Este texto encerra uma proposta iniciada nesta outra publicação: A carga tributária, os "tributos de país desenvolvido" e os serviços públicos brasileiros. Inspirados numa ideia apresentada aqui, pelo Miguel do Rosário, eles tentam enxergar, sob uma nova perspectiva, a tão comentada (e falaciosa) relação entre a carga tributária e a expectativa de qualidade dos serviços prestados pelos governos brasileiros [1].
O primeiro texto tentou mostrar que, como serviços são custeados com recursos financeiros, e não com percentuais abstratos, as suas quantidade e qualidade não tem relação direta com a carga tributária, mas sim com a efetiva arrecadação dos governos. Assim, não existiria qualquer lógica em, tendo em vista nossa carga tributária, avaliar comparativamente a atuação dos governos brasileiros e exigir deles serviços públicos “de 1º mundo” - se, na verdade, aqui, conta-se com bem menos recursos que os governos de países desenvolvidos.
Em outras palavras: talvez nossos serviços sejam de 3º mundo porque a nossa arrecadação, ao contrário do que parece, é de país pobre.
Como já indicado no fim do texto anterior, a simples comparação da arrecadação total de cada país, apesar superar parte do problema, também não oferece um critério muito seguro. Diversas variáveis presentes na realidade de cada país impõem desafios específicos, que criam necessidades distintas e influem nos custos dos serviços, complicando a utilização da arrecadação total como critério para a comparação.
Como já indicado no fim do texto anterior, a simples comparação da arrecadação total de cada país, apesar superar parte do problema, também não oferece um critério muito seguro. Diversas variáveis presentes na realidade de cada país impõem desafios específicos, que criam necessidades distintas e influem nos custos dos serviços, complicando a utilização da arrecadação total como critério para a comparação.
Entre outros fatores, os países diferem entre si pelo tamanho do território; pelo tamanho da população; pela riqueza já acumulada; pela forma de Estado; pelo sistema de governo; pelo clima; pela morfologia do relevo e pela geologia; pela disponibilidade de recursos naturais; e, como dito, mais uma infinidade de variáveis. Em maior ou menor grau, todas elas podem afetar a quantidade de serviços públicos necessários, bem como o custo de sua execução pelos governos.
Desta forma, uma comparação razoável entre dois ou mais países, no que concerne à adequação (ou não) entre o preço pago pela sociedade, por meio de tributos, e a qualidade dos serviços prestados, não pode deixar de levar em conta os fatores que os diferenciam.
Isto é: não dá, por exemplo, pra avaliar comparativamente os serviços públicos prestados por dois Estados (A e B) com a mesma arrecadação, se A tem o triplo da população de B, espalhada por um território 34 vezes maior. E são exatamente essas as relações entre as arrecadações e os tamanhos dos territórios e populações do Brasil (A) e Reino Unido (B) [2] [3].
Como disse, sei que um enorme número de variáveis torna a comparação extremamente complexa. Por outro lado, este blogueiro não dispõe do know-how e da estrutura necessários para uma análise mais profunda, que leve em conta todos esses fatores, além das relações entre eles. E, ainda que os tivesses, um publicação num blog, feita nas horas vagas, obviamente não seria lugar para isso.
Contudo, desde que feita a ressalva de sua superficialidade, pode ser bem oportuno colacionar e comparar os dados referentes à arrecadação de diversos países e sua proporção em relação a duas variáveis bem acessíveis: a área do território e o tamanho da população. Ainda que superficial, ela parece indicar claramente o descabimento do mito segundo o qual o brasileiro pagaria tributos de 1º mundo em troca de serviços de 3º mundo.
Na verdade, considerados os dois fatores referidos, os recursos disponíveis para os nossos governos são bem menores que os arrecadados nos países desenvolvidos.
População
A relação entre o tamanho da população e o volume de recursos necessários para a prestação de serviços públicos é, me parece, intuitiva. Mais “clientes” importa na necessidade de mais profissionais e de uma estrutura maior, além dos demais custos específicos de cada prestação. Mesmo considerando a economia de escala, colocar serviços de atenção à saúde à disposição de 10 milhões de pessoas, por exemplo, não pode ter o mesmo custo de fazê-lo para 200 milhões de pessoas.
Assim, supondo idênticas as arrecadações totais, é inviável exigir de um país a mesma qualidade dos serviços prestados em outro, se a população do segundo é 3 ou 4 vezes menor que a do primeiro. O mesmo volume de recursos, que basta em um deles, com sua reduzida população, pode não ser suficiente para prestar serviços para a enorme população do outro.
Aqui, como previsto, a comparação da arrecadação total torna-se imprestável.
Mas, tomando a arrecadação de cada país e a sua população, é possível obter um índice um pouco mais útil, ainda que falho: o da arrecadação por habitante. Dá pra saber, com isso, de quanto dispõe cada Estado para prestar todos os serviços públicos para cada um de seus habitantes – e, aí, com um pouco mais de propriedade, avaliar comparativamente se ele faz bom uso desses recursos.
Da mesma forma, esse mesmo cálculo permite ter uma ideia do outro lado da mesma moeda: quanto cada habitante de cada país paga pelos serviços que recebe – e, com isso, quem sabe, concluir se ele paga caro por serviços ruins.
E o que revela esse índice?
Bem, o mito dos tributos altos para serviços ruins adora comparar os serviços públicos brasileiros (e nossos hospitais, ruas, estradas, metrôs, escolas, aeroportos etc) aos geridos pelos gestores públicos noruegueses, suecos e japoneses, por exemplo. Diz ele, o mito, que nossa carga tributária é equivalente a deles (nos dois primeiros casos, na verdade, é menor [4]), mas nossos serviços não são iguais, o que os tornaria caros.
Contudo, enquanto o Brasil arrecada U$3.875 por habitante, a Noruega arrecada U$23.456 por habitante; a Suécia, U$19.704; e o Japão, coitadinho, U$ 9.921. Isto é: os governos noruegueses dispõem de 6 vezes mais recursos por habitante que os seus correlatos brasileiros para prestarem serviços públicos; e, reverso da moeda, na média, cada cidadão brasileiro paga 1/6 do que o cidadão norueguês paga pelos serviços públicos.
Na outra ponta, a nossa carga tributária, sempre considerada gigantesca, garante aos governos brasileiros uma arrecadação per capita semelhante à da Bielorrússia, Romênia e Turquia.
Em verdade, tomados os dados das 70 maiores economias do mundo [5], o Brasil é apenas o 33º colocado em arrecadação por habitante. Ele fica atrás, por exemplo, além dos países incluídos no gráfico acima, da Áustria (U$18.562); Suíça (U$13.623); Itália (U$12.285); Irlanda (U$10.827); Nova Zelândia (U$8.867); e Singapura (U$7.778). Mais próximos a nós, ficam Argentina (U$5.434); Qatar (U$5.288); Taiwan (U$3.224); Ucrânia (U$ 2.745); África do Sul (U$ 2.685); e Cazaquistão (U$ 2.694).
E, aí, será que dá mesmo pra dizer que estamos pagando “preço de 1º mundo por serviços de 3º mundo”?
Território
Ainda que outas questões a afetem, a proporção direta entre o tamanho da “área de atuação” e um custo maior na prestação de serviços também não parece difícil de ser aceita, especialmente se a ocupação, ainda que desigual, estiver disseminada por todo o território. Um país maior exige estruturas viárias e de transportes em geral mais amplas; impõe a criação de instituições estatais descentralizadas (justiça, fiscalização, e administração propriamente dita); requer a instalação de hospitais (e demais serviços de saúde) e escolas suficientemente próximas das diversas concentrações populacionais; etc.
Abstraídos outros fatores muito relevantes (como o clima), será que a prestação de serviços públicos em toda a Dinamarca, por exemplo, poderia ter o mesmo custo total que no Brasil? Afinal, trata-se de um país com área igual a do Estado do Rio de Janeiro, que representa 0,5% do território brasileiro.
Aqui, como previsto, novamente, a comparação da arrecadação total parece imprestável como critério para avaliar a adequação da qualidade dos serviços prestados.
E, novamente, tomando a arrecadação de cada país e a área de seu território, temos um índice ainda imperfeito, mas um pouco mais útil: o da arrecadação por Km². Com ele, afere-se, pela média, aproximadamente quanto cada Estado dispõe para prestar todos os serviços necessários em cada Km² de seu território.
Aqui, antes de apresentar os números, que, mais uma vez, parecem desautorizar o mito dos serviços caros e de má qualidade, uma digressão parece pertinente.
Neste ponto específico, não é possível desconsiderar que os países hoje chamados desenvolvidos, em períodos mais ou menos recentes, foram destino de maciças transferências de recursos oriundos de suas colônias ou zonas de influência. Para além de qualquer disputa ideológica acerca da legitimidade e justiça deste processo, o fato é que montanhas de recursos foram transferidas para aquelas potências.
Assim, hoje, muitos países desenvolvidos contam com uma grande infraestrutura consolidada, parcialmente construída com recursos extraídos de suas antigas colônias. Os magníficos, e por nós tão invejados, metrôs de Londres e Paris, por exemplo, foram em parte construídos numa época em que a Inglaterra e a França contavam com grandes volumes de recursos oriundos da atividade imperial.
De qualquer forma, independente da origem dos recursos utilizados para tal, os países desenvolvidos já contam com uma infraestrutura básica construída e consolidada. São hospitais, museus, universidades, escolas, saneamento básico, linhas férreas, estradas, parques etc prontos e disponíveis pra uso, sem o custo de sua construção. Portanto, enquanto a arrecadação atual desses países custeia apenas a manutenção, modernização e expansão destes sistemas, países como o Brasil ainda têm muito a construir – contando apenas com os recursos auferidos pela arrecadação tributária ou mobilizados de outras formas livres.
Mas, apesar disso, pode ser interessante comparar as arrecadações por km² de cada país.
E, aqui, mais uma vez, parece que os dados não dão suporte ao mito do país que arrecada muito, mas presta serviços de 3º mundo. Na verdade, daquela lista das 70 maiores economias do mudo, o Brasil aparece apenas 47º lugar em termos de arrecadação por km², com um montante de 93.616 U$/Km² [6].
Retomando o exemplo do Reino Unido, com sua arrecadação equivalente a nossa, isso quer dizer que os governantes ingleses contam com uma arrecadação por km² 34 vezes maior que a brasileira, já que eles arrecadam cerca de 3.220.000 U$/Km².
E o Reino Unido é apenas o 9º no ranking das maiores arrecadações por Km², atrás de países como a Holanda, que arrecada 72 vezes mais que o Brasil (ou 6.711.650 U$/Km²), e a Coréia do Sul e sua arrecadação de 4.040.754 U$/Km² (ou 43 vezes a nossa arrecadação).
Por outro lado, com arrecadação mais próxima da brasileira, além daqueles inclusos no gráfico acima, temos países como Tailândia (177.073 U$/Km²), Bielorrússia (172.236 U$/Km²), Bangladesh (170.688 U$/Km²) e Filipinas (168.704 U$/Km²).
E a pergunta se impõe: comparada com os números acima, nossa arrecadação realmente é de 1º mundo? Ela consegue sustentar o mito de que, por termos uma carga tributária alta, pagamos impostos de 1º mundo e recebemos serviços públicos de 3º mundo? Seria viável esperarmos que o Estado nos entregue um metrô londrino ou uma anto-estrada alemã, custeados apenas com uma arrecadação 30 vez menor que a do Reino Unido ou da Alemanha?
E, indo além, será que realmente se sustenta o discurso fácil, e paralisante, de que sempre existem recursos para todas as necessidades públicas, mas não existe vontade política para atendê-las? Será que procede o mantra, quase onipresente, segundo o qual os governos arrecadam dinheiro de sobra, mas elessão todos ladrões e/ou incompetentes e, só por isso, nossos serviços e infraestrutura são péssimos?
Esse discurso impede a valorização do pouco que conseguimos construir com bem pouco e das soluções que nos permitiram essas realizações. As resposta pronta, acrítica e fácil de que, sim, sempre, o dinheiro existe, mas motivos escusos impedem a solução dos problemas, faz com que não se busque uma saída que se adeque à escassez de recursos e com que não valorizemos quem o faz - mas, claro, não resolve tudo.
Não se trata de deitar em berço esplendido, fingindo que "está tudo bem"; mas de superar esse discuso enraizado, colado no complexo de vira-latas, que, por intransponível e irreal, nos afasta da apreciação dos problemas reais e da procura por soluções. Essa ideia de que, aqui, nada presta apenas porque eles(sempre eles) são incompetentes/corruptos/fisiológicos - já que o dinheiro existe - só nos faz desesperançar e esperar por uma salvação - ou um salvador, que perigo!
E, indo além, será que realmente se sustenta o discurso fácil, e paralisante, de que sempre existem recursos para todas as necessidades públicas, mas não existe vontade política para atendê-las? Será que procede o mantra, quase onipresente, segundo o qual os governos arrecadam dinheiro de sobra, mas elessão todos ladrões e/ou incompetentes e, só por isso, nossos serviços e infraestrutura são péssimos?
Esse discurso impede a valorização do pouco que conseguimos construir com bem pouco e das soluções que nos permitiram essas realizações. As resposta pronta, acrítica e fácil de que, sim, sempre, o dinheiro existe, mas motivos escusos impedem a solução dos problemas, faz com que não se busque uma saída que se adeque à escassez de recursos e com que não valorizemos quem o faz - mas, claro, não resolve tudo.
Não se trata de deitar em berço esplendido, fingindo que "está tudo bem"; mas de superar esse discuso enraizado, colado no complexo de vira-latas, que, por intransponível e irreal, nos afasta da apreciação dos problemas reais e da procura por soluções. Essa ideia de que, aqui, nada presta apenas porque eles(sempre eles) são incompetentes/corruptos/fisiológicos - já que o dinheiro existe - só nos faz desesperançar e esperar por uma salvação - ou um salvador, que perigo!
O Brasil não é um país rico. Nosso PIB está entre os 10 maiores, mas, além de ser bem inferior ao dos primeiros colocados, ele tem que ser distribuído pela 5ª maior população do mundo, espalhada num território continental. O Brasil é um país pobre, ou em desenvolvimento, como queiram - e a miragem do PIB que parece de rico não pode escamotear essa verdade e uma outra.
A verdade é que, apesar dos recursos escassos, nós até que já fizemos alguma coisa. E, se conseguimos isso, com muito trabalho e com as escolhas certas, podemos fazer muito mais.
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Território x população (ou brincando com números)
Por fim, num último esforço de “análise”, tão pouco sofisticado quanto os anteriores e ainda mais frágil que eles, brincando com os números, fabriquei um índice que agrega os dois fatores: área do território e tamanho da população.
Imagino que seja mais dispendioso prestar serviços para muita gente em grandes áreas, que para uma população pequena esparramada nessa mesma área; da mesma forma, uma população pequena concentrada em um pequeno território deve impor menos custos que uma grande população concentrada no mesmo espaço.
Obviamente, não tenho ideia das relações que podem se estabelecer entre estes dois fatores, bem como entre eles com aquele referente à distribuição da população pelo território. Assim, ARBITRARIAMENTE, dividi a arrecadação de cada país pelo produto da área de seu território com o seu número de habitantes.
Talvez, de tão arbitrário, esse novo índice não signifique mesmo nada – e, por isso, ele nem devesse ser citado (por isso, aliás, a conclusão deste texto foi incluída antes deste trecho). Mas os números são interessantes demais para não serem sequer jogados aqui, ainda que com apenas este comentário: por este índice, o Brasil tem a 61ª arrecadação (por hab*Km²), na frente apenas da Rússia, Argélia, Paquistão, Indonésia, Índia, Nigéria e China [7].
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