Eberth Vêncio, Revista Bula
“Perdi um amigo”, ele disse. Não que o dito cujo tivesse se lascado e morrido. Não era nada isso. Não que ele estivesse nalgum paradeiro desconhecido, errando de maneira insana, a esmo, sem eira nem beira. Também não. Ele apenas supunha que alguém descartaria a sua amizade. Era isso.
Ele não quis desdenhar da situação, dizer que não estava nem aí pra paçoca. Pois pertencia àquele tipo de gente cujos amigos podiam ser contados nos dedos que ainda assim sobrariam falanges. Daí o desassossego sincero, condoído, que sentia por causa do entrevero. “Nos dias de hoje, perder um amigo não é brinquedo, não é coisa que se comemore”— concluiu, mais frustrado que uma freira morta ao bater na porta do céu e descobrir que, na verdade, ele nunca existira.
Até onde pode suportar, o meu amigo se manteve naquele papel de psicanalista sonolento, doido pra cirurgia terminar logo, pois o tema lhe incomodava sobremaneira, ainda mais que o blá-blá-blá enfadonho do seu comparsa de jaleco branco não condizia quase nada com as suas convicções políticas e o seu estilo de vida.
Incluindo a paciente de barriga rasgada, havia mais quatro pessoas dentro daquela sala cirúrgica, as quais só não aplaudiram a proposta, ou porque estavam sob grogues sob efeito de anestesia, ou em respeito ao recém nascido nu e ensebado que reclamava do seu berço esplêndido, alheio àquela inflamada apologia ao cerceamento da liberdade política. O meu amigo ginecologista, que teve o irmão caçula de 14 anos sequestrado e desaparecido pelo regime autoritário em meados da década de 1970, não conseguiu mais manter a pose.
“Quer dizer então que vocês são favoráveis à repressão e à tortura?” — ele perguntou, enquanto secava as mãos lambrecadas com molho à bolonhesa. No fundo, no fundo, meu amigo doutor esperava que todos ali baixassem o facho, mostrando-se constrangidos por defenderem a falta de liberdade de expressão, a truculência e o totalitarismo. Porém, alguém emendou assim: “ — Se for para o bem do meu país, que seja”.
Aquele médico especializado em perrengues de mulheres entendeu que o papo já tinha dado. Então, calou (sem consentir), sacou as luvas, jogou-as no cesto de lixo, desejou a todos um excelente dia, e foi tomar cappuccino com lascas de laranja na cantina do hospital para espairecer as ideias. Sentia-se miserável e desamparado ao extremo. Como um bebê que acabasse de nascer. Se o irmão entrasse agora pela cafeteria, como seria o seu rosto?"
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