Existem, basicamente, duas formas de analisar o impasse do momento político atual. A primeira leitura, mais otimista, parte da ideia de que asmanifestações contra as tarifas de ônibus em São Paulo destamparam, a partir de 2013, uma onda de insatisfação coletiva em relação ao valor e a qualidade do serviço público nas grandes cidades do País.
Essa mobilização colocou em outro patamar a pauta de reivindicações sociais e escancarou os limites de um ciclo de desenvolvimento econômico baseado na distribuição de renda e da inclusão social a partir do consumo. Esse período de expansão colocou geladeira, estofados, aparelhos de TV e celular em muitos lares brasileiros, mas as pessoas eram ainda tratadas como gado quando entravam no ônibus, nos hospitais e nas escolas ou quando circulavam a pé por cidades mal iluminadas e serpenteadas por muros, fortificações e cercas eletrificadas.
A nomeação do mal-estar passou pela associação entre a precariedade do serviço público, incapaz de atender as demandas de uma sociedade cada vez mais exigente, veloz e conectada, ao peso da estrutura política.
Pouco depois dos primeiros protestos daquele ano, em entrevista a CartaCapital, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, autor de As Ruas e a Democracia, recorreu ao conceito de modernidade líquida do filósofo Zygmunt Bauman para fazer o seguinte diagnóstico:
“A sociedade no Brasil dos últimos 30 anos foi se tornando líquida, mais ágil, mais rápida, mais diferenciada, muito conectada – hoje somos pessoas de rede, rapidamente seremos 200 milhões de pessoas conectadas no Brasil, já temos mais aparelhos de celular do que gente. É a demonstração de que está tudo conectado. Isso tudo é vida liquida em sentido metafórico, mas a política ficou no plano sólido. Os governos, os partidos, a classe política não acompanharam as mudanças sociais. Não se ajustaram. Parte da nossa insatisfação com a Justiça, por exemplo, é que ela é lentíssima, e nós somos rapidíssimos”.
Desde a eclosão dos protestos, que logo ganharam outras bandeiras (menos corrupção, mais transparência, menos chicotadas da polícia), é possível dizer que esta inquietação se transformou em demanda política e sacudiu as bases do sistema de representação. O resultado mais visível desta sacudida foi a promulgação, pela presidenta Dilma Rousseff, da chamada Lei Anticorrupção, que abriu as comportas do sistema jurídico para a prisão e responsabilização de peixes graúdos do outro lado da história (os corruptores), e não apenas os lambaris das grandes empresas.
No limite, a Operação Lava Jato, que prendeu donos e presidentes das megaconstrutoras do País, recuperou milhões de reais desviados e apreendeu Ferraris e Lamborghinisenquanto investigava a cúpula e o submundo político, poderia (e pode) significar, pelo didatismo, um outro salto nas relações entre representantes e representados. Essa nova relação seria pautada pelas demandas por mais transparência, mais critério com os gastos públicos (a começar pelos bancos de fomento), mais interesse e participação nas decisões políticas.
No limite do limite, essa mudança poderia determinar se um governante daria ou não de ombros para a gritaria contra obras desnecessárias para a Copa do Mundo, caso dos elefantes brancos que um dia foram chamados de estádios e hoje ligam o nada a lugar-nenhum em metade das cidades-sede do Mundial. Quem quisesse se (re) eleger deveria ouvir com atenção os deles e delas de qualquer protesto de rua.
Dois anos depois dos primeiros protestos, entretanto, o que existe hoje é uma bifurcação entre esse salto e uma realidade menos passível ao otimismo. Eis o desafio de quem hoje protesta com as cores e a bandeira do Brasil (não necessariamente em ônibus menos sucateados): lidar com contradições evidentes do próprio movimento.
Antes de ir às ruas no domingo, o manifestante poderia se perguntar, por exemplo, em que momento as palavras de ordem de coros e cartazes exigem a abertura das fendas para a participação popular no processo político – o que opera nos dias úteis da semana. Ou de que maneira essa participação será ampliada caso o objetivo último dos manifestantes seja um dia atendido: a queda da presidenta Dilma Rousseff, reeleita pelo voto popular há menos de um ano. Ou como reforçar o discurso em defesa da democracia com slogans, em si, imperativos (“fora”, “vai pra Cuba”, “morte aos...”).
Mais: será que o partido que elegeu a presidenta é de fato o partido que governa? Se sim, o que explica o acordão selado durante a semana entre a presidenta-alvo dos protestos e as lideranças do PMDB? Quem costurou o acordo, ela ou o vice Michel Temer? Ou: por que partidos igualmente investigados na Lava Jato, como o PP de Jair Bolsonaro, são preservados? Se a bandeira é o fim da corrupção, qual o sentido se estender os braços ou preservar dos discursos a figura de líderes como Eduardo Cunha, igualmente suspeito e investigado?
Para responder as perguntas é preciso, muitas vezes, invocar o óbvio, e este parece estar em desuso. José Celso Martinez Correa, também em entrevista a CartaCapital, chama a atenção para uma coincidência histórica hoje presente pelas ruas: se há algo em comum entre o momento atual e os movimentos fascistas do início do século passado é a aglutinação do ódio em torno de uma única figura.
Esta aglutinação não permite identificar nuances nem aprofundar soluções (por exemplo, em relação ao sistema de financiamento de campanha, mas não só). E confunde participação popular com vontade das maiorias, hoje unidas em torno de um mal maior incorporado por um partido e governo.
O resultado do reducionismo é a agressividade, e este já desemboca em outros campos:agressões contra imigrantes supostamente protegidos pelo governo para "roubar" empregos nativos, o atentado contra o Instituto Lula, as ameaças contra quem cobre as manifestações antigoverno, a agressão contra leitores de revistas que os contestam. Fala-se em eliminar o câncer para a construção de um país mais democrático, mas aos poucos as ações materializam uma linguagem permeada de mensagens violentas e naturalizadas.
Não por acaso, a expressão “pegar em armas” já começa a surgir em discursos de defesa e ataque (outra linguagem figurada), e fica difícil dizer quando perdemos a vergonha de expor nossa inclinação bélica. Pois basta ler os comentários de portais ou o discurso de lideranças mais desmioladas para encontrar o apelo à violência como solução (não, o ex-presidente Lula não ajuda em nada, pelo contrário, instiga o ódio, quando pega o microfone para falar em “nós contra eles”).
Recentemente um dos jovens que agora querem mudar o mundo já declarou, para quem quisesse ouvir, que só um tiro na cabeça do partido inimigo resolveria a questão. É sentido figurado, mas não para quem já sofre as consequências, na pele, de uma linguagem já suficientemente violenta.
A verdade é que estamos hoje mais agressivos. Mais impacientes. Mais passíveis a soluções autoritárias e aparentemente fáceis. É quando a razão começa a se dissipar.
Em vez de ampliar os canais de participação, transparência e cobranças, a gritaria hoje intensifica a tensão política, enfraquece os alvos escolhidos seletivamente e, diante da instabilidade, possibilita que setores mais organizados tomem conta da agenda pública para emplacar suas condições de governabilidade.
É o que acontece quando líderes do PMDB no Senado, muitos deles empresários ou representantes do empresariado, negociam a rendição do governo Dilma com um pacto em torno dos próprios interesses: avançar sobre terras indígenas, privatizar parte do sistema público de saúde, atropelar normas ambientais, regular a terceirização, extinguir o Mercosul, entre outros pontos.
A chamada agenda positiva para sair da crise, resultado de erros incontestáveis do(s) governo(s), mas também do oportunismo político da oposição e da base aliada/rebelada, é hoje um flerte com o retrocesso.
Enquanto parte da população vai às ruas convicta de que o mal tem fronteiras bem definidas e demarcadas, e que basta arrancá-lo para o país fluir, o sucateamento de direitos sociais torna-se barganha para tirar a crise da agenda e manter tudo como está, inclusive o sistema de financiamento de campanha e a super-representação, no Congresso, dos mesmos grupos econômicos.
O fortalecimento do sistema político e das instituições democráticas se faz com a ampliação de direitos, da transparência e da participação popular. O desafio é encontrar qualquer dessas bandeiras nos cartazes de domingo. Quando terceirizamos essas demandas a salvadores da pátria (todos os que não representam o que não toleramos), a única agenda viável é a do ódio. Já sabemos, ou deveríamos saber, para onde ele nos leva.
Essa mobilização colocou em outro patamar a pauta de reivindicações sociais e escancarou os limites de um ciclo de desenvolvimento econômico baseado na distribuição de renda e da inclusão social a partir do consumo. Esse período de expansão colocou geladeira, estofados, aparelhos de TV e celular em muitos lares brasileiros, mas as pessoas eram ainda tratadas como gado quando entravam no ônibus, nos hospitais e nas escolas ou quando circulavam a pé por cidades mal iluminadas e serpenteadas por muros, fortificações e cercas eletrificadas.
A nomeação do mal-estar passou pela associação entre a precariedade do serviço público, incapaz de atender as demandas de uma sociedade cada vez mais exigente, veloz e conectada, ao peso da estrutura política.
Pouco depois dos primeiros protestos daquele ano, em entrevista a CartaCapital, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, autor de As Ruas e a Democracia, recorreu ao conceito de modernidade líquida do filósofo Zygmunt Bauman para fazer o seguinte diagnóstico:
“A sociedade no Brasil dos últimos 30 anos foi se tornando líquida, mais ágil, mais rápida, mais diferenciada, muito conectada – hoje somos pessoas de rede, rapidamente seremos 200 milhões de pessoas conectadas no Brasil, já temos mais aparelhos de celular do que gente. É a demonstração de que está tudo conectado. Isso tudo é vida liquida em sentido metafórico, mas a política ficou no plano sólido. Os governos, os partidos, a classe política não acompanharam as mudanças sociais. Não se ajustaram. Parte da nossa insatisfação com a Justiça, por exemplo, é que ela é lentíssima, e nós somos rapidíssimos”.
Desde a eclosão dos protestos, que logo ganharam outras bandeiras (menos corrupção, mais transparência, menos chicotadas da polícia), é possível dizer que esta inquietação se transformou em demanda política e sacudiu as bases do sistema de representação. O resultado mais visível desta sacudida foi a promulgação, pela presidenta Dilma Rousseff, da chamada Lei Anticorrupção, que abriu as comportas do sistema jurídico para a prisão e responsabilização de peixes graúdos do outro lado da história (os corruptores), e não apenas os lambaris das grandes empresas.
No limite, a Operação Lava Jato, que prendeu donos e presidentes das megaconstrutoras do País, recuperou milhões de reais desviados e apreendeu Ferraris e Lamborghinisenquanto investigava a cúpula e o submundo político, poderia (e pode) significar, pelo didatismo, um outro salto nas relações entre representantes e representados. Essa nova relação seria pautada pelas demandas por mais transparência, mais critério com os gastos públicos (a começar pelos bancos de fomento), mais interesse e participação nas decisões políticas.
No limite do limite, essa mudança poderia determinar se um governante daria ou não de ombros para a gritaria contra obras desnecessárias para a Copa do Mundo, caso dos elefantes brancos que um dia foram chamados de estádios e hoje ligam o nada a lugar-nenhum em metade das cidades-sede do Mundial. Quem quisesse se (re) eleger deveria ouvir com atenção os deles e delas de qualquer protesto de rua.
Dois anos depois dos primeiros protestos, entretanto, o que existe hoje é uma bifurcação entre esse salto e uma realidade menos passível ao otimismo. Eis o desafio de quem hoje protesta com as cores e a bandeira do Brasil (não necessariamente em ônibus menos sucateados): lidar com contradições evidentes do próprio movimento.
Antes de ir às ruas no domingo, o manifestante poderia se perguntar, por exemplo, em que momento as palavras de ordem de coros e cartazes exigem a abertura das fendas para a participação popular no processo político – o que opera nos dias úteis da semana. Ou de que maneira essa participação será ampliada caso o objetivo último dos manifestantes seja um dia atendido: a queda da presidenta Dilma Rousseff, reeleita pelo voto popular há menos de um ano. Ou como reforçar o discurso em defesa da democracia com slogans, em si, imperativos (“fora”, “vai pra Cuba”, “morte aos...”).
Mais: será que o partido que elegeu a presidenta é de fato o partido que governa? Se sim, o que explica o acordão selado durante a semana entre a presidenta-alvo dos protestos e as lideranças do PMDB? Quem costurou o acordo, ela ou o vice Michel Temer? Ou: por que partidos igualmente investigados na Lava Jato, como o PP de Jair Bolsonaro, são preservados? Se a bandeira é o fim da corrupção, qual o sentido se estender os braços ou preservar dos discursos a figura de líderes como Eduardo Cunha, igualmente suspeito e investigado?
Para responder as perguntas é preciso, muitas vezes, invocar o óbvio, e este parece estar em desuso. José Celso Martinez Correa, também em entrevista a CartaCapital, chama a atenção para uma coincidência histórica hoje presente pelas ruas: se há algo em comum entre o momento atual e os movimentos fascistas do início do século passado é a aglutinação do ódio em torno de uma única figura.
Esta aglutinação não permite identificar nuances nem aprofundar soluções (por exemplo, em relação ao sistema de financiamento de campanha, mas não só). E confunde participação popular com vontade das maiorias, hoje unidas em torno de um mal maior incorporado por um partido e governo.
O resultado do reducionismo é a agressividade, e este já desemboca em outros campos:agressões contra imigrantes supostamente protegidos pelo governo para "roubar" empregos nativos, o atentado contra o Instituto Lula, as ameaças contra quem cobre as manifestações antigoverno, a agressão contra leitores de revistas que os contestam. Fala-se em eliminar o câncer para a construção de um país mais democrático, mas aos poucos as ações materializam uma linguagem permeada de mensagens violentas e naturalizadas.
Não por acaso, a expressão “pegar em armas” já começa a surgir em discursos de defesa e ataque (outra linguagem figurada), e fica difícil dizer quando perdemos a vergonha de expor nossa inclinação bélica. Pois basta ler os comentários de portais ou o discurso de lideranças mais desmioladas para encontrar o apelo à violência como solução (não, o ex-presidente Lula não ajuda em nada, pelo contrário, instiga o ódio, quando pega o microfone para falar em “nós contra eles”).
Recentemente um dos jovens que agora querem mudar o mundo já declarou, para quem quisesse ouvir, que só um tiro na cabeça do partido inimigo resolveria a questão. É sentido figurado, mas não para quem já sofre as consequências, na pele, de uma linguagem já suficientemente violenta.
A verdade é que estamos hoje mais agressivos. Mais impacientes. Mais passíveis a soluções autoritárias e aparentemente fáceis. É quando a razão começa a se dissipar.
Em vez de ampliar os canais de participação, transparência e cobranças, a gritaria hoje intensifica a tensão política, enfraquece os alvos escolhidos seletivamente e, diante da instabilidade, possibilita que setores mais organizados tomem conta da agenda pública para emplacar suas condições de governabilidade.
É o que acontece quando líderes do PMDB no Senado, muitos deles empresários ou representantes do empresariado, negociam a rendição do governo Dilma com um pacto em torno dos próprios interesses: avançar sobre terras indígenas, privatizar parte do sistema público de saúde, atropelar normas ambientais, regular a terceirização, extinguir o Mercosul, entre outros pontos.
A chamada agenda positiva para sair da crise, resultado de erros incontestáveis do(s) governo(s), mas também do oportunismo político da oposição e da base aliada/rebelada, é hoje um flerte com o retrocesso.
Enquanto parte da população vai às ruas convicta de que o mal tem fronteiras bem definidas e demarcadas, e que basta arrancá-lo para o país fluir, o sucateamento de direitos sociais torna-se barganha para tirar a crise da agenda e manter tudo como está, inclusive o sistema de financiamento de campanha e a super-representação, no Congresso, dos mesmos grupos econômicos.
O fortalecimento do sistema político e das instituições democráticas se faz com a ampliação de direitos, da transparência e da participação popular. O desafio é encontrar qualquer dessas bandeiras nos cartazes de domingo. Quando terceirizamos essas demandas a salvadores da pátria (todos os que não representam o que não toleramos), a única agenda viável é a do ódio. Já sabemos, ou deveríamos saber, para onde ele nos leva.
Por Matheus Pichonelli, na revistaCartaCapital:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/08/agenda-do-odio-e-os-atos-de-domingo.html
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