Diz-se que os partidos políticos brasileiros não têm ideologia, e que os conceitos de esquerda e direita representariam pouco no debate tradicional. Esse é mais um grande equívoco da crônica política atual. Os partidos políticos diferenciam-se em posições à direita ou à esquerda, a depender do eixo temático em questão.
Uma discussão bastante relevante no debate político do Brasil contemporâneo é a da ausência de ideologia entre os partidos políticos brasileiros. O elemento fundamental desta polêmica centra-se na ideia de que os conceitos de esquerda e direita representariam pouco no debate tradicional.
Esse é mais um grande equívoco da crônica política atual. Este equívoco é em parte resultado do fato que o conceito de direita e esquerda se tornou muito mais complexo na contemporaneidade. Isto porque após o fracasso da alternativa comunista – socialista, representada pela China maoísta e, sobretudo, pela União Soviética, os partidos nas principais democracias contemporâneas passaram a disputar o debate político em outros termos.
Existem outras dimensões mais fundamentais que dividem o eleitorado e mesmo os partidos brasileiros além do debate capitalismo versus socialismo – e que são cruciais para o desenvolvimento político, econômico e social nacional, assim como pautam a articulação dos grupos de situação e oposição aos diferentes governos democráticos.
Ao longo do século XX, a grande divisão entre esquerda e direita referia-se à temática do capitalismo versus socialismo. Os partidos de esquerda seriam aqueles adeptos a reformas que reduzissem o papel da propriedade privada nas economias capitalistas, enquanto os partidos de direita seriam árduos defensores de soluções pró-capitalismo. Com a eclosão da Guerra Fria, a importância deste debate tanto nacional quanto internacionalmente foi fundamental. Inclusive em vários países do mundo aconteceram conflitos entre grupos que defendiam de maneira extrema um destes termos.
Mesmo no Brasil, entre outras coisas, o Golpe Militar de 1964 teve como uma de suas justificativas legitimadora a defesa da sociedade brasileira contra a ameaça comunista (por mais absurdo que seja hoje classificar líderes do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) como Leonel Brizola ou o próprio Jango Goulart como adeptos do comunismo soviético).
Mas e a direita e esquerda de hoje?
Enfim, e hoje? Quais são as principais dimensões que clivam o debate político no Brasil? Ainda existem partidos que defendem soluções anti-capitalistas? Qual a importância do debate socialismo versus capitalismo na sociedade brasileira?
Capitalismo versus Socialismo no Brasil Contemporâneo
Hoje podemos dizer com certeza que o debate tradicional capitalismo versus socialismo foi vencido no Brasil pelos adeptos do capitalismo. Todos os grandes partidos brasileiros defendem a criação de políticas públicas dentro da matriz conceitual do capitalismo. Isto não quer dizer que não existam partidos e indivíduos adeptos do socialismo. Eles ainda estão por aí, mas possuem pouca expressividade eleitoral. O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) é o maior representante deste tipo de Esquerda, enquanto todos os outros partidos relevantes – indo de PT, PSB, PMDB, PSDB até os DEMOCRATAS, são defensores do modelo capitalista e, dentro deste eixo ideológico, deveriam ser qualificados como de Direita.
Conservadorismo versus Progressismo
Outra clivagem muito mais importante no Brasil contemporâneo é a que divide o eleitorado e os partidos brasileiros entre Conservadores e Progressistas. Este debate é essencialmente sobre a agenda de valores. De um lado, a esquerda seria a defensora da ampliação da liberdade individual em temas caros ao debate público brasileiro – e bastante polêmicos – como a ampliação dos direitos LGBTs, a legalização e regulação do mercado de drogas ilícitas, a legalização do aborto e a defesa da não redução da maioridade penal.
Nesta seara, os conservadores se qualificariam como defensores dos valores tradicionais e da família brasileira, traduzindo essa visão em termos da não ampliação dos direitos LGBTs, da manutenção das proibições ao aborto e às drogas ilícitas e a introdução de uma agenda protetiva dos direitos da manifestação de grupos religiosos politicamente.
Dentro desta pauta conservadora, nos chama atenção a discussão sobre a aprovação do Estatuto da Família como união entre homem e mulher e da proibição da adoção de crianças por casais homoafetivos, a aprovação da “cristofobia” como crime hediondo e a não qualificação da homofobia como crime (uma vez que seria, na visão deste grupo, direito dos sacerdotes religiosos fazer proselitismo contra a homossexualidade) e, por fim, o tema mais caro aos conservadores, a redução da maioridade penal.
Os partidos brasileiros posicionam-se de maneira complexa sobre o tema. Isto porque os dois principais partidos que organizam a competição política no Brasil – PSDB e PT – ainda que não advoguem claramente estes princípios estão em nítido diálogo com os grupos conservadores. Isto fica claro com o não avanço da agenda LGBT nos últimos 12 anos de governo do PT, por mais que muitos apoiadores tenham optado pela legenda devido a esta temática, e a não abertura de discussões sérias sobre o aborto e a legalização das drogas.
O PSDB, por sua vez, também adota uma postura controversa. De um lado, uma de suas principais lideranças, o ex-presidente FHC, é o único expoente político relevante eleitoralmente que defende abertamente a legalização da maconha, enquanto, por outro lado, o partido adotou em sua agenda política nas eleições de 2014 a pauta da redução da maioridade penal.
Fora os dois principais partidos, mais uma vez podemos classificar o PSOL junto ao PV como os legítimos e mais verdadeiros representantes dos princípios progressistas na democracia brasileira, enquanto partidos como o PP, PSC e PRTB seriam os mais claros defensores de princípios conservadores. Por sua vez, os outros grandes partidos – PMDB, PSB e PDS, mantém uma atitude também dúbia sobre esta temática.
Mais Mercado versus Mais Estado: liberais contra desenvolvimentistas
Uma terceira clivagem com relevância no debate político brasileiro é a discussão sobre o papel do Estado como elemento indutor do crescimento econômico. Embora não exista uma diferenciação completa entre os partidos nessa temática, o PSDB tende a defender uma postura mais liberal na relação Estado e Economia, enquanto o PT é adepto de um maior intervencionismo estatal. Essa divisão não é completa, pois existem quadros dentro do PSDB que comungam com a visão intervencionista. Entre eles, poderíamos levantar os nomes do senador José Serra ou mesmo do ex-ministro Bresser Pereira. E dentro do PT, igualmente, existem (em número menor) quadros com uma visão mais liberal da economia. Dentre eles, a figura de maior destaque é sem dúvida Antônio Palocci.
A visão de esquerda poderia ser classificada como aquela que entende que o livre funcionamento de mercado não permitirá que o Brasil acelere seu percurso rumo ao desenvolvimento. Esse grupo político defende, dentre outras posições, que a indústria brasileira seja protegida das ameaças do mercado internacional enquanto o governo deve ser o principal financiador dos investimentos econômicos, seja em infra-estrutura ou tecnologia. Um papel primordial deve ser desempenhado pelas estatais e pelos grandes bancos nacionais: o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e, sobretudo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Nesta dimensão, a visão de direita, por sua vez, seria pautada por uma redução do tamanho do Estado e um menor intervencionismo na política econômica. Entre outros temas, esse grupo tende a defender com maior ênfase a privatização das grandes empresas estatais, uma redução dos tributos e do gasto do governo, a adoção de políticas industriais horizontais (isto é, benefícios e subsídios que atendam a todos os setores, não elegendo alguns grupos específicos para receber os benefícios econômicos), uma postura fiscal mais contida e, finalmente, a independência do Banco Central.
Nas eleições de 2014, esta foi a dimensão no qual as diferenças entre as candidaturas governista e de oposição (tanto de Aécio Neves quanto de Marina Silva) foram mais evidentes. A discussão sobre o papel do Banco Central, cuja independência foi apoiada por Marina, e do BNDES, cuja relevância foi defendida por Dilma, deixaram claro a importância da temática.
Por outro lado, embora o desenvolvimentismo seja hoje considerado como uma postura de esquerda na gestão da política econômica, esta era a mesma visão sobre o mundo econômico adotada pelo regime militar, sobretudo durante a gestão do General Ernesto Geisel. O plano econômico de Geisel, fortemente intervencionista e denominado como II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) tem a mesma base filosófica que justifica os Planos de Aceleração do Crescimento (PAC). A saber, o impulso à indústria nacional a partir de um sistema de benefícios e subsídios econômicos setoriais, com aumento da intervenção econômica do estado na economia a partir da atuação dos bancos estatais (principalmente o BNDES) e das principais empresas estatais, o aumento da proteção à indústria doméstica e um aumento nos investimentos em infra-estrutura por parte do governo federal.
A agenda redistributiva: empregar versus redistribuir
Finalmente, a quarta e última dimensão do debate político contemporâneo é a respeito da necessidade e justiça na criação de políticas de transferência de renda condicionada, tais como o Programa Bolsa Família (PBF). Dentro desta temática, os defensores dos programas de transferência de renda seriam qualificados como de esquerda e os opositores de direita.
A defesa enfática destes programas e de sua ampliação é feita por boa parte das lideranças políticas brasileiras. Nas últimas eleições, tanto a situação como as forças oposicionistas defenderam a manutenção deste programa social. Desde Marina Silva, passando por Aécio Neves, Eduardo Jorge e Luciana Genro, todos defenderam a necessidade de manutenção deste programa face a enorme desigualdade social e econômica do Brasil.
Especificamente, o único partido que de fato se mostrou contrário à expansão desta política foi os DEMOCRATAS, que, nos primeiros anos do programa, entrou com processos na Justiça contra a manutenção das medidas de transferência de renda. Contudo, após o sucesso eleitoral e social deste programa, poucas lideranças politicamente importantes se atrevem a pautar um debate contrário a esta política social.
Deste modo, classificaríamos o partido dos DEMOCRATAS como de direita e todos os outros partidos que defendem a manutenção deste programa como de esquerda. Uma esquerda redistributiva que abrangeria desde os partidos socialistas como o PSOL a partidos mais liberais como o PSDB e o PSD.
O debate é confuso, mas não caótico
Finalmente, podemos concluir que os conceitos de DIREITA e ESQUERDA no Brasil não são tão vazios de conteúdo como o imaginado na crônica política. A questão primordial é que a temática é na atualidade muito mais complexa do que a 30 anos atrás. A derrota do projeto soviético correu a importância da temática anti-capitalista no debate político contemporâneo. Por conseguinte, os partidos tendem a se posicionarem em outros debates para organizar a mobilização eleitoral da cidadania.
Na atual conjuntura política brasileira, os principais temas que dividem a opinião pública nacional referem-se a três discussões distintas: à defesa dos valores liberais ou tradicionais, a atuação do Estado como agente indutor ou apenas regulador das atividades econômicas; e, por fim, a importância/justiça das políticas redistributivas.
Fica claro, portanto, que existe uma forte dimensão ideológica organizando os partidos políticos brasileiros, mas esta dimensão é muito mais complexa que uma simples divisão em partidos de Esquerda e Direita.
Talvez seja melhor a adoção de outros constructos para definir o posicionamento partidário: progressistas versus conservadores na agenda de valores; intervencionistas versus liberais na agenda econômica; e redistributivistas versus não redistributivistas na agenda dos programas sociais.
vi no : http://novarepublica.org/2015/08/11/direita-e-esquerda-no-brasil-contemporaneo/
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