Não tem jeito. A blogosfera deve conquistar um trabalho independente da mídia tradicional. Mas não é a hora. O artista deve ir aonde o povo está, e se a agenda política nacional é pautada pelos jornalões (apesar da queda nas tiragens), a blogosfera não deve ter a megalomania e a inocência de achar que pode exercer influência determinante na opinião pública. São Jorge teve que matar o dragão antes de virar santo. A missão da blogosfera, e deste Contramaré, entre outras coisas, ainda é combater a manipulação política da qual importantes segmentos sociais são vítimas, através de notícias maliciosamente deturpadas pela imprensa brasileira.
Não é só isso. A imprensa também participa da luta ideológica. No caso da América Latina, onde décadas de ditadura extirparam todos os grupos midiáticos não-alinhados às ideologias ultraconservadoras importadas dos Estados Unidos, os partidos políticos de esquerda ficaram órfãos de uma imprensa minimamente imparcial no tocante aos interesses ideológicos.
A blogosfera surge, portanto, como arma fundamental da esquerda para enfrentar o conservadorismo arrogante e tacanho que monopolizou as redações midiáticas.
Digo tudo isto para justificar o trabalho que farei este ano, o qual deverá consistir, fundamentalmente, em análises diárias da mídia; ao mesmo tempo, será uma trincheira da guerra ideológica, da qual participo orgulhosamente (quiçá pretensiosamente) como um soldado de minhas próprias opiniões.
Para começar, falemos do editorial da Folha publicado dia 10, e que me deu um certo trabalho para confrota-lo. Transcrevo-o abaixo:
Editorial da Folha: O Partido do Poder
Aos 30, PT abandonou ideia de "mudar a maneira de fazer política" e se tornou uma entidade paraestatal à sombra do lulismo
O VOCABULÁRIO dos partidos de esquerda sempre foi rico em palavras destinadas a identificar e condenar vícios de conduta. Termos como "obreirismo", "basismo" ou "principismo" costumavam fazer parte do arsenal da militância identificada com os ensinamentos de Marx e Lênin.
Ao longo de seus 30 anos de existência, que se completam na data de hoje, o Partido dos Trabalhadores sofreu, por parte dos agrupamentos de esquerda tradicionais, críticas formuladas em conceitos desse tipo.
Fundado em 1980, na luta contra o regime militar, o PT foi acusado, antes de tudo, de ser "divisionista": o momento, para seus críticos, era o de cerrar fileiras sob o guarda-chuva do PMDB.
Nascido de uma vigorosa mobilização operária, o partido de Lula rejeitava alianças com o empresariado e com políticos tradicionais. O "obreirismo" dessa fase vinha acompanhado do "espontaneísmo": confiava-se mais no potencial autônomo dos movimentos sociais do que nas orientações de uma direção monolítica. A influência da igreja, também decisiva naqueles anos de formação, trazia a forma organizativa das comunidades católicas para o interior do partido; naqueles tempos, nada se fazia sem "consultar as bases".
Uma mistura de descontentamento geral contra "tudo o que está aí" tingia de humor intransigente, e de forte puritanismo, uma ideologia ainda não completamente formulada, mas que sem dúvida buscava se apresentar como algo novo na tradição e na prática política brasileiras.
Não é preciso grande esforço analítico para notar de que modo o PT de hoje se afasta do PT de 1980. Se o escândalo do mensalão implodiu suas últimas pretensões a "mudar a forma de se fazer política no país", foi entretanto longo o caminho da sigla até a desmoralização, o conformismo e a esclerose.
De início, a necessidade de apresentar propostas nítidas fincou o PT como uma espécie de representante anacrônico e radicalizado do estatismo e do nacionalismo da era Vargas, carregando frequentemente as bandeiras da "reforma social na marra", do messianismo e da ilegalidade.
O projeto de poder do PT passava entretanto, e felizmente, pela via eleitoral. Foi a senha para que, dos princípios rígidos de origem, se transitasse para uma prática de acordos e alianças impostos de cima para baixo. O destino do PT não seria diferente do experimentado por seus congêneres social-democratas na Europa, ao longo do século 20.
Mas a democracia brasileira possui suas peculiaridades, dentre as quais o predomínio da oligarquia e do poder de Estado sobre a livre organização da sociedade. Pouco já se falava de "bases" e "princípios" quando estourou o caso do mensalão.
O pragmatismo transformou-se em cinismo, por parte dos envolvidos, e em perplexidade, por parte dos simpatizantes. Manteve-se, incrivelmente, a arrogância de sempre: prevaleceu a pose de indignação enquanto a força gravitacional do Estado tornava ridículas as intenções de "refundação" partidária aventadas no auge da crise.
À sombra do prestígio de Lula, que se sobrepôs à sigla, o PT hoje se resume a uma entidade paraestatal, reproduzindo uma história secular na política brasileira: é, como outros antes dele, meramente o Partido do Poder.
Volto eu:
Belíssima peça partidária. Reuniu todos os clichês anti-esquerdistas e antipetistas dos últimos tempos num só petardo sovina e idiota. Terei muito trabalho este ano para escarafunchar metodicamente os chiqueiros mau-cheirosos da grande mídia.
A Folha defende a tese que o PT deveria ter continuado o mesmo partido de 1980. Arrecadando dinheiro com a venda de brochinhos vermelhos. Reunindo artistas da Globo para cantar Lulalá na TV. Um bando de trostkistas não-adeptos do desodorante trocando perdigotos. Claro, estou brincando. O PT tem uma história bonita desde sua fundação, com quadros intelectuais de primeira, como Antônio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda, apenas para citar duas estrelas. Mas um partido deve, necessariamente, evoluir. O que incomoda a Folha é que o PT deixou de ser um representante do esquerdismo chic da classe média urbana para se tornar o maior partido de massas da América Latina. Um dos maiores, mais coerentes, mais coesos e mais bem sucedidos partidos de esquerda do mundo.
Problemas de corrupção? Ora pois pois. A mídia inventou que o PT era o partido da ética e depois do mensalão quis forçar um game-over. O PT nunca foi o partido da ética porque isso não existe. Ética é uma dimensão individual.
Muitas vezes o PT me dá nos nervos, o que é normal. Mas sou consciente da correlação de forças no universo político nacional. E estou seguro quanto ao lado da trincheira que desejo ocupar.
São acusações hipócritas, despolitizadas. A Folha trata o militante petista como um tonto, como um boçal que ainda acredita em seus editoriais. O pior é que estes existem. O PT precisa fazer alianças. Estas não são apenas necessárias para a governabilidade, elas conformam a estrutura legislativa do país. Se o PT errou e ainda erra - e esta é uma opinião pessoalíssima - é justamente em ainda alimentar visões não-aliancistas em seu bojo. Lembro que participei de debates, onde alguns defendiam que o PT procurasse se sustentar antes nos movimentos sociais do que em partidos como o PMDB. Discordei dessa colocação. O MST não vota no Senado. Nem no Congresso. Não aprova orçamento da União nem aumento de salário mínimo. O governo tem que se aliar aos partidos que existem eleitoralmente. O pragmatismo na política não é um remedinho que os partidos devem cuidar para tomar apenas a dose necessária. Fazer política é, essencialmente, ser pragmático. Outrossim é tese acadêmica, literatura, diletantismo.
A Folha malha o PT usando os mesmos argumentos com os quais o jornal defendeu o regime militar em 1964. Porque se trata de um representante das idéias mais conservadoras da sociedade brasileira. E eu não quero que essas idéias triunfem, como triunfaram naquela fatídico ano. Ontem venceram na base do tiro de canhão, hoje querem repetir o feito através de golpes de astúcia. Reconheço que assim é bem melhor. Mas se antes era difícil revidar os tiros, agora a luta é protegida pelas regras da democracia.
Aguinaldo Munhoz
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