Íntegra do discurso do presidente Lula nos dez anos do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre:
"Será que seria pedir demais para que os nossos companheiros enrolassem as suas bandeiras, Paulo, Sérgio e Lucio, para que a gente possa ver as pessoas de trás e as de trás possam ver a gente.
Vocês sabem que uma das coisas que eu mais admiro é um militante de qualquer organização que vai para a rua com a sua bandeira. Eu acho uma coisa fantástica e inusitada. Eu só estou pedindo... Faz tempo que eu não vejo vocês, faz tempo que não me vêem, e eu acho que enrolar a bandeira cinco minutos não pesa nada para nenhum companheiro.
Eu quero em primeiro lugar dizer para vocês que é uma alegria maior do que acho que o meu coração comporta de estar outra vez participando do maior evento multinacional que a sociedade civil mundial organiza que é esse Fórum Social Mundial.
Eu da outra vez que participei aqui fui fazer um debate onde o tema destinado para eu falar era "Um outro Brasil é possível", e eu lembro que naquele instante eu não tinha nem certeza de que seria candidato a presidente da República. E hoje ao participar desse fórum eu participo na posição de funcionário público número um do meu país.
Eu quero agradecer à direção desse evento. Eu sei que não é fácil. Eu sei do sacrifício que vocês estão fazendo para fazer essa organização. Eu sei do cuidado que vocês tem com a segurança. Eu agora mesmo, Hadad, estou falando em português e deve ter companheiro aí, francês, inglês, deve ter gente da China, da Índia, que não estão entendendo nada do que eu estou falando.
Entretanto aqueles que não entenderem as minhas palavras, e são pessoas que acreditem no Fórum Social Mundial, olhem nos meus olhos que vocês vão entender cada palavra que eu falo.
Quero agradecer aqui aos companheiros dirigentes do Fórum, os ministros, mas sobretudo quero agradecer ao povo do mundo inteiro que sem medir sacrifício vem aqui, às vezes sem ter o direito de falar, às vezes sem ter oportunidade de falar, mas vem aqui só para dizer: eu existo como ser humano e eu quero ser respeitado como tal.
Eu sempre disse que o maior desejo que eu tinha de ser eleito presidente da República era pra ver se eu conseguia atender às minhas própria reivindicações. Eu sou um homem que fiz muitas reivindicações no Brasil, eu exigi muito de cada governo que passou aqui antes de mim como muitos de vocês exigem nos seus países.
E o meu desejo de ser presidente da República era o de saber se eleito presidente da República eu serei capaz de atender às minhas própria reivindicações. Portanto, eu tenho que me preocupar com aquilo que possíveis adversários falarem.
Eu tenho que saber que ao longo da história o movimento social brasileiro, o movimento sindical brasileiro, os partidos políticos do Brasil, as Igrejas do Brasil, as ONGs no Brasil, acumularam muita experiência e junto com essa experiência acumulada tem propostas, tem reivindicações, tem coisas extraordinárias apresentadas.
E eu agora tenho quatro anos para que muita, e com muita tranquilidade a gente possa atender, senão todas, aquelas que nós tivermos capacidade e condições de atender. Eu continuo com o meu sonho de fazer a reforma agrária neste país. Eu continuo com o meu sonho de garantir uma escola pública de qualidade para o meu povo.
E que a universidade não seja um privilégio de apenas 8% da sociedade, mas que a universidade seja um direito ao alcance de todos. Eu continuo sonhando na possibilidade de fazer uma política de saúde onde nenhum pobre morra mais na porta do hospital por falta de atendimento médico ou por falta de assistência.
Eu continuo sonhando em construir uma sociedade justa, solidária, fraterna, onde o resultado da riqueza produzida no país seja distribuída de forma mais equânime para todos os filhos deste país.
Entretanto também aprendi ao longo da minha trajetória política, e aprendi com vocês, de que um técnico importante para um time não é aquele que começa ganhando, mas aquele que termina ganhando o jogo a que nos propusemos a jogar. E eu tenho quatro anos, quatro anos, para de forma tranquila, cautelosa...
Eu tenho quatro anos de governo pra de forma tranquila e serena ir fazendo as coisas que tem que ser feitas nesse país, quero fazer talvez o governo mais honesto que já houve na história desse país. Um governo que tenha a mais perfeita relação com a sociedade.
Quero tratar cada um de vocês como trato o meu caçula de 17 anos. Na hora que eu puder fazer nós faremos, mas na hora que não der para fazer, com a mesma serenidade e com o mesmo carinho, eu quero dizer: companheiro, não dá para fazer. E eu tenho certeza que essa relação de honestidade e de companheirismo será a razão do sucesso do nosso governo aqui no país.
E por que é que vou agir assim? Vou agir assim porque eu tenho consciência da responsabilidade que está nas costas das pessoas que me elegeram e que está nas costas dos meus ministros e que está sobretudo nas minhas costas. Embora eu tenho sido eleito presidente do Brasil eu tenho uma nítida noção do que a nossa vitória representa de esperança, não apenas aqui dentro, mas para a esquerda em todo o mundo e sobretudo para a esquerda na América Latina.
Eu levanto todo dia pela manhã...
Se a Marisa continuar com essa popularidade vai ser candidata a alguma coisa na próxima eleição.
Eu levanto todo dia de manhã e falo para a Marisa que nós temos que fazer as coisas muito bem pensadas porque qualquer governo em qualquer país do mundo pode errar que não acontecerá nada porque é muito normal que os governantes errem.
Mas eu não posso errar. E não posso errar porque eu não fui eleito pelo apoio de um canal de televisão, eu não fui eleito pelo apoio do sistema financeiro, eu não fui eleito por interesses dos grandes grupos econômicos e eu não fui eleito por obra da minha capacidade ou da minha inteligência.
Eu fui eleito pelo alto grau de consciência política da sociedade brasileira no dia 27 de outubro de 2002.
Eu sei a expectativa que eu estou gerando nas mulheres, nos homens e nas crianças. Eu nunca vi na história do Brasil tanta expectativa, tanta esperança e tanta gente pedindo a Deus para gente acertar, e tanta gente pedindo não um emprego, mas dizendo para mim: Lula como é que eu faço para ajudar o nosso governo a dar certo.
É essa a força da sociedade e é exatamente esse capital político que fez com que a gente pudesse terminar a eleição e gritar bem alto: a esperança finalmente venceu o medo.
Eu já estive na Argentina, eu já estive no Chile, eu já estive no Equador e eu sei a expectativa que a América do Sul tem no governo brasileiro. Eu sei a esperança que os socialistas do mundo inteiro têm no sucesso do nosso governo. É por isso que aumenta a nossa responsabilidade.
E eu volto a afirmar, nós esperamos tanto para ganhar, nós perdemos tanto, nós sofremos tanto, tanta gente morreu antes de nós tentando chegar lá, que por esse acúmulo de compromisso, eu quero olhar na cara de cada um de vocês e dizer: eu não vou errar e vou fazer um governo voltado para os pobres deste país.
Eu sempre disse aos companheiros que organizam o Fórum Social Mundial que era preciso transformar o Fórum num instrumento... primeiro que não fosse dependente de nenhum partido político, segundo que não fosse utilizado por ninguém.
Quando eu fui convidado para vir aqui eu ainda disse para os companheiros: é preciso que vocês pensem se eu devo ir ao Fórum Social Mundial porque eu serei o primeiro presidente. E me disseram: Lula você pode ir porque você é um anfitrião do Terceiro Fórum Social Mundial.
Mas hoje eu já me comprometi publicamente porque um companheiro da Índia, aonde vai ser o próximo fórum social mundial, perguntou a mim numa reunião que eu fiz com a direção mundial do Fórum se eu iria o ano que na Índia e eu disse pra ele eu vou na Índia, se for necessário eu vou na China, e se for necessário eu vou aonde me convidarem porque eu sou obra e resultado do trabalho que vocês fizeram ao longo de todos esses anos e portanto eu acho que não apenas eu, acho que outros governantes deveriam ir ao Fórum Social para ver o que pensa o povo, o que deseja o povo e como o povo quer que as coisas aconteçam.
Qual é a novidade? Qual é a novidade deste ano? É que este ano por causa de vocês e por causa do Fórum Social Mundial eu fui convidado para ir a Davos. Se não fossem vocês eu não seria convidado.
E aí eu lembrei de uma coisa, quando eu comecei a minha vida sindical, os meus amigos mais inteligentes e mais espertos diziam assim pra mim: Lula não entra no movimento sindical porque a estrutura sindical brasileira é a cópia fiel da carta de "lavoro" de Mussolini e se tu entrares no sindicato, tu vai um pelego e não vai conseguir fazer nada.
Eu entrei no sindicato e em três anos nós mudamos a história do movimento sindical brasileiro que hoje é um dos mais importantes do mundo. Em 1979 nós estávamos lutando neste país pela reconquista das liberdades políticas e eu inventei de criar um partido, aí aqueles que queriam liberdades políticas começaram a ficar contra porque na liberdade política deles não pressupunha a criação de um partido político.
E havia quem dissesse para mim: olha, no Brasil não cabe um partido como o PT, esse negócio de dizer que partido de trabalhadores pode ser criado, que metalúrgico vai dirigir partido, isso é coisa do passado, não tem na sociologia brasileira exemplos disso ou mundial. Nós fomos teimosos e criamos um partido que hoje é o partido mais importante da esquerda em toda a América Latina.
Agora eu lembro de uma coisa que eu vou contar para vocês. Em 1978 nós entramos em greve ABC e o presidente da Federação das Indústrias correu no Segundo Exército para dizer ao general Guilhermando que era preciso acabar com uma greve que os metalúrgicos estavam fazendo.
Possivelmente se eu pertencesse a uma organização política mais tradicional eu teria arrumado a mala e teria ido para um outro lugar ficar uma semana até a poeira baixar.
Como eu era mais inocente politicamente eu peguei o telefone e liguei para o comandante do Segundo Exército e falei: general Guilhermando, eu estou vendo nos jornais que o senhor convidou o presidente da Fiesp para atender o presidente da Fiesp, eu sou o presidente dos trabalhadores e quero ir falar com o senhor, e ele me atendeu durante três horas.
Agora quando surgiu o convite para Davos, a princípio eu falei o que é que eu vou fazer em Davos? E aí eu tomei a seguinte decisão, eu sou o presidente de um país que é a oitava economia mundial, eu sou o presidente de um país que tem 45 milhões de pessoas que não comem as calorias e as proteínas necessárias, eu sou o presidente de um país que tem história e que tem um povo e não é qualquer dia e qualquer mês e qualquer século que um torneiro mecânico ganha a Presidência da República deste país.
Portanto eu tomei a decisão, muita gente que está em Davos não gosta sem me conhecer.
Eu quero fazer questão de ir a Davos e dizer em Davos exatamente o que eu diria para um companheiro qualquer que está aqui neste palanque, dizer em Davos de que não é possível continuar uma ordem econômica onde poucos podem comer cinco vezes ao dia e muitos passam cinco dias sem comer no planeta terra, dizer a eles de que é preciso uma nova ordem econômica mundial e que o resultado da riqueza seja distribuída de forma mais justa para que os países pobres tenham a oportunidade se serem menos pobres.
Dizer a eles que as crianças negras da África tem tanto direito de comer quanto as crianças de olhos azuis que nascem nos países nórdicos. Dizer a eles que as crianças pobres da América Latina tem tanto direito de comer como qualquer outra criança que nasça em qualquer parte do mundo. Dizer a eles que o mundo não está precisando de guerra, o mundo está precisando de paz, o mundo está precisando de compreensão.
Eu acho que nós temos que fazer o mundo. O que a gente não pode é ficar preso dentro do nosso mundo achando que todo o mal que nos rodeio é por causa de quem está fora.
Eu dizia hoje isso é mais ou menos como numa família, e que de repente aparece um filho metido em drogas e ao invés do pai e a mãe discutir e saber aonde é que está o defeito começa a culpa a escola, começa a culpar o vizinho, começa a culpar o namorado, ao invés de sentar e olhar pra dentro do pai e da mãe e perguntarem a si mesmos o que é que nós deixamos de fazer para que o nosso filho não fosse drogado.
Nós somos pobres, uma parte pode ser culpa dos países ricos, mas uma parte pode ser culpa de uma parte da elite ou do continente sul-americano que governou de forma subserviente, que governou de forma subalterna este país praticando os casos mais absurdos de corrupção.
Só na América Latina nos últimos quatro anos, quatro governantes, Collor, no Brasil, Fujimori, no Peru, Menem, na Argentina, Salinas, no México, saíram por ter praticado verdadeira roubalheira em seus países. E isso não pode continuar acontecendo. Não pode os países ricos querer ajudar os países pobres aceitando depósito ou lavagem de dinheiro de quem rouba dos países pobres.
Eu lembro que uma vez tinha um presidente do Zaire, chamado Moputu, e eu lembro que na época a denúncia é que ele tinha US$ 8 bilhões depositado num país da Europa, e o seu povo estava passando fome.
Se os países ricos querem contribuir que eles não aceitem dinheiro do narcotráfico, do crime organizado, e que não aceitem dinheiro dos países em que os governantes praticaram verdadeiros roubos. Que devolva esse dinheiro para ajudar o seu povo. Eu quero, meu querido Hadad, terminar isso aqui dizendo para vocês...
Terminar isso aqui dizendo para vocês uma coisa, deixa eu dizer uma coisa para vocês, eu quero dizer para vocês que o único e mais importante compromisso que eu tenho com vocês é de que vocês podem ter a certeza, como a certeza e a fé que vocês têm em Deus para quem é cristão, é que eu possa cometer algum erro, mas que jamais eu negarei uma vírgula dos ideais que me fizeram chegar à Presidência da República do nosso país.
Eu quero poder a cada mês, a cada ano, olhar na cara de cada criança, de cada mulher, de cada homem, e dizer nós estamos construindo uma nova nação, nós estamos construindo um novo país.
E eu teimo em dizer todo o santo dia: eu ei de realizar um sonho que não é meu, mas um sonho que é de todos vocês, que haverá um dia que nesse país nenhuma criança irá dormir sem um prato de comida e nenhuma criança acordará sem um café da manhã, haverá um dia em que neste país as pessoas poderão morrer, porque nascemos para morrer, mas ninguém morrerá de desnutrição como morre hoje nesse país.
Haverá um dia em que a gente tem que ter a consciência de que este país que eu sonho e que vocês sonham ele pode ser construído, depende da nossa disposição de fazê-lo, depende da nossa coragem, depende da nossa disposição.
E eu estou aqui para dizer para vocês, meus companheiros e minhas companheiras do Terceiro Fórum Social Mundial, haja o que houver, aconteça o que acontecer, eu tentarei cumprir cada palavra que está contida no programa de governo que me elegeu para presidente da República deste país.
Governar é como uma maratona, você não pode começar a 80 por hora porque o teu fôlego pode acabar na primeira esquina, você tem que dar uns passos sólidos, concretos, para que você possa terminar o governo com a certeza de um dever cumprido.
E eu quero poder dizer ao mundo, como seria bom, como seria maravilhoso se ao invés dos países ricos produzirem e gastarem dinheiro com tantas armas, se a gente gastasse dinheiro com pão, com feijão, com arroz para a gente matar a fome do povo. Eu fico imaginando quantos bilhões e bilhões e bilhões de dólares se gasta com uma guerra, soldado matando soldado, soldado matando inocente, e próximo de nós crianças levantando os olhos e mendigando um prato de comida que muitas vezes se joga fora e não dá pra essa criança.
Meus companheiros e companheiras do Fórum Social Mundial, eu quero que vocês que são brasileiros e vocês que não são brasileiros, mas que estão aqui, quero que vocês tenham a certeza mais absoluta da vida de vocês, não faltarei com vocês, não deixarei de fazer as coisas que nós temos que fazer e eu espero dar a minha contribuição para que outros companheiros ganhem as eleições em outros países do mundo para que a gente possa de uma vez por todas começar a eleger pessoas que tenham mais sensibilidade, pessoas que tenham mais compromisso, pessoas que acreditem que é possível mudar a história da humanidade.
O nosso país durante 500 anos ficou olhando para a Europa, está na hora de olhar para a África e para a América do Sul, está na hora de estabelecer novas parcerias para que a gente possa ser mais independente, fortalecer o Mercosul e estabelecer uma força política para negociar.
Nós não podemos aceitar o que está acontecendo durante 40 anos, bloqueio em Cuba, não podemos aceitar que países sejam marginalizados durante séculos e séculos, e nós não podemos aceitar que o Brasil do tamanho que é, continue a cada ano que passa sendo um país que apresente maior índice de pobreza e miserabilidade.
Por isso eu não poderia deixar de vir aqui, não poderia deixar de vir aqui e dizer para vocês: valeu a pena gente, e vai valer muito mais a pena quando a gente tiver no último dia do governo e poder provar com dados sobre dados de que nós fizemos em quatro anos o que os outros não fizeram em algumas dezenas de anos neste país.
Gente, eu quero me despedir de vocês dizendo...
Eu quero terminar dizendo aos companheiros coordenadores e coordenadoras do Fórum Social Mundial pelo amor de Deus não desistam porque vocês conseguiram em três anos construir uma das coisa mais extraordinárias que a sociedade civil mundial conheceu. Embora estejamos a tantos mil quilômetros de Davos, a verdade é que depois do Fórum de Porto Alegre, Davos já não tem mais a força que tinha antes de existir o Fórum Social Mundial.
A verdade é que os problemas sociais do mundo nunca tinham sido discutidos em Davos e agora todos vão saber que tem que discutir os problemas sociais.
Vocês conseguiram um espaço na história, a imprensa que começou no primeiro fórum a dizer que era um encontro de esquerdistas, a dizer que era um encontro dos malucos do mundo, hoje reconhecem em todos as primeiras páginas dos jornais, o Fórum Social Mundial é o maior evento político realizado na história contemporânea, e eu não tenho dúvida nenhuma que ele vai contribuir de forma decisiva para que a gente mude a história da humanidade.
Muito obrigado, e até a vitória se Deus quiser companheiros."
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