Qualquer atitude em direção ao fenômeno crime organizado, mais incisiva que seja por parte da magistratura de primeiro grau, e dentro dos limites institucionais, assume propriamente riscos e conotações como se fruto fosse de organismo à margem do Estado. Do Estado de Direito. Ilegalidade, arbitrariedade, saudosismo da ditadura, adoção da Lei e da Ordem, do Direito Penal do Inimigo etc. etc. etc. Inconstitucionalidade. Tratam como se estivéssemos num campo de discricionariedade da atividade judicial que não teria lugar, ainda que preventivamente.
Uma análise minimamente exauriente deve levar em consideração a emergência do fenômeno e a resposta adequada. Acredita-se ingenuamente que tal emergência em algum momento tenha refreado, mas, ao contrário, além de resistir, aumenta substancialmente e sequer se cogita de uma contenção institucional.
O que se observa, de fato, é a grave dilaceração do tecido democrático, uma dor moral (irreparável) aos valores sociais, colocando em perigo ou fulminando práticas políticas salutares e legitimando gravíssimos fatos ilícitos contra o Estado....
Deve-se ponderar que a situação, de tão sistematicamente emergente, tornou-se praxe, e por vezes, possui origem e destino no próprio Estado de “Direito”. Bravamente, por meio de seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), com fundamentos sempre bem definidos e convincentes, resiste a qualquer ação de combate ao crime organizado contra a Administração Pública (corrupção) ou a Ordem Econômico-Financeira (colarinho branco), quando não é negada veementemente.
O fenômeno ou a situação é agravado (a) quando, de forma fantástica e generalizada, dissemina-se a ideia de que os costumes dos homens públicos do país dificilmente seriam extirpados da vida da população já que traduziriam algo inerente à sociedade.
Ledo engano.
A reação social, ainda tímida, mas importante e inquietante, cobra uma definição mais adequada que possibilite algum respiro. O ceticismo geral diante da indiferença institucional, travestida de movimentos teatrais espetaculares, tem sido, entretanto, acompanhado de questionamentos da corrente mantenedora do grave fenômeno.
É um sopro de esperança ou um fator de sobrevivência da democracia, cujo foco único é a funcionalidade do aparato estatal. Sua utilidade.
Ao se constatar que sistemas de valores sociais como honra, família, fé e amizade transmudaram-se para vergonha, clã criminoso, heresia e cumplicidade, abraçamos um fenômeno verdadeiramente mafioso que tenta fazer do “vale tudo” da apropriação privada do bem público uma regra consagrada. Pior quando a deturpação dos reais valores caros torna-se operosa, exitosa e perene. A extorsão ou o favorecimento com a grave comunhão de apadrinhados tem sido idôneo o bastante para interferir no ânimo da sociedade que, perplexa, sente sua liberdade moral ruída e o patrimônio público fatiado. Que fazer?
A luta contra um estado tal de coisas é ao mesmo tempo repressiva (julgamentos eficazes) e preventiva (estabelecimento da cultura da licitude no seio da família, escola e comunidade), ou seja, a constituição de um pool antimáfia institucionalizado que reveja leis, nossas instituições e posturas culturais. Necessariamente que torne transparente contratos e convênios públicos, que proteja, de fato, os colaboradores, sejam réus ou testemunhas, que preveja métodos de investigação que levem à verdade e dêem um stop às intimidações e às medidas que visem criar obstáculos ao combate (reforço de penas privativas e medidas de prisão preventiva em certos casos).
O delinquente econômico tem plena ciência, hoje, que os riscos da conduta criminosa (se é que riscos existem) são menores que os efeitos de suas ações, não se recomendando, portanto, penas pecuniárias ou prestação de serviços, cuja prevenção, já assim entendida por importante doutrina internacional, mostra-se ineficaz.
Em xeque está a decência da dignidade.
Que os direitos coletivos sejam verdadeiramente reconhecidos e não suprimidos por uma valorização simplória e cômoda de direitos individuais. Aliás, os direitos do todo, nada mais significam do que um conjunto de direitos individuais coletivizados para o benefício do todo. Os direitos fundamentais clamam um postulado de intervenção que corresponda em deveres de tutela geral.
É ilusório imaginar prescindir-se da função judicial propulsora – e isso independe da imparcialidade – que faz com que o crime praticado por imitação seja obstado e não venerado. Mesmo pessoas bem educadas, em ambiente corrompido, absorvem maus hábitos.
O Superior Tribunal de Justiça, criado pela Constituição de 1988 para desafogar o Supremo Tribunal Federal, s.m.j., tem assumido função deste (paralisando sistematicamente processos judiciais com invocação de inconstitucionalidade que nem a Corte própria assim entende), quando não de Tribunal de Segunda Instância (apreciando prova que não lhe compete). Uma terceira instância que não tem refletido uma jurisprudência remansosa e pacífica. Tribunal da Cidadania, sim, mas principalmente Tribunal da Coletividade. Cabe refletir o seu papel. Devia se constituir em última instância, caso em que o Supremo Tribunal Federal se tornaria, exclusivamente, Corte Constitucional?
O Supremo, também com o respeito e acatamento devidos, tem decidido questões marcantes com grau de inovação e de compaixão únicos, reconhecendo um garantismo particular que pode tornar em salvo conduto geral o delito econômico.
Os advogados, tanto possuem função essencial, que chefiam a Polícia Federal, integram Tribunais e opinam na indicação dos que ocuparão os cargos próprios da magistratura.
Triste magistratura de primeiro grau que, para galgar qualquer cargo legítimo, terá que se valer do apoio de parte de políticos que prestigia e promove a manutenção do delicado e vitorioso fenômeno criminoso avassalador, aviltante e tomador da riqueza e da esperança brasileiras.
O povo que aceita esse fenômeno paga o preço: não prestigia a dignidade, não goza de liberdade, não desfruta de segurança. Tampouco é verdadeiramente soberano.
Fausto De Sanctis
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