sábado, 19 de novembro de 2011

Ela tem os olhos de um husky siberiano


Eberth Vêncio, Revista Bula

“Os Países Bálticos constituem uma região do nordeste da Europa cujos países integrantes são a Estônia, a Letônia e a Lituânia. Quem nasce na Estônia é estoniano; na Letônia, letoniano; na Lituânia, lituano, e em Cachorro Sentado-Go, cachorro sentado (ou cadela sentada). 
Não sou tão culto quanto se poderia presumir. Pesquisei algumas fontes, inclusive o Seu Damásio, professor estadual aposentado que carrega uma placa dependurada no seu sexagenário pescoço, em que vai escrito “compra-se ouro”. “Tô ralando mais agora do que quando riscava a lousa”, reclama o eterno professor. 

O preâmbulo geográfico é pertinente. O protesto contra a histórica desvalorização dos mestres, idem. Não desistam, meus caros. Leiam.... 
Jotabê parece enxergar o mundo de ponta-cabeça. É o que diz o povo quando uma pessoa escapole dos padrões do “belo quadro social”. Mulheres diuturnamente expansivas, comunicativas e bem humoradas são taxadas como vulgares, idiotas. Faltam-lhes parafusos na cabeça, é o que dizem. 

Outro exemplo de julgamento pelas aparências (um dos nossos mais corriqueiros defeitos): se um homem aprecia poesia, afirmam logo que é um tolo, sonhador ou efeminado (ou as três coisas juntas). Antes que os gays mais engajados cortem os seus pulsos com prestobarbas e me acusem de ser preconceituoso, garanto que não adjetivei com propósito depreciativo. Nem pra tentar fazer graça. Não sou um Rafinha Bastos. 

Naqueles casos em que o sujeito prefere vestir as mesmas roupas de sempre, aquelas com as quais se sente mais confortável, rotulam-no brega, démodé, feio. E se ele trata o seu carro como se ele fosse apenas um carro mesmo, ou seja, uma máquina sobre quatro rodas concebida para conduzi-lo pelas loucas ruas da cidade, muitos o criticam dizendo que precisa logo trocar “aquela lata velha”, aproveitar a redução do ipeí do Governo, comprar um veículo zero quilômetro com trio elétrico, ar condicionado, ér-bégui, trava nas portas e direção hidráulica. “Sofrer pra que, rapá? A vida é curta...”, é o que muitos apregoam ao justificar tanta sede de consumo.”

O prefeito da cidade onde eu moro tem investido bastante na construção de parques e jardins. Por outro lado, tem também sacrificado algumas praças, decepando-as ao meio para que o formigueiro catalisado de ônibus, carros e motos deslize pelas veias da cidade, desentupindo-as. Tinha uma praça no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma praça. Rasguem-na, ora! 
Várias vezes, eu presencio motocicletas circulando pelas calçadas, serpenteando entre os transeuntes, alimentando o inferno do trânsito urbano. Do jeito que correm as coisas, já-já oficializam as calçadas como pistas. Afinal, carece manter o direito constitucional do ir e vir, desde que você não o faça a pé, nem de bicicleta. Jotabê não dirige automóvel. Sinto inveja dele. Não se entregue, companheiro! Não tire a habilitação! 
Pois, então. Naquela tarde, Jotabê enxergava, literalmente, a vida de cabeça para baixo, ao realizar uma posição de ioga denominada “invertida sobre a cabeça”. Lá no interior a gente chamaria aquilo de “plantar bananeira”, só que o Jotabê explicou-me que não, não era a mesma coisa. Na “invertida sobre a cabeça”, o iogue permanecia com a cabeça em contato com o solo, sem esticar os braços, que era pra dar mais sustentação, conforto, equilíbrio e apoio. 
Foi assim, munido com tantos recursos orientais, que o meu amigo Jotabê avistou uma moça alimentando os macacos. Há muitos macacos nos parques da cidade, além de traficantes mequetrefes, drogados iniciantes, e cãezinhos de dondocas evacuando no passeio público. Não são umas gracinhas?! 
Subitamente, Jotabê perdeu a concentração, desequilibrou, quase caiu, e foi conversar com a jovem que tinha a tez tão branca quanto o alfenim da doceira da Cidade de Goiás. “Eu estar olhando os macacas”, ela explicou como se fosse mesmo preciso descrever tão óbvio ato. 
“Não se diz macacas. O certo é macacos”, explicou Jotabê com uma didática toda intrometida e repleta de segundas intenções. O conjunto da obra (pele branca, português divertidamente errado e os olhar de cachorro da raça husky siberiano) denunciou a origem estrangeira da beldade. 
Quando a jovem enfim revelou que era proveniente da Letônia, Jotabê praticamente deu uma aula de geografia (para quem seria aquela dissertação, Jotabê?! Para os macacas?!) descrevendo em pormenores a capital Riga, como se já a houvera visitado, rememorando as fronteiras com a Estônia e a Lituânia. Ah... e o Mar Báltico, então... como era salgado o Mar Báltico... 
A demonstração de cultura diferenciada e profundo conhecimento geral surpreenderam a quase-albina moçoila, tão acostumada aos inquéritos brasileiros do tipo “onde é que fica isto”, “que língua vocês falam lá” e “tem carnaval na Letônia”. 
A parte ruim da estória (foi Jotabê quem classificou desta forma, ao me relatar o afér unilateral) é que Marie (era este o nome da despojada letoniana) estava no Brasil a convite do namorado, que era músico profissional e tocava violoncelo na orquestra sinfônica. Marie tinha vinte e seis anos, era oboísta, falava cinco idiomas fluentemente, tinha olhos de husky siberiano e gostava de alimentar os estômago dos pequenos primatas e o imaginário dos grandes primatas. 
Despediram-se sem se tocarem. Marie continuou atirando pipoca aos macacos, como se fosse um raul seixas com olhos cinzas de cachorro, até que um guarda municipal a interpelasse: “Assim não pode, minha filha. Como é mesmo o seu nome, gracinha?!”. 
Na real: Jotabê voltou a plantar suas bananeiras no gramado do parque em busca de equilíbrio e paz interior. Os homens da prefeitura desembarcaram com motos-serras possantes a fim de interromper a paz dos passarinhos (e dos macacas, por que não?!) e derrubarem mais um punhado de árvores nativas do cerrado. 
“Vai passar uma rua aqui pra desafogar o trânsito”, algum técnico explicou. “O prefeito prometeu plantar dez árvores pra cada uma que a gente derrubar”, emendou enquanto um transeunte ensaiava um protesto ecológico. Assustados com os roncos das motos-serras, os traficantes canalhas deram um tempo e se escafederam, como sói ocorre aos vermes dentro do chão. Alheio ao absurdo de tantos fatos conflitantes da vida cotidiana (entende, bró?!), um adolescente buscou o nirvana acendendo um baseado. 
Esta estória não somente é baseada em fatos reais, como se trata da mais pura verdade.


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