Onde a religião vira um problema
Estimados leitores, Feliz Ano Novo.
A minha porção judaico-cristã – e eu acredito firmemente que o meu nome Carneiro da Cunha um dia tenha tido um Cohen lá no final, celebra os dois anos novos e acha pouco.
Como a maioria de vocês, creio que várias religiões já passaram por mim, deixando traços. Mestiço brasileiro até a raiz, eu tenho que ter tido algum ancestral tupinambá oferecendo um pouco de moqueca de cérebro inimigo a Tupã; certamente tataravós que curtiam algum orixá numa boa; pelo menos uma avó carola católica (com aquele quadro "Jesus à espera de um transplante" colocado na parede do quarto, pra me apavorar ainda criancinha) e, em algum lugar, em algum momento antes do século 17, os estimados Cohen.
No entanto, na minha casa nunca se falou em igreja alguma. Meus pais nos levaram à missa por uns tempos, e a gente fez primeira e última comunhão, momento em que eu esperava algum tipo de êxtase místico, mas que culminou com uma casquinha de sorvete sem o dito cujo, um enorme corte de barato, se me permitem a observação.
Nunca mais dei a menor bola pra qualquer coisa religiosa, o que é mais ou menos o normal no Brasil. A primeira vez que alguém perguntou qual a minha igreja foi nos Estados Unidos, eu já no High School. Primeiro falei que não tinha, e isso pegou muito mal no país do Bible Belt. Então falei que era católico, o que era pior ainda naqueles cantos.
Voltei dos Estados Unido sabendo cozinhar, fazer apple pies e pancakes com mapple syrup, e dotado de muito medo de armas – que eles adoram e possuem aos milhares – e igrejas, que eles também possuem e adoram tanto quando armas. Nunca tentaram me converter tanto quando durante meu tempo no Michigan. Era Testemunha de Jeová batendo na porta, mórmons com camisas brancas e rostos rosados, batistas de tantas denominações que eu sinceramente não saberia nomear, presbiterianos e mais algumas seitas, algumas delas provavelmente de adoradores do diabo, porque assim funciona a democracia americana. A única seita que não tentou me trazer para o seu seio foi, talvez por conhecer o meu passado, a católica.
No mundo onde eu vivo a maior parte do tempo, dos jornalistas, escritores, pessoal de cinema, ninguém é religioso. Nunca tive contato próximo com crentes. Católicos eu conheço, e a maioria reza uma ave-maria eventualmente, mas acaba aí a coisa. Os judeus entre os meus amigos, como meus antepassados, espero, são seculares, e o judaísmo é mais um fenômeno cultural. Conhecem, vivem de alguma forma, mas não misticamente falando.
Por tudo isso, eu não faço ideia de como funciona a Marina Silva. Não entendo como uma pessoa pode ser pastora de uma seita e querer ser presidente da República. A República é laica, o oposto de uma seita. Como alguém pode querer ser pastor, acreditando profundamente que fala diretamente com um deus, e presidente da uma República não apenas laica, mas onde vivem milhões de pessoas das mais diferentes crenças, e que não têm nada que ver com as crenças dela?
Já na minha experiência de zagueiro em vestiários cada vez mais crentes, acho que a religião se torna, facinho, uma força de divisão. Não a crença em si. os ensinamentos de um ou outro místico, Jesus, Maomé, Buda, são, na maioria do tempo, centradas em ideias do bem ou bom comportamento social. Mas isso vale para quem está dentro. Quem está fora se torna mais do que um inimigo, uma ofensa. Para o crente – que nunca se sente muito seguro do que acredita, talvez por não existir nenhuma prova, talvez por ele suspeitar de como aquilo tudo é historinha de fadas – quem não acredita ameaça profundamente a sua escassa segurança. Quem não acredita precisa ser convertido ou eliminado.
Alguém aí leu sobre a Inquisição? Alguém leu sobre os horrores do cisma da igreja ocidental, católicos e protestantes, quantas mortes, quando sofrimento, por séculos? Alguém leu sobre o milênio de guerras entre cristãos e islâmicos? Sobre o lindo episódio em que Vasco da Gama tomou o navio, cortou narizes e orelhas e queimou 240 pessoas, homens, mulheres e crianças, todos muçulmanos em peregrinação?
O Brasil vive uma paz muito particular. Ontem eu estava trabalhando com duas pessoas, uma de origem árabe, outra voltando de Israel, numa boa. Esse é um dos nossos grandes tesouros e ele existe porque não somos fanáticos. A religião aqui se tornou, por muito tempo, algo pessoal, cada um com a sua. O crescimento dessas seitas fanáticas é uma ameaça a essa estabilidade, e vemos isso no tratamento que querem dar aos gays, aos umbandistas, a quem não vive segundo os preceitos de suas seitas, como se tivéssemos qualquer coisa a ver com isso.
Nunca me senti ameaçado ou incomodado pela religião no Brasil. Mais do que tudo, espero que isso continue assim, para meu filho crescer em um país saudável, ao menos nessa área tão importante. Para mim, a relação de Marina com a religião é dela, enquanto é dela. Mas Marina já deixou as suas crenças influenciarem decisões importantes como política, não como pessoa. Ela votou contra transgênicos, é contra a pesquisa com células-tronco, contra o casamento para todos, e não por motivos legais ou constitucionais, mas religiosos. E ela decide para todos nós, inclusive quem quer muito o resultado da pesquisa científica para si ou seus filhos, e não quer nada com religião. Ela topa o ensino do absurdo que é o criacionismo, nas escolas, como ciência. Isso afeta a nação, de forma definitiva, e por isso, ela não é, para mim, um candidato como os outros. Eu não sinto que Dilma ou Aécio nos ameacem. Ambos são seculares e republicanos. Um presidente precisa disso, ou o país paga o preço. E temos tantos preços a pagar, que não precisamos de mais esse. Simples assim, e mais nada.
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