por Mino Carta, em Carta Capital
Anos atrás, uma jovem estagiária de CartaCapital às vésperas de um fim de semana longo, destes que englobam prazerosamente sexta, ou segunda, observou: “É agora que os brasileiros pegam seus carros e vão para a praia”. Ergueram-se das mesas de trabalho expressões entre atônitas e perplexas. A estagiária de família burguesa cogitava da sua turma. Embora os índices de pobreza tenham diminuído durante os mandatos de Lula, 5% apenas da população ganha de 800 reais para cima. Nesta fatia exígua, cabem nababos, burguesotes e remediados.
A diferença econômica e social entre uns e outros é um abismo, com todas as consequências, da miséria à ignorância, do oblívio na inconsciência da cidadania às altas taxas de criminalidade. Não é esta a plateia para o espetáculo oferecido por eventos e atores da cena política. No momento, como sabemos, a ribalta fica em Brasília. Mas a maioria está longe do enredo, mentalmente antes que fisicamente, tolhida em seus limites, muitos nem sequer o percebem.
Leio no diário La Repubblica um artigo de Ilvo Diamanti, pensador agudo. Refere-se a mais um escândalo eclodido na Itália à sombra da organização do G-8, inicialmente previsto para a Ilha da Maddalena e depois transferido para L’Aquila, a cidade semidestruída pelo recente terremoto dos Abruzos. É uma história de propinas, festanças e moçoilas dadivosas, a envolver graúdos funcionários governistas e empreiteiras, tudo dentro dos padrões consagrados. Trata-se, escreve Diamanti, “de uma encenação francamente amoral, na qual a dor mistura-se com a especulação, a tragédia com a corrupção”.
Diamanti encara a plateia indiferente, no sentido de que não há diferença “entre justo e injusto, juízes e malfeitores, espertalhões e honestos, bons e maus. Porque maus, espertalhões e malfeitores garantem ibope”. A análise é implacável: à meia-voz, os espectadores se queixam e declaram sua desconfiança em relação aos políticos, “especialmente os de esquerda, porque, antes e mais que os demais, levantaram a questão moral”. Para ficar eles próprios, ao cabo, enredados.
“Daí o risco – prossegue Diamanti – de tão acostumados com o escândalo que, desta forma, deixa de ser escândalo. E leva mesmo a olhar com suspeita quem se escandaliza, para tratá-lo, com ácida ironia, como profissional da indignação.” E mais adiante: “Por trás disso tudo, do difuso desencanto do nosso tempo, verifica-se a mutação da relação entre sociedade e política”. A interferência da mídia é imediata e imediatista, faltam-lhe condição e tempo para mediar e a política e os líderes encontram-se frente a frente com os eleitores, “de maneira assimétrica e desequilibrada”.
A terrível reflexão de Diamanti não vale somente para a Itália berlusconiana, mas também para um vasto pedaço de mundo, em primeiro lugar Europa e Estados Unidos. Vale também, em boa parte, para a minoria dos brasileiros confiantes em uma mídia que não media, por razões diversas daquelas verificáveis em outros cantos. Até os comunicadores nativos não conseguem dar-se conta do que ocorre, na convicção de serem lidos, ouvidos, vistos. Acreditam, portanto, estar habilitados, ainda e sempre, a ditar regras e orientar escolhas, eleitorais inclusive. Acreditam? Assim parece, a julgar pelo ímpeto com que atuam.
Enganam-se, creio eu. Desde 2002, desde quando um ex-operário foi eleito presidente. E tal é o fato mais importante, decisivo mesmo, da história recente, mais significativo do que o próprio governo Lula. A maioria identificou-se finalmente com um igual em lugar do costumeiro engravatado, sem falar dos ditadores. Os brasileiros que pegam seus carros e vão para a praia não gostam daquilo que daí decorre. Não podem, porém, dobrar o destino à sua vontade.
Pelos séculos, cuidaram de dilapidar o patrimônio Brasil, ou não souberam aproveitá-lo a bem do País. Patrimônio extraordinário, sacrificado em nome dos seus interesses individuais e de classe, conquanto a natureza continuasse a se mostrar generosa. Penso nas palavras de Diamanti e concluo que não se aplicam à maioria da nação brasileira. Eis aí mais uma vantagem que o Brasil leva em um jogo que, para nós, está no começo. Inclusive, pela transparente impossibilidade de comunicação entre a mídia e quem não lê porque não foi equipado para tanto e quem não procura a Globo para ver o Jornal Nacional, prefere-lhe a novela e o Faustão.
Alguns enxergam nesse campo as carências do Brasil contemporâneo, as dificuldades de um país que engatinha. Vejo o contrário, já que tanto há ainda por fazer. O tempo trabalha a favor da esperança.
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