quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Guia rápido para tomar o poder e manter as amizades


Eberth Vêncio, Revista Bula

“Perdi um amigo”, ele disse. Não que o dito cujo tivesse se lascado e morrido. Não era nada isso. Não que ele estivesse nalgum paradeiro desconhecido, errando de maneira insana, a esmo, sem eira nem beira. Também não. Ele apenas supunha que alguém descartaria a sua amizade. Era isso.

Ele não quis desdenhar da situação, dizer que não estava nem aí pra paçoca. Pois pertencia àquele tipo de gente cujos amigos podiam ser contados nos dedos que ainda assim sobrariam falanges. Daí o desassossego sincero, condoído, que sentia por causa do entrevero. “Nos dias de hoje, perder um amigo não é brinquedo, não é coisa que se comemore”— concluiu, mais frustrado que uma freira morta ao bater na porta do céu e descobrir que, na verdade, ele nunca existira.

O meu amigo é médico ginecologista e, naquele dia, ajudava um colega de ofício a “rasgar a barriga de uma danada” (expressão chistosa, certamente chula e de mau gosto, que ele gostava de usar quando se referia a uma cesariana). Vocês sabem: com o tempo, à medida que a tarimba e a frieza vão crescendo no tutano dos doutores, eles tendem a conversar amenidades, colocar as fofocas em dia, trocar receitas de bolos, arquitetar adultérios, negociar os carros, desvendar os mistérios das novelas, e renovar o estoque de piadas, principalmente naquela fase de fechamento da pança de um paciente, quando então suturam abdomes com cadarços feitos de tripa de carneiro, uma etapa operatória em que a adrenalina já retornou aos níveis corriqueiros dentro dos canudos arteriais, e o relaxamento, enfim, tomou conta da equipe. Desconfio até que, despidos dos seus jalecos respingados de catchup e groselha, eles sorvam generosas pipetas de chope ali mesmo, assim que concluídos os curativos. Eu o faria, ora.

Arrancado o baby do esponjoso claustro uterino, o assunto naquela manhã foi o resultado das eleições presidenciais e o atual momento político brasileiro, que era uma seara que ele até preferiria evitar, tendo em vista o elevado grau de intolerância e radicalismo que se observara durante o período da campanha eleitoral e após o anúncio dos resultados, principalmente nas redes sociais, um espaço virtual que mais parecia pau de dar em doido, um octógono de vale-tudo onde todos escreviam o que desse na telha; o criadouro das falácias, da indelicadeza e da bravata selvagem dos néscios.

Até onde pode suportar, o meu amigo se manteve naquele papel de psicanalista sonolento, doido pra cirurgia terminar logo, pois o tema lhe incomodava sobremaneira, ainda mais que o blá-blá-blá enfadonho do seu comparsa de jaleco branco não condizia quase nada com as suas convicções políticas e o seu estilo de vida.

A certa altura do monólogo purulento que supurava ira, rancor e preconceito racial, o exímio espadachim hipocrático — que não pudera votar no candidato da sua predileção porque se encontrava em viagem de compras em Nova York, esta sim, uma cidade moderna, decente, com gente linda, limpa, saudável, educada, e de inglês fluente, ao contrário da merda desse país (foi assim que ele definiu a Big Apple e o Brasil) — afirmou que era plenamente favorável ao golpe militar, à volta da ditadura, a fim de colocar o país de volta no pau-de-arara, ou melhor, nos trilhos, acabando de vez com tanta roubalheira, esquemas de corrupção e outras sacanagens governamentais engendradas, em especial, contra a elite brasileira da qual ele jurava não fazer parte.

Incluindo a paciente de barriga rasgada, havia mais quatro pessoas dentro daquela sala cirúrgica, as quais só não aplaudiram a proposta, ou porque estavam sob grogues sob efeito de anestesia, ou em respeito ao recém nascido nu e ensebado que reclamava do seu berço esplêndido, alheio àquela inflamada apologia ao cerceamento da liberdade política. O meu amigo ginecologista, que teve o irmão caçula de 14 anos sequestrado e desaparecido pelo regime autoritário em meados da década de 1970, não conseguiu mais manter a pose.

“Quer dizer então que vocês são favoráveis à repressão e à tortura?” — ele perguntou, enquanto secava as mãos lambrecadas com molho à bolonhesa. No fundo, no fundo, meu amigo doutor esperava que todos ali baixassem o facho, mostrando-se constrangidos por defenderem a falta de liberdade de expressão, a truculência e o totalitarismo. Porém, alguém emendou assim: “ — Se for para o bem do meu país, que seja”.

Aquele médico especializado em perrengues de mulheres entendeu que o papo já tinha dado. Então, calou (sem consentir), sacou as luvas, jogou-as no cesto de lixo, desejou a todos um excelente dia, e foi tomar cappuccino com lascas de laranja na cantina do hospital para espairecer as ideias. Sentia-se miserável e desamparado ao extremo. Como um bebê que acabasse de nascer. Se o irmão entrasse agora pela cafeteria, como seria o seu rosto?"

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