quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Esqueça os mortos, que eles não levantam mais


Tenho o couro e a alma demasiadamente marcados pelo braseiro da música. O título acima foi pinçado de “Negro amor”, a versão brasileira setentista de Péricles Cavalcante e Caetano Veloso para “It’s all over now, Baby Blue”, de Bob Dylan. Àqueles que não conhecem a canção, recomendo que o façam, em especial, pela beleza constrangedora da letra. Será verdade que, em termos musicais, já não se fazem mais poetas como antigamente? 
Brasileiro adora carro, mas adora ainda mais os feriados. “O Dia dos Mortos” ou “O Dia dos Fiéis Defuntos” é comemorado pela Igreja Católica e seu assustado rebanho de asseclas no dia 2 de novembro. A prática de reverenciar aqueles que já saltaram do planeta é secular e, como sempre acontece, rende muitas lembranças (algumas boas de serem sentidas, outras boas de serem enterradas para sempre nos subterrâneos da memória), lágrimas, chiliques, filas e negócios-da-hora para o comércio ambulante de velas, flores e penduricalhos. Que fique bem claro aos mortos: estamos vivos e saudosos, mas não estamos nos comportando tão bem assim. Se conseguirem, descansem em paz. 
Não acendi uma só velaem Finados. Tambémnão areei azulejos, nem depositei flores artificiais sobre lajes de sepulturas, conforme alertaram as autoridades municipais da Saúde, a fim de se evitar a proliferação do mosquito Aedes Aegypti. O homem está sempre se ocupando em fugir das pragas e das pestes. Pode até ser que o mosquito tenha proliferado menos durante o feriado, mas as minhas dúvidas...
 Não me lembrei tanto assim dos entes queridos falecidos. Aliás, os seres viventes ocuparam mais o humor do meu dia, das maneiras mais desagradáveis: um motorista estressado abriu a janela do carrão importado e me mostrou o dedo anular em riste; descobri na caixa de correios mais um comunicado de multa de trânsito; a goteira no teto da varanda, supostamente resolvida por Raimundinho, o pedreiro sabe-tudo, não ficou resolvida, não senhor. 
Aproveitei o dia morto (desculpem-me pelo trocadilho, queridos papa-hóstias) para algumas modalidades bem mundanas: fazer sexo, lavar o carro, assar picanha, tomar duas latinhas de cerveja, assistir a um bom filme, visitar parentes, brigar com a filharada e escrever uma crônica (necessariamente nesta ordem). 
Seguindo a dica de um amigo cinéfilo, loquei o premiado filme brasileiro “Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos” (Marcelo Masagão, 1998). O lúgubre título foi retirado de um letreiro de cemitério no interior de São Paulo e sua mensagem é subliminar, ameaçadora, algo assim do tipo pra-bom-entendedor-pingo-é-letra: “Você vai morrer, cambada!”.  Alerta dos desencarnados? Quem afinal foi o besta que pintou aquela placa? Por que não plagiaram um “Strawberry Fields Forever”?! 
Inconformado por eu não ter gostado tanto assim da sua indicação primeira — “A História Real” (“The Stright Story”, David Linch, 1999) — Carlos Wilson sugeriu o filme de Masagão, que é uma bela colcha de retalhos do século XX, costurada com música de primeira linha, rajadas de metralhadoras e pipocos de bombas. Uma das vantagens do filme é o fato de não haver diálogos. Trata-se de um mega-vídeo-clipe. Falar mais o quê?! Nem precisava.
Com arrogância elegante e involuntária, dei nota 6 para “A História Real”, cujo roteiro trata também dos desafios do viver, do conviver, do sobreviver e do deixar de viver. A trama é curiosa, mas a formidável ideia de um velhinho viajar500 kmdirigindo um cortador de gramas até a casa do irmão moribundo parece-me desperdiçada, mal desenvolvida. Dava pra fazer melhor. Mas, sigamos antes que a morte nos pegue. 
Para mim, o momento mais comovente e vívido do feriado dos Fiéis Defuntos (que nome, Vossa Santidade!) foi visitar a sede da fazenda onde meu avô nasceu, foi criado, casou, teve filhos (inclusive a mamãe) e morreu. Caminhei pelo pomar velho da minha infância e constatei que, assim como os meus avós, algumas árvores frutíferas sumiram. 
Em maior ou menor volume, na dependência das chuvas e das estiagens, o rego d’água continuava lá, arrastando folhas, gravetos, garrafas péti (eis aqui uma péssima novidade!) e lembranças, como se os homens não nascessem, nem morressem. Havia amontoados de tijolos antigos e telhas fora de série emboloradas. 
Incrível obra de engenharia e desapego sentimental, o novo proprietário demoliu a casa centenária, trocou as vigas e pilares de aroeira pela estrutura metálica aparentemente indelével. “Quero ver cupim comer isto aqui”, vociferou. Não há melindres históricos ou atrelamentos sentimentalóides que resistam à necessidade premente de o ser humano destruir, construir, destruir novamente, e se modernizar, enfim. Então a casa tombou sobre as minhas recordações inabaláveis à prova de insetos e ferrugem. 
Por outro lado, às vésperas do feriado de Finados, a Organização das Nações Unidas anunciou que a humanidade atingiu a extraordinária marca de sete bilhões de habitantes. A entidade estima que um bilhão de pessoas (mais que 10% dos terráqueos) passe fome no mundo. Ou seja, no que concerne à miséria e desumanidade, não estamos nem muito organizados, nem tão unidos assim: “O vagabundo esmola pela rua, vestindo a mesma roupa que foi sua”. Bem aventurados sejam os poetas! 
Especialistas em searas demográficas explicam que a população mundial cresce principalmente por causa da longevidade (o prazo de validade da raça humana não para de crescer). Vive-se mais, morre-se de menos. Além disso, apesar da desacelerada taxa de natalidade no globo, ainda vigora a procriação desenfreada, desmedida, em dezenas de países pobres. São estas as mesmas nações do globo nas quais aquele bilhão de miseráveis continua passando fome, apesar das vultosas doações de Estive Dióbis (que Deus o tenha!), dos mais recentes lançamentos da Épou, e da legião de consumidores com insaciável apetite tecnológico.         
Admitam: este feriado de Finados não foi mesmo de matar?!
Revista Bula

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