até assassinatos. Mas o que tanto incomoda nos homossexuais, o que tanto ódio desperta? Não creio que seja sua vida íntima, privada, trata-se do desconforto por romper com a heteronormatividade, do simbólico de andar de mãos dadas em locais públicos, de mostrar-se diferente em nossa sociedade de controle, da possibilidade de existência e visibilidade desse diferente residir em um universo padronizado.
Pois bem, é, no mínimo, curiosa e digna de nota a cruzada promovida por um número não irrelevante de evangélicos, mais precisamente neopentecostais (não todos, em absoluto. Afirmar tal coisa seria uma sandice) e de alguns pastores midiáticos bastante conhecidos. Com as estratégias já mencionadas para angariar fiéis, um crescimento constante e um poder econômico e midiático consolidados, o que justificaria a frequência e a virulência de tais discursos?
À primeira vista, a justificativa oficial é a defesa da “família tradicional”, um argumento tão vazio e carente de sentido quanto a ofensiva. Defesa de quê ou de quem? Quando a “família tradicional” esteve ameaçada? Aliás, de que família ou modelo de família se trata? O que é, em definitiva, essa “família tradicional”? Pois bem, essa narrativa vai ao encontro de uma outra narrativa conservadora repetida ad infinitum sempre que surge um problema social, sobretudo quando envolve adolescentes: aquela que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro de degradação social em que vivemos, com a consequente decadência e/ou falência de instituições. A falta de famílias “estruturadas” seria a responsável pela delinquência juvenil, pela violência, pelas drogadições; não a desigualdade, não a degradação e paulatina privatização dos espaços públicos, senão esse núcleo de transmissão de poder que arcaria sozinho com a construção do edifício da moralidade e da ordem nacionais.
A psicanalista Maria Rita Kehl mostra em “Em Defesa da Família Tentacular” que esse modelo de família “tradicional” correspondeu às necessidades da sociedade burguesa emergente no século XIX e durou até metade do século XX (sim, apenas isso) e estava muito distante de ser perfeita. A fábrica de neuroses que permitiu a Freud criar a psicanálise, a origem do autoritarismo para Reich, era estruturada hierarquicamente, organizada em torno do poder patriarcal, na qual estavam justapostas a proteção e a opressão por parte do chefe de família, que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões. A esposa era submissa e dedicada inteiramente à família, sem vida pública; a vida conjugal dos filhos administrada como um pequeno negócio; as mulheres destinadas à submissão e dependência econômica, tudo cercado por aquela atmosfera de hipocrisia vitoriana da qual tão bem falou Machado de Assis.
As necessidades do próprio mercado emanciparam a mulher, bem como suas lutas, obviamente. Ela começou a se empoderar, a trabalhar, reduzindo, assim, sua dependência econômica (ainda hoje aqueles que têm por projeto o arcaísmo culpam a mulher por essa dissolução da família, por ter a petulância de querer existir fora das fronteiras familiares), o poder passou a ser mais horizontal e as configurações familiares mudaram drasticamente: hoje, as famílias, segundo a autora, são tentaculares: co-parentais, recompostas, agregando e legitimando uma pluralidade maior de experiências, como filhos de casamentos diferentes, de pais homossexuais, pais e mães solteiros, entre muitas outras. Mais arejada e menos rígida, diminuiu a dominação masculina e sepultou um padrão nuclear de família, normativo e que vinha em processo de erosão.
Assim sendo, essa defesa de uma instituição, que já não tem seu funcionamento normatizado, de um inimigo invisível e amorfo se aproxima dos moinhos de Dom Quixote e está longe de se sustentar minimamente. Também se pode analisar o fenômeno a partir de um viés psicanalítico, com todas as ressalvas que essa sistematização selvagem do social acarreta. Assim como Freud escreveu que a religião é a neurose coletiva originada do desamparo, pode-se dizer que esses ataques seriam mecanismos de defesa.
A formação reativa é uma forma de defesa contra impulsos inaceitáveis para o ego. O sofrimento psíquico gerado por esse impulso causaria uma repressão que resultaria na antítese, no oposto daquele impulso, de maneira definitiva na formação da personalidade do sujeito. É uma defesa frágil, pois o impulso está à espreita no inconsciente, ameaçador. Então, um sujeito com impulsos e desejos homossexuais se tornaria um homofóbico empedernido.
É uma maneira de enxergar as coisas, em termos psíquicos e individuais. Também se poderia relacionar, por exemplo, o sucesso de programas como Big Brother ou A Fazenda a uma perversão que seria um tanto quanto estendida como o voyeurismo.
Deixando a um lado a hipótese psicanalítica, os ataques homofóbicos também podem ser vistos desde uma perspectiva foucaultiana, e aqui creio haver mais sentido, como estratégias de sobrevivência, estratégias de poder, de biopoder, do poder que se exerce sobre a vida. Foucault propõe uma maneira diferente de se analisar o discurso histórico, surgida em fins do século XVI e começo do XVII, como uma contra-história ou história anti-romana: não mais centrado na soberania, na continuidade do poder através da continuidade da lei, enaltecendo feitos e conquistas para reforçar esse poder, mas na investigação sobre a guerra como princípio de análise das relações de poder.
A partir dessa análise, ele estabelece que o racismo vem para justificar o direito de morte que os Estados reivindicam, a partir de relações saber-poder que introduzem fissuras no continuum biológico que o biopoder estabelece. Também produz uma relação bélica, do tipo “quanto mais se matar, mais se viverá”, a mesma relação guerreira do tipo “para viver, deves massacrar o inimigo” que tantos povos antigos utilizaram. Permite, da mesma forma, uma relação de tipo biológico, na qual quanto mais anormais, quanto mais seres inferiores morrerem, mais pura será a raça.
Pois bem, qual a relação entre essa análise histórica, essa análise do racismo com o tema inicial, os ataques fundamentalistas contra a população LGBT? Tudo e nada. Para Foucault, era fundamental se pensar a atualidade, e estou de acordo com isso, de nada adianta teorizar sobre o passado e não se falar no presente. Assim, tem-se um movimento neopentecostal crescente e em expansão ao mesmo tempo em que os discursos homofóbicos se intensificam.
O sujeito homossexual é aqui, então, esse Outro portador de diferenças, que escapa à norma, desviante, anormal, a antítese da vida (aqui entra o simbólico de não gerar vida), esse que resiste e luta por seus direitos, esse que desafia a tradição, esse ser impuro e degenerado. A partir dessa lógica bélica e aqui, num campo simbólico e discursivo (embora os desdobramentos desses planos ocasionem tantas tragédias e violências), temos que: quanto mais seres anormais, impuros morrerem ou forem condenados à invisibilidade, quanto mais destes anômalos deixarem de existir, mais nós viveremos, mais puros seremos, mais pura será a sociedade. Dessa forma, garante-se a sobrevivência e a expansão.
Estou afirmando com isto que todos os pastores evangélicos, todas as instituições evangélicas funcionam dessa maneira? Nada mais distante da realidade. Há excelentes pessoas em todos os âmbitos, e nas igrejas não é diferente. Recentemente, o pastor José Barbosa Júnior, junto com um padre, lavaram os pés da transexual que apareceu crucificada na parada gay em forma de protesto. É líder do movimento Jesus Cura a Homofobia e transmite essa mensagem de tolerância. No entanto, esse movimento pacífico tem muito menos visibilidade e adesão (cerca de 12.000 fãs no Facebook) do que alguns pastores falastrões que movem multidões e possuem milhões de fãs.
É um problema grave que pode trazer consequências ainda piores. Não creio ter uma solução tirada da cartola, uma receita de bolo, uma sentença simplista adequada a todos os contextos. Contudo, creio que a problematização, o nomear, o trazer a público são, per se, formas de resistência e permitem trazer um pouco de frescura, um pouco de lucidez a um ambiente tão convulsionado nos últimos tempos. Logicamente, atuando dentro do plano do possível, sem incorrer em utopias impossíveis ou niilismos estéreis. Como disse Deleuze, “um pouco de possível, senão eu sufoco”.
Fernando Dimer, psicólogo.
No Saúde Publica(da) ou não
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