por Luiz Carlos Azenha
Fiquei sabendo que meu amigo Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da Folha de S. Paulo, disse que os blogs jamais seriam capazes de substituir os jornais e, como argumento, destacou o fato de que a Folha deslocou quatro repórteres para cobrir o terremoto do Haiti contra nenhum dos blogs.
Justo, mas posso dizer que não li a Folha e talvez, através de blogs, tenha me informado mais e melhor sobre o Haiti do que se fosse assinante do jornal. Sim, porque recorri diretamente aos próprios haitianos. Que falam a língua, conhecem as pessoas e a cultura locais. Muito antes que o primeiro repórter estrangeiro chegasse a Jacmel, por exemplo, os estudantes de uma escola de cinema local já tinham subido vários vídeos no Vimeo mostrando o impacto do terremoto. Não vejo como os repórteres da Folha, que caíram de paraquedas no Haiti, poderiam fazer melhor cobertura que os próprios moradores de Jacmel. Além do que, não acredito que os blogs tenham o objetivo de substituir os jornais, muito embora isso eventualmente poderá acontecer se os jornais e os repórteres dos jornais se tornarem irrelevantes.
O que me leva ao ponto: acho que os quatro repórteres que a Folha mandou para o Haiti estão fazendo falta em São Paulo.
Mais exatamente, na cobertura das enchentes que tiram os paulistanos e paulistas do sério.
Nos últimos dias, a Folha e outros orgãos da mídia tem dançado em torno de um recorde irrelevante: se as chuvas deste janeiro em São Paulo serão ou não as maiores dos registros históricos. Minha pergunta é: e daí? Para quem é vítima das enchentes ou para quem dirige pelas marginais do Tietê e do Pinheiros isso é absolutamente irrelevante. A chuva "acumulada" nos recordes não caiu de uma só vez e, portanto, pode não haver relação entre a soma de toda chuva e os transbordamentos episódicos.
Trata-se de um factóide à altura das mensagens de José Serra no Twitter: serve à desinformação.
O que importa é saber o motivo pelo qual a obra central da estratégia contra as enchentes em São Paulo, o rebaixamento da calha do rio Tietê, não está dando conta de impedir os transbordamentos. É preciso ter em conta sempre o papel central que o rio Tietê tem nas enchentes da cidade: quase todos os rios que cortam São Paulo desaguam nele. Se não há vazão adequada no Tietê, o risco de transbordamento dos afluentes também aumenta.
É impossível dançar em torno dessa realidade: o gerenciamento das represas do Alto Tietê e a capacidade de vazão do próprio rio são essenciais não apenas para a temporada de chuvas de 2010, mas de 2011, 2012, 2013... independentemente de quem seja o governador de São Paulo.
Sabemos que o então governador Geraldo Alckmin concluiu uma obra bilionária cuja promessa central era acabar com as enchentes em São Paulo. Está até em um site tucano essa promessa. Ficou expressa em placas e faixas espalhadas pela região da marginal do Tietê.
No entanto, quatro anos depois da conclusão desta obra o rio Tietê já transbordou quatro vezes: uma durante o próprio governo de Alckmin e três recentemente, no governo Serra. Foram milhões em prejuízos para a cidade, tanto em danos diretos como em danos indiretos.
O que os paulistas e paulistanos gostariam de saber é: o Tietê vai encher outras vezes? Quanto precisa chover para que o Tietê transborde? A obra foi em vão? Ou houve falta de manutenção?
Pelo que apurou a repórter Conceição Lemes, deste blog, o rio Tietê ficou três anos sem limpeza (2006, 2007, até outubro de 2008). O plano do governo de fazer uma parceria público-privada para providenciar a limpeza teria fracassado. A limpeza foi retomada através de concorrência pública, em 2008, bem abaixo do que é recomendado por alguns técnicos.
Apesar da insistência da repórter, o órgão do governo que poderia fornecer os documentos comprovando que fez a limpeza, se de fato ela foi feita, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), se negou a responder.
O que nos leva a uma questão secundária, não menos importante: a falta de transparência do governo Serra quando se trata de temas politicamente embaraçosos. O próprio Defensor Público que zela pelos interesses de moradores da Zona Leste vítimas das inundações teve de recorrer à Justiça para obter documentos da Sabesp e de outros órgãos controlados pelo governo Serra. A mídia exige do governo federal a transparência que não cobra de autoridades estaduais e locais.
Por fim, vamos à questão do gerenciamento das barragens do Alto Tietê, que diz respeito diretamente ao nível do rio quando ele atravessa a metrópole.
Mais uma vez, a repórter Conceição Lemes foi direto ao ponto, em entrevista com José Arraes, membro do Comitê da Bacia do Alto Tietê, do Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê e do conselho gestor da APA (Area de Proteção Ambiental) da várzea do Tietê. Ele denunciou que a Sabesp e o DAEE mantinham os reservatórios cheios antes mesmo do início do período das chuvas, o que os obrigou a "sangrar" as represas no período de chuvas, agravando as enchentes:
Viomundo – Por que a Sabesp e o Daee mantiveram as barragens lotadas?
José Arraes – Eu desconfio de um destes esquemas. Primeiro: para não faltar água para a Região Metropolitana de São Paulo. Assim, pode ter havido determinação governamental para estarem na cota máxima. Segundo: a Sabesp e o Daee já estarem aumentando o volume das represas, visando aumentar a produção da Estação de Tratamento de Água Taiaçupeba de 10 metros cúbicos por segundo para 15 metros cúbicos por segundo (10m³/s para 15m³/s) . Terceira: a privatização do Sistema Produtor de Água do Alto Tietê – chamado SPAT. Hoje é um consórcio de empresas privadas que regula, administra, mantém e fornece as águas que estão represadas nessas barragens.
Viomundo – Por favor, explique melhor isso.
José Arraes – Existe um consórcio de empresas – entre elas, uma empreiteira conhecida na nossa região, a Queiroz Galvão –, que hoje gerencia as águas reservadas nas represas em uma parceria público-privada. Toda a água represada em todas as barragens do Sistema do Alto Tietê são gerenciadas por esse consórcio. Quanto mais cheias as represas, mais interessantes para o consórcio. Interesse comercial, nada mais do que isso.
Viomundo – Quer dizer que as águas das barragens do Alto Tietê estão privatizadas?
José Arraes – Sim. As empresas do consórcio fazem a conservação das barragens e a intermediação com a necessidade da Sabesp que a trata e remete para a população. Logo, para o consórcio de empresas, quanto mais cheias estiverem as barragens, mais água fornece para a Sabesp. Mais ganhos financeiros, portanto.
Viomundo – Qual das três hipóteses é a mais provável?
José Arraes – Talvez a combinação das três. Cabe ao Ministério Público investigar. O fato é que as barragens do Alto Tietê estão excessivamente cheias e as comportas estão sendo abertas, contribuindo com as inundações em toda a calha do rio até a região do Pantanal.
A íntegra está aqui
Depois da entrevista, foi um blog, o NaMaria News, que localizou o contrato: a Sabesp deve pagar até 1 bilhão de reais durante 15 anos para que o consórcio privado que controla os reservatórios faça obras, com a promessa de aumentar a capacidade de fornecimento de água tratada de 10 para 15 metros cúbicos por segundo.
O que levanta questões importantes para o futuro: o que vai prevalecer na gestão dos reservatórios, o interesse público ou o interesse privado?
A parceria público-privada foi apresentada pela Sabesp, no Diário Oficial, como uma forma de vencer a burocracia das licitações e acelerar as obras. Isso é bom ou ruim?
No mesmo DO, diz-se que a PPP paulista foi o primeiro passo de um modelo que poderia ser exportado pela própria Sabesp para outros estados brasileiros. Isso já aconteceu?
O estado de São Paulo paga para entregar represas que já existem a empresas privadas, que embolsam 1 bilhão de reais. Quanto elas devolverão em obras? Essas obras -- e a administração das represas por 15 anos -- valem esse bilhão?
O estado de São Paulo paga ainda ao consórcio privado pelas águas contidas nos reservatórios e entregues à Sabesp para tratamento na estação de Taiaçupeba. Quanto custa o metro cúbico da água vendida à Sabesp?
Qual a posição da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a respeito?
Se as PPPs de fato forem exportadas para outras regiões do país, entre o abastecimento de água para a população e a geração de energia elétrica, quem terá prioridade no uso das águas quando houver conflito de interesses? Quem decidirá, os órgãos públicos locais, estaduais e federais ou as empresas privadas? A população será ouvida?
O controle das águas, uma questão essencial e politicamente explosiva, como se viu em Cochabamba, na Bolívia, é um tema muito importante para ser decidido nos bastidores, como aparentemente o foi em São Paulo.
É importante registrar que várias das perguntas que aparecem acima foram feitas por comentaristas deste blog que, ao contrário da Folha, incorpora a seu conteúdo, em tempo quase real, as indagações do público.
São todas questões pertinentes e interessantes que aqueles quatro repórteres que a Folha mandou para o Haiti poderiam fazer aqui no Brasil.
Poderiam fazer, como as fez a Conceição Lemes, do ponto-de-vista dos que ficam à mercê do poder público, especialmente dos que sofrem com as enchentes e de outros que, através do pagamento de impostos, são duplamente vítimas dos planos mirabolantes e fracassados para extinguir as inundações.
Não se trata, portanto, de uma questão de número de repórteres ou de recursos financeiros. Os blogs crescem no espaço que os jornais abdicaram de cobrir, quando interesses políticos e econômicos particulares deles, jornais, se colocam acima do interesse público.
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