Renato Russo
Fazia frio. A chuva fina que caía ininterruptamente há dois dias provocou queda na temperatura. A mudança brusca das condições climáticas de uma cidade do centro-oeste brasileiro, acostumada ao calor seco sempre tão nocivo à mucosa respiratória e ao capim, compromete o humor das pessoas. Geralmente, para menos. Nunca se está plenamente satisfeito com o que se tem, não é mesmo?!
Pois bem: ele morava com a família num condomínio de luxo. Um apartamento por andar. Quisera ele tivesse também um pensamento por vez dentro da cabeça. Não. O turbilhão de lembranças o deixava zonzo e irritado.
A esposa saíra com os filhos pequenos. Aniversário de criança. Preferiu ficar em casa tentando desopilar aquele mau humor pegajoso. Gozava apenas da companhia do cachorro, uma criaturinha pela qual não nutria tanto afeto assim. Aliás, há dois anos, fora voto vencido quanto à sua entrada no apartamento. Sentia-se desamparado naquela noite chuvosa. Frente fria é assim mesmo. Parece remorso. Pega a gente quando menos se espera. ...
Garimpou na estante alguma música animada que exorcizasse tantos demônios, mas acabou mesmo optando pela coletânea de blues. Colocou bi-bi-quingue pra tocar. Embora não fumasse, desejou um cigarro. O uísque escorria fácil pela garganta e era deglutido em goles apressados. Naquela situação, convinha não adiar o entorpecimento.
Entretanto, os efeitos do álcool e da chuva deixaram-no ainda mais melancólico, neurastênico, saudosista e — convenhamos — deprimido. Episódios vividos na infância e na adolescência invadiam, vividamente, a cabeça, provocando sentimentos antagônicos que o deixaram bem agitado. Apesar do frescor da varanda, gotículas de suor brotavam na sua fronte a desafiar lógicas meteorológicas. É lógico que ele preferia bodar de vez e embotar tantas lembranças remotas.
Tomou, enfim, o telefone em suas mãos. Ficou irritado por não se lembrar do número telefônico do irmão, com o qual não falava há uns quinze anos. Briga debutante (quase riu ao pensar nisto). Cambaleando, serpenteou pela sala em busca da agenda, esbarrando, derrubando, espatifando enfeites frágeis e fúteis da mobília. Tropeçou também no cachorro, aquela criatura inútil (foi assim que esbravejou). Filho da puta! (ele disse, como se o outro fosse humano) Medroso, o bicho foi deitar num canto da sala, com aquele olhar meio constrangido, meio humano, focinho entre as patas, sabe como é?!
Com dificuldade extrema, visão embaçada pela raiva e pelo álcool, conseguiu discar os números do teclado. Tudo era silêncio, a não ser o tum-tum-tum da ligação, cacofonia nos seus ouvidos. Teve chance de desligar, pois o telefone chamou inúmeras vezes. Atendeu do outro lado uma voz feminina. Era a enfermeira. Vocês sabem, famílias abastadas contratam enfermeiras ou cuidadoras; os pobres se viram como podem, cuidam eles próprios dos parentes adoecidos, ou lhes aplicam fortes soníferos antes de saírem pro trabalho.
Ele dorme? Ele pode atender ao telefone? (especulou, quis saber) Educada, a moça de sotaque nordestino pediu que aguardasse um instantinho, viste? Demorou demasiadamente para fazer a verificação. Mais uma vez, a ele ocorreu desistir da conversa.
Alô? (ela principiou) E então: ele vai falar comigo? (perguntou sem disfarçar a ansiedade) Me desculpe, seu moço. Ele manda dizer que não, que não quer falar. E mais ainda: pede pra que o senhor não volte a ligar. Nunca mais. Por favor. É pedido dele. O senhor me desculpe. Eu só estou transmitindo o recado da forma que ele pediu que eu fizesse, palavra por palavra, viste? (e desligou o aparelho sem esperar réplica).
Pressentindo miséria, o cachorro voltou para a sacada e se aninhou aos seus pés. O animal sentia frio, fome e pena do dono. Desta feita, o homem deixou escorregar o braço pesado de tanto malte escocês, pelo vão da poltrona. Com a mão anestesiada, acariciou o bicho. A chuva engrossara. Já não precisava mais se valer das luzes dos postes para enxergar os pingos. Sorveu todo o conteúdo do copo de uma vez só, como se fosse água da chuva.
Queria muito falar com o irmão, pedir autorização para embarcar amanhã cedo no primeiro voo. Pedir desculpas a ele. Abraçá-lo, novamente. Desde o diagnóstico, perdeu uns vinte quilos (foi o que ficou sabendo, através de terceiros). Devia estar com o abraçar diferente, esquálido. Por causa da bebedeira, foi preciso fazer um esforço descomunal para se recordar do motivo da discórdia. Naquela noite, o motivo lhe pareceu bem ridículo. Perdi tanto tempo... (concluiu, enquanto chamegava o totó).
Três dias depois, o telefone tocou no meio da madrugada. E não é que chovia novamente? Diabos de frente fria era aquela? Do outro lado da linha, a moça de sotaque nordestino. Estava ligando para avisar que o patrão tinha morrido indagorinhamesmo. Sucumbiu, finalmente, ao apetite voraz-suicida do câncer, aquele conglomerado anômalo de células que sorvem a seiva de um corpo como se ele nunca tivesse um fim.
Agora sim, homi-seu-minino, o senhor podia embarcar para ver o irmão. Se ainda fosse o caso, é claro, pois ele estava tão diferente... E que fizesse o biséqui de avisar os demais irmãos, o restante da família. Interurbano custa muito caro. Sinceras condolências. Que passasse muito bem e até breve.
EBERTH VÊNCIO, revista Bula
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