quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

NA PRAIA

Em homenagem ao verão, este texto de Paulo Mendes Campos é meu presente de Natal para a internet. Sejamos tranquilos..


Funciona esplêndida em cima da praia a máquina do sol. Largamente abre-se o espaço. Custa admitir que a vida se cava em escritórios depressivos, nas jaulas dos guichês, repartições, filas, cemitérios do ser humano. Amo esta distância, hoje verde, este cheiro de sal lavado, esta inquieta serenidade. Seria um absurdo mitológico se um submarino atômico surgisse à tona e nos destruísse, a nós que apenas pedimos neste momento um pouco de intimidade com as raízes da vida.

Aqui dispomos dos instrumentos essenciais a um instante de equilíbrio: a persistência do coração, o trabalho do fígado e dos rins, a eliminar os venenos, água salgada, luz, muita luz, elementos suficientes ao mistério linear de viver e sentir. Não fosse uma gaivota faminta, nem perceberíamos este espinho interior a denunciar as vastas carências do homem, sofrimento, pressentimento, aniquilamento.

Há pequenos vermes ocultos na areia para que a nossa tranquilidade não chegue a ser alarmante. Obrigações a cumprir, amores a sonhar, coisas a providenciar formam figuras abstratas que se deformam, frágeis, e se quebram. Baste o sol, baste o céu, baste a escura arraia da vida a dormir maldormida em nossas profundezas submarinas.

Penso em Ícaro às vezes, despenhando-se do rochedo a fim de legar ao mundo, segundo o bom senso da poesia, um fracasso importante. Em geral, nem penso: as nuvens me atrapalham o entendimento, os ventos me dispersam em outras idades, já não sei quem sou, enquanto uma esquadrilha de aviões parece conferir meu corpo, esquecido agora de que é um triste corpo à espera dos monstros do meu juízo final.

Hoje o homem vive simultaneamente em todas as regiões da Terra. Dói-lhe o mundo inteiro como se fosse uma extensão sensível de seu corpo: os postes tlelegráficos e as ondas de rádio são as c´lulas nervosas deste imenso organismo a transmitir-lhe impressões e dores em forma de notícias. A primeira página do jornal é o gráfico dessa vida nervosa suplementar, estampando diariamente a curva de nossas tristezas universais, somando as parcelas do mundo em nosso comportamento mental e dividindo a nossa mal distraída atenção pelos quatro recantos da Terra. Nunca a unanimidade humana foi tão intensa. Estamos interessados em todos. Das experiências termonucleares às pesquisas sobre a dor reumática. Das multidões esfomeadas da Índia à pobre menina brasileira que furtou um pão. Das reviravoltas políticas da África às usinas de alumínio do Canadá.

Por isso mesmo, mereço este dia de praia e de sol, fechado por algum tempo nesta felicidade deslumbrante feita de egoísmo orgânico. Hoje eu não sofreria nem por mim mesmo. Nosso destino é morrer. Mas é também nascer. O resto é aflição de espírito.

Em: O Amor Acaba - Crônicas líricas e existenciais, de Paulo Mendes Campos (Civilização Brasileira, 2008)
http://aspasnatiaspas.blogspot.com.br/2014/12/na-praia.html

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