segunda-feira, 15 de junho de 2015

Como a “Grande Fome” da Irlanda (1845-1849) foi descrita pela mídia-empresa


"Sepultando a Criança"
(quadro de Lilian Lucy Davidson)


Por Cahir O'Doherty*, Irish Central


Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Desde que foi aberto ao público, em outubro de 2012, o Museu da Grande Fome, da Universidade Quinnipiac em Hamden, Connecticut, vem expondo a maior coleção de artes visuais, objetos e material impresso relacionados à Grande Fome e à emigração forçada dos irlandeses no século XIX.

Parte da missão do museu é explorar como a crise da Grande Fome foi noticiada para o resto do mundo, e em meses recentes o museu tem convidado autores irlandeses, artistas e professores para falarem sobre o desastre. Os resultados têm sido notáveis.


Em “The Tombs of a Departed Race – Illustrations of Ireland's Great Hunger”, a professora Niamh O'Sullivan produziu um dos relatos mais lúcidos do contexto, da escala e do impacto da Grande Fome, que jamais encontrei.

Niamh O'Sullivan no lançamento de seu ensaio
(foto: James Higgins)

Nas sessenta e uma (61) páginas de seu ensaio, O'Sullivan – professora que escreve sobre o século XIX irlandês e sobre arte e cultura popular irlandesa-americana – examina o modo como jornais impressos e revistas ilustradas daquele século pela primeira vez modelaram nossa compreensão da tragédia que estava em curso no mundo.

Mas as imagens e relatos jornalísticos que O'Sullivan recolheu fazem mais que simplesmente oferecer um relato da calamidade. Também comentam as atitudes sociais e políticas dominantes – e os preconceitos – dos artistas e dos jornalistas ingleses que estavam narrando as condições em campo.

O'Sullivan nos recorda que a Fome não foi resultado de apenas um ano de colheitas ruins, ou de falta de alguns itens da alimentação. Ela escreve:

A Grande Fome tem de ser compreendida como evento que se estende por um século, não apenas por alguns anos – efeito de negligência continuada dos governos e do estado.

Décadas de miséria, salários muito baixos, aluguéis caros e os camponeses irlandeses em perpétuo estado de dependência, subnutridos e sempre à beira da fome. Sem as terras que lhes foram roubadas durante a Conquista, escreve O'Sullivan, “os proprietários e camponeses irlandeses católicos foram empurrados para os charcos [orig. bogs] e declives de montanhas, especialmente no oeste”, onde podiam cultivar a colheita de subsistência que ainda os mantinha vivos: a batata, que nasce abundantemente mesmo em solos pedregosos.

Expulsos para as piores terras e roubados de qualquer possibilidade de prosperarem, os irlandeses foram então culpados pela própria estarrecedora miséria, que muitos colonizadores declaravam “castigo de Deus” e condenação de toda a “raça”. Abundam teorias reconhecidas como científicas para racionalizar o sofrimento daqueles mais pobres, como sintoma e signo de grave inferioridade religiosa e biológica.

 Escultura em Dublin, homenagem aos mortos na Grande Fome

À altura de 1845, 85% da população de 8,7 milhões de irlandeses viviam em mínimas porções de terra, em extrema miséria. Havia, sim, muito de inevitável na tragédia que logo aconteceria, tanto mais chocante quanto permanentemente mal noticiada, amplamente mascarada e ignorada na sua extensão catastrófica.

A seleção do material que O'Sullivan reuniu dá ideia da vastíssima escala do horror e expõe relatos como o seguinte, de 1847:

Transbordamos de desespero; fomos esmagados pelos impostos; sofremos de fome e a pestilência nos cerca. Nossas prisões estão cheias; nossas pobres casas, em ruínas; nossos prédios públicos convertidos em depósitos de doentes (orig. lazar houses, locais onde só as doenças infecciosas prosperam); nossas cidades são campos de mendicância; nossas ruas, necrotérios; os átrios das igrejas, campos de carnificina.

Nosso comércio normal acabou; nosso povo sente-se total ou quase totalmente desmoralizado. A sociedade cai aos pedaços; o egoísmo reina: classe despreza classe; até os mais simples laços de cortesia ou amizade mais próxima jazem rebentados. Pai e filho, proprietário e meeiro, todos se repudiam, ninguém mais coopera. Terror e fome, doença e morte nos afligem, sofrimento horrível, indescritível penúria.

O'Sullivan selecionou cuidadosamente as imagens que ilustram o colapso quase total de todos os laços sociais e familiares, quando a crise afinal – a maior catástrofe demográfica do século XIX na Europa – se instalou.

Bridget O'Donnell e suas duas crianças em 1849 (Grande Fome)

Mas as imagens, como a professora nos lembra, não são relato objetivo. Cada imagem da Grande Fome, escreve ela;

(...) contém componentes que implícita ou explicitamente deixam ver as ideologias quase sempre em confronto dos principais atores.

Em seu estudo, O'Sullivan contextualiza a situação limítrofe em que viviam os pobres irlandeses e que levou à Grande Fome; e examina as atitudes predominantes entre os proprietários de terras e o governo, fazendo-nos ver que cada relato pictórico, cada imagem da Grande Fome, não é retrato fidedigno, mas sempre e só um único ponto de vista, quase sempre ponto de vista bem distanciado, ou tentativa de impor toda a culpa pela miséria sobre os ombros dos mesmos que tinham a vida e futuro ameaçados ali, diante dos próprios olhos.
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[*] Cahir O'Doherty é Editor de Artes e articulista das revistas The Irish Voice e Irish America e do sítio IrishCentral.com. Escreve matérias sobre cultura, política e o patrimônio cultural da América irlandesa já a mais de uma década. O'Doherty é formado pela Yale University e pela University of Ulster.uma década. O'Doherty é formado pela Yale University e pela University of Ulster.

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