O rompimento da polaridade não veio de uma força externa, mas nasce no âmago da coligação petista. E definirá os rumos futuros da política brasileira.
Gilberto Maringoni*
Uma das decorrências a ser extraída da degringolada voluntária do governo Dilma é a de que pode estar acabando a polarização PT-PSDB. Ela existe na cena política desde a disputa presidencial de 1994 e seu ocaso não é fato menor.
Ao longo daquela década, os tucanos deram forma a um projeto de inserção subordinada do Brasil no plano internacional, com matizes fortemente liberais. Apesar da pouca nitidez programática do petismo, pode-se dizer que este buscava recuperar uma tradição vagamente aparentada com o desenvolvimentismo. Mas o que os diferenciava de verdade era a base social do PT entre os setores populares organizados, com suas demandas por salário, emprego e melhores condições de vida. O PSDB, desde seu surgimento (1986), buscou se consolidar como caudatário de um antiestatismo que se radicalizou com o tempo. Assim, a legenda paulatinamente se tornou representante política quase orgânica do capital financeiro. A oposição entre ambos não era fenômeno meramente eleitoral, mas expressava demandas de setores sociais distintos. Tal realidade pode estar chegando ao fim, neste segundo governo Dilma. O rompimento da polaridade não veio por ação de uma força externa a ambos, mas nasce no âmago da coligação petista. E definirá os rumos futuros da política brasileira. VOLTA AO PROSCÊNIO - O beneficiário do novo ordenamento das cartas institucionais é – como todos sabem – o PMDB. A agremiação – que desde 1994 não se apresenta em eleição presidencial com cara própria – volta ao proscênio da vida nacional, com pretensões de se colocar como força autônoma. A legenda operou, nos últimos 21 anos, como uma espécie de grande avalista de governos tucanos e petistas. O partido expressa a confluência interesses regionais variados e vocaliza demandas de boa parte do capital industrial e agrário. As personalizações dessa representação são Paulo Skaf e Katia Abreu, que arrastam um vasto setor empresarial, hoje descontente com o petismo. A manifestação mais visível dessa situação se deu a partir da eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. Contando com um poder inédito desde o governo Sarney (1985-1990) – a vicepresidência, a direção das duas casas legislativas e cinco ministérios – o PMDB, em ação hábil e ousada, logrou deslocar Aécio Neves e o PSDB da condição de polo da oposição de direita. O tucanato perdeu assim seu papel “natural” de alternativa conservadora. Mesmo a possível derrocada de Cunha não parece alterar esse quadro. CAUSAS - A ascensão peemedebista ocorreu por um motivo principal. As bases materiais da polarização perderam contraste. O PT e o PSDB não disputam mais campos ou apresentam projetos distintos. O que disputam é a representação política do capital financeiro. Vale a pena recapitular brevemente o que ocorreu. O segundo mandato de FHC (1999-2003) se deu sob a marca de duas crises, a quebra do real, no primeiro ano de gestão, e o apagão, em 2001. Apesar de uma leve recuperação econômica, fruto da desvalorização cambial nos dois primeiros anos, as marcas daquela administração foram desemprego elevado e popularidade em queda. No início de 2002, a vitória de Lula era quase inexorável. Faltava combinar com os russos. Para aceitar a novidade, os donos do dinheiro impuseram seu pedágio. Este foi prontamente aceito pelo candidato petista, que se comprometeu – na “Carta aos Brasileiros” – a não tocar no modelo armado por seu antecessor. Ou seja, Lula poderia fazer o que quisesse, desde que liderasse um governo de continuidade. MUDANÇAS - Se é verdade que o PT mudou de lá para cá, duas outras verdades precisam ser admitidas: 1. Embora tenha havido uma aproximação, o partido não é a representação política dos sonhos do grande capital. Menos pelo seu programa e mais por temores de recaída em uma esquerdização vigente em sua primeira década de existência; 2. Se o PT mudou, o PSDB também mudou. Sobre esse último aspecto, é preciso verificar que a segunda geração tucana – Aécio, Alckmin, Richa, Perillo – está anos luz aquém da sofisticação, calibre intelectual e integração orgânica com o grande capital exibida pela fornada anterior. Esta tinha na vitrine FHC, José Serra, Paulo Renato, Bresser-Pereira, Sergio Motta, Edmar Bacha, Pedro Malan e outros. Ali estava o centro formulador da nova integração global, em sociedade com a alta finança. Perto dele, os novatos são literalmente arrivistas de província. Em português vulgar, os neófitos “não têm projeto” ou diretrizes claras. Por vias transversas, é nesse ponto que o petismo e o tucanismo se encontram. INTENÇÃO DE VOTO - Os dirigentes do poder econômico, há um ano, votaram na indicada por Lula. A divisão das verbas de campanha – R$ 318 milhões para Dilma e R$ 201 milhões para Aécio – expressava tais intenções. O empresariado destinou 50% a mais para a candidata petista, mas as duas quantias representam troco de gente grande. Dilma recebeu – oficialmente - mais por já estar no governo. Tinha maiores condições de atrair dinheiro. O fato de o PT apresentar uma base social mais alicerçada entre os milhões de despossuídos favorecia suas chances de vitória. Em miúdos, o fato de a agremiação ser sustentada por uma vastíssima representação popular reduziria – aos olhos de quem manda na grana - os riscos de instabilidades sociais. ERRO FATAL - É nesse ponto que Dilma cometeu seu erro fatal. Ao romper com sua base social, após as eleições de 2014, ela perdeu seu maior ativo diante de setores do topo da pirâmide social. Com esse gesto, o PT abriu mão de seu principal diferencial com o PSDB. Aos olhos de quem está por cima, os dois partidos tendem agora a se equivaler. Em cenário de desaceleração econômica e da opção feita por enviar a conta para os de baixo, de pouco adianta a liderança petista alegar que aumentou o salário mínimo, criou programas sociais etc. etc. O passado foi bom, mas o presente é de desemprego, inflação alta, queda de renda e o futuro é incerto. Aqui entra o PMDB, vocalizando interesses do que antigamente se classificava como “capital produtivo”. De forma mais (Cunha) ou menos (Temer) ruidosa, a agremiação colocou a faca nos dentes, com a crise política desatada pelo petismo. Para angariar musculatura no eleitorado popular, há tempos investe em segmentos religiosos conservadores. E tornou-se porta voz desses. Se formos buscar sentidos mais claros, podemos dizer que enquanto PT e PSDB acabaram por diluir seus programas, o partido de Michel Temer busca solidificar suas orientações nos lobbies da indústria – desonerações, terceirização, flexibilização da CLT – e do agronegócio – financiamentos a e mudanças em leis ambientais. O PMDB não toca nos interesses da banca. Por mais estapafúrdia que possa parecer a afirmação, estamos diante de quem apresenta o mais viável projeto político no Brasil atual. Um projeto conservador, excludente, mas de nítido apelo para o grande capital e de frações do médio. O que o PMDB não tem é uma liderança viável e visível para uma contenda presidencial. Esse fator o tornou até aqui caudatário do PT e do PSDB e ajudou a dar sobrevida a uma polarização que se torna rarefeita. Com o fim da polarização, provavelmente as eleições de 2016 apresentarão um cenário partidário mais pulverizado, já esboçado ano passado. Se for assim, teremos uma conjuntura em que pequenas legendas – muitas de aluguel – dividirão o bolo do poder. Nem por isso, o quadro se afigura como mais democrático. Os novos tempos acabarão por exigir também uma nova institucionalidade. É nisso que Eduardo Cunha trabalha – uma pauta regressiva e elitista -, enquanto é alvejado em pleno voo. * Professor de Relações Internacionais da UFABC e foi candidato a governador (PSOL-SP), em 2014.
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